segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Ai, Portugal, Portugal


 

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar

 

Este o refrão de uma das músicas inesquecíveis do genial Jorge Palma. E não é possível observar o Portugal de hoje, sem que nos venha à cabeça. Não se trata de diminuir Portugal nem de lhe faltar ao respeito, e sim de manifestar uma certa consternação e mesmo desapontamento pelos caminhos que trilhamos.

Claro que, ao longo da nossa longa História, lá fomos encontrando saídas para situações de impasse, umas vezes com brio e coragem, outras com alguma dose de malandrice. Mas nunca como hoje, uma vez que estamos em democracia, o futuro esteve dependente da vontade expressa do povo e não apenas de elites mais ou menos esclarecidas.

O 25 de Abril, já lá vão quase 50 anos, isto é, mais do que durou a ditadura do Estado Novo, veio devolver a palavra a todos os portugueses, um a um, independentemente de sexo, idade, condição social ou riqueza. É seguramente, uma situação que exige muito mais responsabilidade de todos nós. Apesar de tudo, os primeiros anos do regime democrático, ultrapassada a fase revolucionária, vieram mostrar um povo adulto e que sabe muito melhor o que quer do que muitos imaginariam. 


Mas o regime assenta na escolha de partidos para a governação nacional e das autarquias locais, além das duas regiões autónomas. E os partidos, que no início do regime receberam no seu seio as elites sociais que se tinham formado intelectual e profissionalmente durante o antigo regime, à esquerda e à direita, foram evoluindo internamente vendo-se hoje, pela simples passagem do tempo, que são dirigidos por dirigentes políticos que ou eram crianças pequenas em 74 ou já nasceram depois disso. A sua formação política, em grande parte, ou na sua grande maioria fez-se nas juventudes partidárias, de onde passaram para os partidos e daí para as comissões concelhias e distritais, seguindo-se lugares nas autarquias locais e na assembleia da República. E esta formação política sobrepõe-se largamente, e notoriamente, à formação académica e profissional, criando bolhas partidárias estranhas aos verdadeiros problemas dos portugueses e, sobretudo, da economia real das empresas que tudo paga através dos impostos sobre a produção e sobre os empregos.

Aqui estará grande parte da justificação  do estado anémico da nossa economia que se reflecte numa descida de Portugal no ranking europeu do produto per capita sendo ultrapassado já pela maioria dos países, já que o rendimento per capita foi em 2021 de 75% da média europeia, quando era de 78% em 2015, logo depois do governo da troica. Isto apesar da chuva de milhares de milhões da União Europeia.


Os partidos e a sociedade radicalizam-se à esquerda e à direita, enquanto os partidos do centro se mostram incapazes de dar o salto necessário. O PS, embora governando em maioria absoluta, afunda-se na mais completa incapacidade de reformar o país, enredando-se num discurso de pura defesa do poder. O PSD, embora consiga agora criticar a governação no concreto, não mostra ao país um conjunto coerente de propostas alternativas que alterem o rumo do país. A economia precisa essencialmente que a deixem evoluir nas direcções que entender serem as melhores, livrando-se definitivamente do dirigismo socialista que acha que tudo sabe e tudo quer orientar. A carga fiscal portuguesa sobre a economia é uma canga pesada que dificulta a competitividade das nossas empresas somando-se à excentricidade do país relativamente ao centro geográfico europeu. E, muito importante, o PSD não dá uma resposta definitiva sobre a sua relação futura com o partido Chega, num sentido ou no outro, espero eu que clarificando a recusa absoluta de qualquer acordo, seja em que situação for. Já basta o que o país sofre em consequência da Geringonça que colocou o governo do PS alegremente nas mãos chantagistas do BE e do PCP, para que o PSD venha a cair no mesmo erro.

