segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Obras públicas

Este é um assunto que me é muito caro e ao qual já dediquei algumas linhas nestas crónicas, tentando divulgar alguns aspectos fundamentais.
De uma forma que direi quase sistemática, as obras públicas são fonte de notícias pelas mais diversas razões, normalmente bem desagradáveis para os cidadãos.
Uma obra pública é, por definição, uma obra levada a cabo por uma entidade pública, que será utilizada pela comunidade e que é construída com dinheiros públicos, isto é, provenientes dos impostos dos cidadãos. Só por isso, deveria distinguir-se das obras levadas a cabo por particulares, sejam pessoas singulares ou empresas, que aí aplicam os seus recursos próprios. Isto é, quem é responsável pelas obras públicas tem, ou deveria ter, uma grande preocupação com a utilização das verbas necessárias, que não são suas e sim de todos, o que exige um muito maior cuidado na sua utilização.
De facto, verificam-se diferenças entre umas e outras. No entanto, o que distingue, entre nós, obras públicas de obras particulares, é que estas raramente custam mais do que previsto e terminam nos prazos acordados, enquanto aquelas muito raramente atingem esses objectivos.
Tudo tem início na decisão de fazer a obra pública e na definição do programa. Os critérios de decisão dependem frequentemente de factores não mensuráveis, de carácter político ou mesmo pessoal, que se sobrepõem à efectiva necessidade daquele investimento e da capacidade financeira para o fazer, para não falar da sua sustentabilidade económica ao longo do período de vida útil.

A seguir vêm os projectos e residirá aí a maior falha das obras públicas. Os donos de obra (decisores políticos, neste caso) têm normalmente uma falta de experiência aflitiva relativamente a estes assuntos. Gostam de chamar arquitectos de renome, esperando que parte do seu prestígio lhes passe para eles por osmose. Ficam, na maior parte dos casos, sem capacidade crítica sobre os projectos, colocando-se nas mãos dos projectistas. Depois, querem fazer ou lançar as obras nos seus mandatos, apressando a fase de estudo e projecto, que é o momento em que se devem tomar as grandes opções e onde é preciso tempo para definir a obra de forma completa. Nesta fase, é frequente atropelar-se tudo, fugindo a uma boa coordenação dos diversos elementos de projecto (arquitectura e especialidades), caindo-se mesmo no erro fatal de não mandar fazer a revisão dos projectos a uma entidade independente antes do lançamento do concurso para a obra. Tudo isto é crucial para retirar espaço a erros de projecto e imprevistos durante a obra.

No momento da adjudicação, o mais fácil é entregar a obra à proposta de preço mais baixo. Mas, como diz o povo, o que é barato sai caro e as propostas muito baixas escondem normalmente truques que levarão a que no fim da obra o preço suba muito, anulando a suposta vantagem inicial.
Depois temos a execução das obras. Dando de barato que se cumpriram as boas práticas até esse momento, o que é raríssimo suceder nas obras públicas, o empreiteiro tem todos os elementos para cumprir o contrato. Haverá sempre lugar a decisões pontuais a que o dono de obra deverá responder em tempo útil, pelo que se deverá rodear de uma equipa de acompanhamento e fiscalização, com capacidade de resposta e competências delegadas.

Nunca o dono de obra se deverá prestar a alterações durante o decorrer dos trabalhos: se o projectista as propuser, deverá responder-lhe com uma pergunta que é se trouxe o livro de cheques, porque será ele a pagá-las.
Infelizmente, todo o processo relativo a obras públicas é frequentemente um conjunto deplorável de erros evitáveis, cujas consequências surgem apenas no fim. Todos os conimbricenses sabem bem do que falo, pelo que é desnecessário referir casos concretos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Fevereiro de 2014

