Carolina Beatriz Ângelo foi a primeira mulher a votar em Portugal. Tal aconteceu nas Eleições para a Assembleia Constituinte, em 28 de Maio de 1911. Mas para que tal acontecesse, Beatriz Ângelo teve que provar, em tribunal, que era «chefe de família» uma vez que era viúva e tinha uma profissão que lhe permitia sustentar a sua filha. Foi, contudo, uma vez sem exemplo, já que o novo regime republicano fez logo a seguir sair legislação que apenas dava aos homens o estatuto de «chefe de família» retirando às mulheres o direito de votar que continuaria, aliás, durante todo o regime do «Estado Novo». Só com o 25 de Abril de 1974 as mulheres portuguesas viriam a adquirir, em pleno, o direito de votar em igualdade com os homens.
O sucedido foi ainda mais significativo para Beatriz Ângelo dadas as suas profundas convicções republicanas, defendendo ainda a igualdade entre homens e mulheres como sufragista militante. Beatriz Ângelo ficou de tal forma chocada que se chegou a referir aos republicanos com desprezo, exceptuando Afonso Costa A atitude do novo poder republicano, no que toca ao voto feminino, dever-se-ia à vontade de restringir o direito de voto ao máximo, de forma a deixar de fora grandes franjas do povo que poderiam provocar o regresso à Monarquia..
Beatriz Ângelo foi ainda a primeira mulher portuguesa a licenciar-se em Medicina e a exercer a sua profissão por inteiro, sendo também a primeira mulher a operar no Hospital de S. José, tendo-se especializado em Ginecologia. Tinha nascido perto da Guarda em 16 de Abril de 1868 numa família politicamente liberal, tendo estudado no Liceu da Guarda e concluído a sua licenciatura na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa em 1902. Faleceu muito nova de síncope cardíaca, aos 33 anos, em 3 de Outubro de 1911, poucos meses depois das eleições em que participou.
A atribuição do seu nome a um grande Hospital em Loures foi, portanto, um acto de grande simbolismo e da maior justiça por se tratar da primeira médica portuguesa e de uma mulher de fortíssimas convicções que fazia valer mesmo perante injustiças e erros cometidos por quem lhe era próximo politicamente. Uma atitude que ainda hoje, ou sobretudo hoje, devia ser seguida pelos defensores dos diversos partidos que tantas vezes praticam um proselitismo insuportável.
É por tudo isto que o que se tem sabido sobre o que se tem passado no Hospital Beatriz Ângelo se torna ainda mais revoltante. Após todas as notícias sobre enormes atrasos sistemáticos em consultas e cirurgias, foi há poucos dias notícia a demissão de 11médicos chefes da urgência geral que se sucedeu ao fecho da urgência pediátrica à noite e aos fins de semana. Sabendo-se que os hospitais de D. Estefânia e de S. José já estão a trabalhar nos limites, imaginam-se as consequências de arcar com a sobrecarga originada pelo fecho das urgências do Beatriz Ângelo, que é a segunda maior urgência pediátrica de Lisboa e Vale do Tejo. As imagens e os relatos dos familiares dos doentes das urgências do Hospital Beatriz Ângelo são aterradoras, denunciando um estado perfeitamente caótico inaceitável num país civilizado que se orgulha do seu SNS.
A situação torna-se ainda mais incompreensível quando os relatos de utentes mostram a diferença do serviço prestado pelo hospital na actualidade e até há dois anos, quando funcionava em regime de Parceria Publico-Privada. Percebe-se porquê. Quando era uma PPP o hospital não se podia permitir a chegar a uma situação destas porque o Estado nunca o permitiria. Tendo passado a ser de gestão pública caíram-lhe em cima todas as deficiências de funcionamento, e principalmente de gestão, que nos últimos anos têm caracterizado o SNS. Os governos de António Costa acabaram com as PPP na saúde que funcionavam bem e saiam mais baratas ao erário público. Agora temos o que se vê e a comparação torna-se inevitável. Aliás, é o próprio autarca de Loures insuspeito de «neo-liberalismo» e que até é do partido do Governo, a reconhecer a realidade e a descida radical de qualidade dos serviços prestados às populações. O Governo queixa-se da falta de pediatras, mas a realidade é que os hospitais privados não se queixam do mesmo. Alguma razão haverá para que isto suceda e, para ser inteiramente verdadeiro, toda a gente vê qual é: a falta de condições de trabalho oferecidas pelo SNS aos profissionais da saúde promoveu um crescimento significativo da oferta privada, ajudado pela ADSE dos funcionários públicos e pelo crescimento dos seguros privados de saúde.
Catarina Beatriz Ângelo, pelo seu exemplo de vida, merecia mais respeito pelo legado que deixou, para além dos cidadãos servidos pelo Hospital que leva o seu nome não deverem ser considerados de segunda categoria por complexos ideológicos de governantes.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Março de 2023
Fotos retiradas da internet