Os principais serviços públicos, com a Saúde e a Educação à cabeça, mas também a Justiça e as forças de Segurança como o SEF, atravessam crises de uma profundidade impressionante. É claro para toda a gente que nenhum deles voltará a ser o que eram há uns vinte anos, porque o dinheiro necessário para os recuperar sem reformas profundas pura e simplesmente não existe.

Nos últimos tempos percebe-se claramente que o presidente da República está angustiado com a consciência da situação. E sabe bem que, apesar da situação de estagnação da governação, é muito provável que eleições antecipadas não fossem alterar a situação, sendo quase certo que o PS se colocaria de novo nas mãos da esquerda mais radical.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 Fev 2023

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terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Parques e Jardins

 


Uma das primeiras obrigações de qualquer autarquia é cuidar do espaço público. Quando tal não acontece, as implicações no bem-estar das populações e consequente qualidade de vida são graves. A qualidade do espaço público urbano é essencial para a sustentabilidade das cidades, a nível ambiental, mas não só. Quando se fala de espaço público é frequente considerar apenas as ruas, com os seus passeios e vias rodoviárias, importantes para a mobilidade, mas os parques verdes e jardins têm uma importância semelhante.

Felizmente, Coimbra tem diversos parques urbanos que transmitem à cidade uma vivência muito própria. À cabeça surge, naturalmente, o Jardim Botânico com a sua mata anexa. Trata-se de um parque de excelente qualidade, muito bem cuidado, talvez por pertencer à Universidade de Coimbra e servir de base a estudos e trabalhos científicos. Está aberto à comunidade de forma gratuita e tem características únicas que lhe conferem uma apetência grande para adultos, mas também crianças. Talvez por encerrar ao fim do dia, é um parque seguro e de muito agradável fruição.

O mesmo não sucede com o parque de Sta Cruz, a Sereia como é mais conhecido, com um valioso património arquitectónico e artístico permanentemente alvo de um vandalismo inaceitável. Há muitos anos que a Autarquia não consegue acertar com uma solução que resolva o problema da falta de segurança quase permanente, mas acentuada a partir do meio da tarde. É igualmente notória a falta de cuidado com a manutenção de equipamentos e limpeza, o que evidentemente diminui ou anula mesmo a capacidade de atracção deste belíssimo parque situado mesmo no interior da Cidade. Não seria altura de dotar a Sereia de estruturas de utilização colectiva aberta e atraente que chamem os moradores vizinhos, mas não só, de forma a trazer para dentro dela cidadãos das mais diversas faixas etárias?


A Cidade sofreu uma mudança radical, para melhor, com a construção dos dois parques verdes nas duas margens do Mondego. Se, até então, Coimbra tinha o Mondego nas canções e pouco mais, a Cidade passou a estar virada para o seu rio com permanentes multidões a usufruir dos novos equipamentos. Curiosamente, o primeiro a ser feito, na margem direita, parece ter servido de teste para os projectistas que emendaram a mão no projecto da margem esquerda. Se aquele carece notoriamente de árvores e respectivas sombras, bem como de bancos para os utentes, o da margem esquerda tem tudo isso em quantidade, sendo muito mais agradável de utilizar, principalmente nos quentes meses de Verão. Passados estes anos talvez fosse altura de renovar o parque verde da margem direita, dotando-o de melhores condições de fruição, já que aquele espaço não pode servir para pouco mais que frequentar os restaurantes. E a ponte pedonal de Pedro e Inês com tantos vidros partidos não merece mais cuidado?

Mas logo ali entre o Parque Verde e a Portagem encontra-se o antigo Parque Dr. Manuel Braga. No seu site a Câmara Municipal informa-nos tratar-se de um «parque emblemático da Cidade» e tem razão. Só que…


Este parque foi objecto de uma empreitada de requalificação no montante de quase 4 milhões de euros que durou mais de dois anos tendo terminado há pouco tempo, estando já aberto ao público. Do conjunto de trabalhos aparecia em primeiro lugar a «Requalificação paisagística do parque com a substituição de espécies vegetais, que inclui a elaboração do estudo fitossanitário». Infelizmente, percorrendo-se hoje o parque, o que se vê é de uma tristeza quase indescritível, desde a quase total ausência de canteiros de flores, a um estado péssimo dos pavimentos e à existência de espaços sem qualquer utilização, onde antes existiam canteiros de grande dimensão. Será que este trabalho essencial foi retirado do Caderno de Encargos? Ainda bem que foram construídos novos muros sobre o rio, em substituição dos antigos que ameaçavam ruina. E ainda bem que os antigos azulejos dos bancos foram recuperados. Mas ninguém dos projectistas e do Dono de Obra se lembrou de forrar os muros de betão dando-lhes um aspecto mais consentâneo com as características próprias deste Parque com mais de cem anos? A vista a partir da margem esquerda é deprimente.

Coimbra tem mais parques e jardins , embora de menor dimensão, que não de interesse. A placa central da Av. Sá da Bandeira é um deles, estando normalmente, e felizmente, bem cuidado. Neste caso, a pandemia serviu para alterar hábitos, permitindo-se a colocação de esplanadas, e ainda bem. Coimbra sempre teve a característica de ter muitas flores em numerosos jardins. Também nesse aspecto está a ser ultrapassada por outras cidades, vejam-se os exemplos de Braga, ou Guimarães. Recuperemos o tempo perdido e cuidemos do nosso espaço público para bem de todos nós, com competência, mas também com amor pela nossa cidade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Fevereiro de 2023

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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

HÁ 200 ANOS, HÁ 100 ANOS E HOJE


 Foi em 1823 e em 1923: datas em que acontecimentos mudaram o curso da nossa História mas que um pouco incompreensivelmente, ou talvez não, mostram que, apesar de tudo, as nossas circunstâncias não mudaram tanto como era suposto ter acontecido. À vista é tudo diferente dos nossos dias, mas abaixo da superfície há muitas, mesmo demasiadas, semelhanças. Um pouco à imagem da frase que Tomasi de Lampedusa colocou na boca do príncipe de Falconeri no seu «O Leopardo»: «Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude».

As invasões francesas tinham deixado o país praticamente destruído e exangue. A corte portuguesa, num total de cerca de 15.000 pessoas, muito sensatamente tinha fugido para o Brasil perante o olhar desconsolado de Junot, a 27 de Novembro de 1807. O último invasor derrotado e já em fuga, Massena, tinha atravessado a fronteira com Espanha em Abril de 1811, mas o país continuou praticamente ocupado, desta vez pelo ingleses, que nos transformaram num protectorado regido pelo Marechal Beresford. O povo português passou a odiar o inglês de uma forma generalizada pela forma sobranceira e mesmo brutal como agia, lembrando-se aqui o sucedido a Gomes Freire de Andrade e seus companheiros. Só depois da revolução liberal de 1820 o rei D. João VI se decidira a deixar o Brasil e regressar a Portugal onde desembarcara em 4 de Julho de 1821. Logo em Julho de 1822 as Cortes constituintes aprovariam a Constituição que proclamava a soberania do povo, marcando eleições para a Câmara de Deputados em Agosto, precisamente quando o Brasil proclamava a sua independência, sendo D. Pedro aclamado imperador do Brasil em13 de Outubro. Mas o regime liberal tinha sido implantado muito às costas do povo e o caldo de revolta contra a nova ordem política permitiu a reacção da «Vilafrancada» conduzida por D. Miguel em Maio de 1823. Daí até à guerra civil entre 1832 e 1835 seria um passo. Os liberais venceriam os absolutistas, mas o país ficou ainda mais pobre com divisões que ainda hoje são perceptíveis de quando em quando.


Em 1 de Fevereiro de 1908 deu-se o terrível atentado que vitimou o rei D. Carlos e o filho primogénito herdeiro da coroa Luís Filipe. A Monarquia terminou em 5 de Outubro de 1910 tendo-se-lhe seguido a Primeira República. O Partido Democrático governou o país até 1915 mas, logo em 1917, uma ditadura militar apareceu sob a chefia de Sidónio Pais que se fez eleger presidente em Abril de 1918, tendo ficado conhecido como «presidente-rei» apenas para ser assassinado em Dezembro desse mesmo ano. O país praticamente entrou de novo em guerra civil, desembocando na célebre «noite sangrenta» em 19 de Outubro de 1921 em que foram barbaramente assassinados, entre outros, o presidente do Ministério António Granjo, e dois históricos da proclamação da República, Machado Santos e José Carlos da Maia. Desde 1921 até 1925 o Partido Democrático foi governando com governos a sucederem-se sucessivamente. O ano de 1923 foi apenas um ano no meio desta situação que durou até que se verificasse um novo pronunciamento militar estando criado o ambiente de boa recepção a quem viesse «pôr ordem no país». E foi preciso pouco tempo até que essa revolta surgisse em Braga em 1926 e dessa vez dando origem a uma «ditadura militar» que por sua vez desembocaria no regime civil ditatorial do «Estado Novo» com Salazar, regime que só viria a terminar em 25 de Abril de 1974.

Aldous Huxley escreveu que «Talvez a maior lição da História seja que ninguém aprendeu as lições da História». A constatação de ciclos políticos, ainda que de cem anos, só é possível depois dos sucessos acontecerem. Mas é possível detectar os ambientes sociais que se criam, embora os responsáveis por tal não o consigam fazer porque vivem dentro de uma bolha que os impede de observar a realidade. E é precisamente essa situação de distanciamento da classe política (governantes e oposição) que cria situações de cansaço que leva muito rapidamente a revoltas generalizadas. Quem pensa que pelo facto de as pessoas terem um aspecto mais moderno e actualizado estão também completamente diferentes no seu íntimo, poderá estar muito enganado. Há estigmas socialmente enraizados durante séculos que não desaparecem instantaneamente por obra e graça de leis ou decretos. E os responsáveis políticos, todos eles, deveriam estar conscientes disso, em vez de confiar cegamente nos efeitos da chuva de dinheiro da União Europeia. Até porque há sempre alguém à espreita para se aproveitar dos ambientes sociais degradados. E a segurança colectiva é algo que ninguém pode dar por garantido como os ucranianos constatam há quase um ano.

Publicado origialmente no Diário de Coimbra em 30 Janeiro 2023

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segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Perplexidade absoluta

 


Os portugueses têm observado com o maior espanto toda a absurda sucessão de problemas com membros do Governo, incluindo a demissão de vários deles. Esse espanto é tão maior quanto o Governo goza de maioria absoluta, pelo que os seus problemas internos não podem ser atribuídos a ninguém estranho ao mesmo, nem sequer à Oposição que, notoriamente, ainda não encontrou o seu caminho com vista a construir uma hipótese de alternância. O caso mais incompreensível foi mesmo a saída de uma secretária de Estado um dia depois de ter ido ao Palácio de Belém para o Presidente da República lhe dar posse. Já a TAP e a sua gestão por parte do Estado, responsável por tal desde a re-nacionalização, foram razão para a demissão de um ministro e dois sec. de Estado; acresce que o ministro em causa era Pedro Nuno Santos, um dos mais notórios membros do Governo, apontado por muitos como o mais importante candidato para substituir António Costa quando este vier a deixar a liderança do PS. Pedro Santos que veio agora reconhecer, sabe-se lá com que objectivo por enquanto escondido, o que antes havia negado, com a justificação inacreditável da observação da «linha do tempo».

Como resultado da perplexidade nacional com a situação, o primeiro-Ministro deu um passo em frente e tirou da gaveta uma solução para evitar a sua repetição futura. E que solução: um questionário de investigação prévia a ser respondido por todos os possíveis governantes por si convidados. E correu outra vez tudo mal. Primeiro, António Costa pretendeu corresponsabilizar o Presidente da República que de imediato lhe lembrou que a escolha dos membros do Governo é uma responsabilidade do primeiro-Ministro e só dele. Depois, o rol das 36 questões que foram objecto de uma aprovação através de uma simples Resolução de Conselho de Ministros é considerado ridículo e até inútil pelos mais diversos sectores, à esquerda e à direita. Mais parece um processo de o próprio primeiro-Ministro se tentar livrar de responsabilidades em casos que eventualmente venham a surgir no futuro, atribuindo-as apenas ao membro do Governo que venha a falhar, mas que foi escolhido politicamente por ele próprio. Com a consequência perversa de afastar personalidades com carreira profissional ou empresarial que, pura e simplesmente, nunca aceitarão responder a tal questionário, ainda que venha a ser destruído mais tarde. A seriedade e a transparência que devem estar no cerne das escolhas dos governantes, que é sempre política, perdem estatuto face à necessidade imperiosa de garantir a pureza judicial e tributária dos cidadãos convidados. Na realidade a única pergunta a fazer aos convidados para governante deveria ser se conhece a legislação das incompatibilidades e se está de acordo com o seu cumprimento. Com alguma ironia, em face do que temos visto e ouvido, talvez caiba acrescentar aqui outra pergunta, que seria a de saber da disponibilidade do futuro governante para mentir aos portugueses. Restará como campo de escolha o exército de prosélitos partidários que, as mais das vezes, não têm qualquer currículo académico, laboral ou empresarial para apresentar, para além da sua carreira laboriosamente construída na jota e no partido.

O desnorte político do país é absoluto. Uma verdadeira caça às bruxas, tendo como objecto os políticos sejam eles governantes, deputados, autarcas ou apenas líderes partidários, atinge o clímax por estes dias, bastando ver as capas dos jornais diários para o verificar. Já não é a política, com a respectiva e necessária escolha de soluções diversas para os graves e imensos problemas nacionais que parece estar em causa. Com raras e honrosas excepções, a competência e capacidade de trabalho estão esquecidas perante a descoberta diária de actuações desastradas e denunciadoras de interesses obscuros que deveriam estar bem afastadas da política. E os responsáveis não são os habituais suspeitos extremistas populistas. Antes políticos profissionais bem ancorados no sistema que se convenceram de que uma maioria absoluta, que em democracia é temporária, lhes permite agir como se fossem donos de tudo. 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 23 Janeiro 2023

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segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Primeiro, tomamos Washington, depois Brasília


É demasiado evidente para ser coincidência. Quando se preparava a tomada de posse do presidente eleito dos EUA Joe Biden há dois anos, milhares de apoiantes do presidente/candidato derrotado Donald Trump invadiram de forma aparentemente caótica o Capitólio, casa da Democracia americana. E todo o mundo testemunhou em directo pelas televisões o que se passou. Na sequência de um apelo de Trump para se manifestarem, os seus apoiantes, muitos deles mascarados e outros vestidos da forma mais extravagante apelando a sentimentos retrógrados e violentos, tomaram conta das instalações pela força, destruindo equipamentos e obras de arte e invadindo mesmo gabinetes de representantes e a própria sala do plenário. Enquanto isto se passava, os representantes, congressistas e senadores, tiveram de fugir escondendo-se em gabinetes trancados durante toda a tarde e boa parte da noite, enquanto as forças de segurança tentavam tomar conta da situação, o que demorou muitas horas.

Tudo isto sucedeu porque Donald Trump se recusava a aceitar o resultado eleitoral a que chamava mesmo fraude eleitoral, apelando aos «patriotas» a revoltarem-se para que a «sua» casa Branca não fosse ocupada pelo presidente democrata eleito. Os resultados eleitorais revelaram de facto um país praticamente dividido politicamente ao meio, mas sobretudo, radicalizado de uma forma preocupante num clima que se diria de quase pré-guerra civil, não fora a existência de sólidas instituições. Há mesmo analistas quem defendem que se desenvolveram na sociedade americana fortíssimas franjas evangélicas extremistas dentro do cristianismo, à imagem dos extremistas islâmicos que deturpam a mensagem original de paz da sua religião.


E agora aconteceu algo semelhante em Brasília, no rescaldo da eleição presidencial ganha por Lula em que o anterior presidente Bolsonaro foi derrotado. Depois das eleições Bolsonaro praticamente desapareceu da cena política e nunca reconheceu publicamente que Lula havia vencido, argumentando com fraude eleitoral nunca provada tal como Trump fez, não comparecendo à cerimónia de tomada de posse como é tradição fazer. Poucos dias depois dessa cerimónia alguns milhares de apoiantes do presidente derrotado invadiram o centro de Brasília e ocuparam a Praça dos Três Poderes e os edifícios do Congresso, Planalto e Supremo Tribunal. Tal como tinha acontecido em Washington as forças de segurança demoraram a actuar de uma forma algo incompreensível com a agravante de em Brasília ter sido possível ver polícias em confraternização com os invasores.

Ainda de forma mais visível do que acontecia com Trump, Bolsonaro era apoiado por facções evangelistas extremistas fazendo mesmo dessas ideias a base fundamental das suas opções políticas, ia dizer ideológicas, mas não me parece que o cheguem sequer a ser.

Como todos sabemos, a América do Sul e Central sempre foi pródiga em substituição sucessiva de regimes de esquerda ou de direita através de golpes militares. O Brasil também passou por uma experiência de ditadura militar entre 1964 e 1985 e é agora possível verificar a existência de muitos saudosos desse tempo que esperavam ver a invasão a Brasília ser seguida de um golpe militar, o que não sucedeu.

Os maiores países das Américas, em termos populacionais e económicos, que são os EUA e o Brasil vivem em Democracia e foi possível verificar que as instituições que devem garantir a estabilidade democrática funcionaram nas situações em que estiveram em perigo. Contudo, estas situações não caíram do céu, antes tendo sido consequência de problemas sociais graves que se mantêm. As sociedades americana e brasileira estão divididas praticamente ao meio e as posições de ambos os lados estão perigosamente extremadas em ambos os países.

Cabe aos vencedores terem a capacidade de baixar os níveis de confronto encontrando formas de conciliação social. Tal obrigará a estabelecer pontes com os adversários e aguentar as pulsões vingativas dos seus apoiantes. Para tal terão de ter capacidade para resolver os verdadeiros problemas das sociedades, com seriedade e abandonando populismos extremistas. Se não o fizerem, serão muito provavelmente mordidos pela cobra que nascerá do ovo que estarão a chocar. É o futuro em paz e progresso que o exige.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 Jan 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Observar a realidade


É com os nossos olhos que observamos a realidade que nos rodeia. Por observar entendo o que podemos ver, mas também o que sentimos que resulta da nossa mundividência e da capacidade de sentir que acrescentamos durante a vida à nossa própria maneira de ser. Como dizia Ortega Y Gasset, nós somos nós e a nossa circunstância.

Fruto do que assim vejo surgem estas crónicas semanais que o Diário de Coimbra “generosamente acolhe nas suas páginas” desde há mais de 17 anos. E há muito para observar. A começar pela política, quer a nível nacional, quer mais local ou regional, que a política praticamente tudo determina na nossa vida, principalmente ao vivermos em Democracia em que, não só temos o direito, mas também o dever de participar na vida colectiva o que não se resume a ir depositar o voto na urna aquando das eleições. Infelizmente, nos últimos vinte e tal anos a política não tem sido muito eficaz ou mesmo competente no nosso país e disso se ressente a economia e os bolsos dos portugueses, fundamentalmente em comparação com os nossos parceiros da comunidade europeia. Isto, enquanto despeja em Portugal milhões de euros por dia, todos os dias.

Mas há muito mais para observar à nossa volta. A Cultura faz parte da nossa vida, quer participando em associações culturais, quer assistindo a concertos do mais diverso tipo ou peças de teatro, quer indo a exposições e fazendo visitas a museus ou participando em colóquios. Poucos de nós somos artistas, mas todos podemos apreciar o resultado do trabalho dos que o são, tendo a consciência de que a Arte nos eleva o espírito pela observação do Belo, mas que a Arte anda também normalmente à frente da realização humana, abrindo novos caminhos e iluminando novas perspectivas. Ler livros, muitos! jornais e revistas é imprescindível para conhecer e compreender o outro na sua infinita variedade.

A informação chega-nos hoje muito pela internet, pela pesquisa com motores de busca que nos colocam instantaneamente disponível praticamente tudo o que queremos saber, tendo acabado com as enciclopédias em papel tornadas inúteis pela impraticabilidade da sua actualização, tal é a velocidade de transformação do mundo actual. Mas nem tudo o que se lê na internet é verdade e todos os cuidados com isso são poucos. Em particular, as redes sociais são veículo privilegiado para a disseminação de informação falsa, sendo necessário conferir a adesão à realidade de tudo aquilo que nos aparece no computador. A metodologia utilizada pelas redes sociais, os chamados algoritmos, deve também ser tida em conta já que a utilização dos chamados amigos ou seguidores tende a afunilar pelos interesses comuns, impedindo a livre discussão e o conhecimento de diferentes opiniões. Daí até ao extremismo do “eles e nós” vai um pequeno passo que muitos de nós damos sem dar conta disso.


Mas a internet oferece-nos ainda a possibilidade de nos actualizarmos a nível científico, pelo menos naquele mínimo que todos nós devemos conhecer para entendermos o mundo actual e como podemos prever que será no futuro próximo.

A economia invadiu a nossa vida de uma forma impensável ainda há poucos anos. O funcionamento do sistema bancário, as relações entre os diversos aspectos da economia, designadamente entre as forças produtivas agrícolas e industriais e a comercialização dos produtos produzidos num mundo globalizado exigem de todos nós um conhecimento mínimo que é muito mais aprofundado do que era o de muitos especialistas na matéria ainda há poucas dezenas de anos.

Todas estas áreas, de uma forma ou outra, têm sido objecto de atenção nestas 895 crónicas publicadas ao longo destes anos. A razão da escolha de tantos e tão variados temas deverá ser agora mais clara, não tendo nada a ver com aquilo a que muitos chamam ser «tudólogo», já que as opiniões apresentadas são justificadas e nunca assumem a forma de posição de certeza definitiva. Os leitores mais atentos ou dedicados detectarão certamente alguma evolução no pensamento do autor destas linhas ao longo do tempo. Penso que tal é compreensível já que, como diz o nosso povo na sua sabedoria, só os burros não mudam de opinião. Penso que o mais importante num cronista é ter respeito, em primeiro lugar pelos leitores que nunca deverá tentar manipular ou mesmo enganar, e depois pela sua própria consciência. No que me diz respeito, penso que a independência perante partidos, igrejas ou outras comunidades tem sido uma constante, certamente com uma evolução no sentido de se tornar cada vez mais forte.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 9 de Janeiro 2023

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segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Começar (muito) bem o ano e acabar (muito) mal

 


António Costa começou o ano de 2002 com uma vitória eleitoral que lhe proporcionou uma maioria absoluta no parlamento. E começou por declarar que «maioria absoluta não é igual a poder absoluto». Frase que marca um início se uma legislatura, tal como a de António Guterres, ao afirmar anos antes, em aviso ao Partido Socialista após vencer as eleições legislativas: «no jobs for the boys». Frases fortes ditadas por um optimismo excessivo dos líderes que as pronunciaram ou apenas uma forma de tentar construir uma narrativa disruptiva da realidade de todos conhecida. De qualquer forma, todos sabemos no que deu a governação de Guterres no que respeita ao aspecto a que ele se referia, certamente consequência da sua notória dificuldade em dizer não seja a quem for. É certo que as idiossincrasias pessoais se reflectem normalmente na actividade de toda a gente, mas não convém muito que tal facto tenha consequências negativas a nível da governação de um país.

Já a afirmação de António Costa acaba de ter a demonstração da sua importância, mas desta vez pelo absurdo. A sensação de poder absoluto exercido pelo seu governo é cada vez mais generalizada, tendo atingido o pico com esta história da indemnização paga a uma administradora da TAP aquando da sua saída da companhia aérea nos primeiros meses de 2022e do que se lhe seguiu: ida para presidente da NAV e saída desta para secretária de Estado do Tesouro, no Ministério das Finanças. Contextualizando, a TAP que tinha sido privatizada pelo governo Passos Coelho foi de novo nacionalizada pelo governo de Costa conhecido por Geringonça. Passou, portanto, a pertencer ao sector público empresarial, aplicando-se-lhe as regras de gestão inerentes. Dado que essas regras impedem a contratação de gestores a nível internacional pelos valores máximos legalmente definidos, o governo decidiu isentar a companhia aérea do cumprimento dessas normas, contratando uma gestora estrangeira por um valor extraordinário para uma empresa pública portuguesa. Manteve, contudo, a maior parte das regras do sector público, designadamente no que toca a despedimentos e cumprimento de deveres perante as tutelas do Estado, no caso os ministérios das Infraestruturas e Finanças. Perante a incompatibilidade entre a presidente e a administradora Alexandra Reis, esta foi afastada com uma indemnização de meio milhão de euros em Fevereiro de 2022. 


Depois disso foi nomeada pelo Governo e mesmas tutelas da TAP para a NAV Portugal, empresa pública que gere o tráfego aéreo em Portugal, tendo o respectivo pedido de parecer à CRESAP entrado logo no início de Abril. Alexandra Reis passou a presidir à NAV em Julho, mas por pouco tempo. Logo em 2 de Dezembro tomou posse como sec. de Estado do Tesouro. Mas o montante da indemnização era uma autêntica mina terrestre no caminho do governo. E quando a imprensa noticiou o caso a mina explodiu e levou pelos ares a sec de Estado do Tesouro e também o sec. de Estado e o poderoso ministro das Infraestruturas quando se soube que esse ministério tinha tido conhecimento do acordo de saída da antiga administradora da TAP.

Todo este processo, desde o funcionamento da gestão da TAP à saída da administradora, sua ida para a NAV e posterior cargo governamental até às evidentes guerras políticas ministeriais, passando pelo secretismo de tudo o que já se conhece e do que ainda apenas se adivinha é indiciador de um «quero, posso e mando» governamental. Que é o tal poder absoluto que Costa garantia em Março não ir existir.

Acresce que esta última saída do governo é a 11ª desde que tomou posse em Março último, numa sucessão impressionante de casos lamentáveis. O último, antes deste de Alexandra Reis, tinha sido protagonizado pelo anterior sec. de Estado adjunto do próprio António Costa, antigo presidente da Câmara de Caminha onde procedeu a adjudicações inacreditáveis.


O ex-ministro Pedro Nuno Santos justificou a sua saída por assumir a responsabilidade política «face à perceção pública e ao sentimento coletivo gerados em torno deste caso». O problema assumido foi mesmo a percepção pública do caso e não o caso em si. Está tudo dito, para quem quiser entender.

António Costa que, três dias depois destas demissões ainda não se manifestou publicamente sobre o assunto, pode ter começado o ano de 2022 da melhor maneira, mas não poderia terminá-lo de pior maneira tendo, ainda por cima, sido desmentido pela realidade nas suas promessas.


Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 2 de Janeiro 2023
Imagens retiradas da internet