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Baratas tontas


Um cidadão que se interesse pelo que acontece para tentar ter uma percepção minimamente verdadeira da realidade do país através da informação que lhe chega pelos meios de comunicação social tem muita dificuldade em consegui-lo. Não é por falta de meios. Hoje em dia, não é preciso ir procurar a informação, já que ela nos chega em catadupas pela televisão, pelos jornais e revistas e, cada vez mais, pela internet. O problema está em discernir o que é verdade e verdadeiramente importante, no meio do manancial que nos chega, por dois motivos essenciais: desde logo, pela necessidade de distinguir o importante da chamada espuma dos dias; depois, porque a informação nos chega cada vez mais filtrada pelos interesses dos mais diversos actores, sejam políticos, económicos ou apenas sociais.
Em consequência, os média saltam de assunto em assunto, tratando cada um deles com uma sofreguidão impressionante e tantas vezes confrangedora, atropelando de caminho a dignidade de pessoas, instituições e até, muitas vezes, a verdade que deveria ser o seu objectivo principal.
Para não ir muito atrás no tempo, relembro aqui alguns assuntos que dominaram por completo os media durante dias sucessivos, quase parecendo que todo o nosso futuro dependia daquilo, apenas até o novo substituir o anterior. Foi assim que se discutiram os “swaps”, dando a ideia de que toda a gente percebia mesmo aquilo. A adopção de crianças por casais homossexuais parecia a certa altura o assunto crucial da sociedade portuguesa. O Tribunal Constitucional também tem o seu lugar garantido com estrela da companhia quando é chamado a tomar alguma decisão.

Os estaleiros de Viana do Castelo, após anos e anos de quase inactividade laboral apareceram de repente como assunto dramático para a economia e política nacionais quando o governo, mal ou bem, pouco interessa para aqui, tentou encontrar uma solução para o seu futuro.

Mas isso só até os média se atirarem à magna questão das praxes universitárias, não tocando minimamente no problema, esse sim importante para o país, da qualidade de ensino, ou da falta dela, em grande número de ditas universidades. A venda de mais de oitenta quadros de Miró, por uma das empresas liquidatárias do BPN, pareceu transformar todos os portugueses em especialistas de arte, podendo até levar a crer que os museus que temos têm grande dificuldade em gerir as permanentes multidões que diariamente os vão visitar.
Provavelmente o leitor já nem se lembrará, mas aqui há umas semanas morreu o grande Eusébio. O coitado do grande jogador benfiquista nunca deve ter imaginado o entusiasmo com que os media pugnaram por depositar os seus restos no panteão nacional, tratando aliás esse cemitério como se de um templo religioso se tratasse.
O mais recente drama pungente do país é a saída do resgate, com ou sem programa cautelar, como se isso fosse uma questão ideológica e não uma decisão ponderada a tomar em consequência da situação económica e financeira no momento adequado, tendo apenas em conta os interesses do país.
Os portugueses são tratados como patetas pela maioria da comunicação social, com a televisão e os seus telejornais de uma hora e as suas estrelas apresentadoras e comentaristas à cabeça, eles sim que se comportam como baratas tontas. Será, talvez, sintoma de uma profunda alteração que se está a verificar na comunicação da informação aos cidadãos através da internet e que leva os meios tradicionais a tentar agarrar e tratar a informação como puro espectáculo, para se manterem á tona de água. Seja como for, tudo isto é muito desagradável para quem observa, ridículo para os seus actores do momento e acaba por retirar à comunicação social a credibilidade que lhe é essencial para sobreviver.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Fevereiro de 2014

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Sch!!!! Ouçam a música



Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.
…..
Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria…
Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!



Claudio Abbado costumava dizer que a queda da neve tinha um certo som; nada que nós portugueses não saibamos desde a infância, através do lindíssimo poema de Augusto Gil. O maestro falecido há poucas semanas admirava o silêncio das montanhas por onde desde criança gostava de passear, e que usava como elemento essencial das suas criações musicais. Não por acaso, no fim dos concertos chegava a ficar dois ou três minutos em suspense depois da última nota de Mozart ou do seu amado Bruckner se extinguir e antes de se virar para os aplausos.

 
De cada vez que dirigia uma peça, Abbado nunca a repetia, por mais vezes que a tivesse interpretado. As composições surgiam sempre diferentes, com vida própria. Quando substituiu Karajan à frente da Filarmónica de Berlim, a mesma orquestra, com os mesmos músicos, passou a ser outra completamente diferente. A sua forma de dirigir, sem imposições nem movimentos bruscos, quase que apenas com o sorriso e o olhar, fazia fluir a música de uma forma surpreendentemente subtil e aparentemente fácil, por mais complexa que fosse.
A sua maneira de interpretar a música de forma completamente diferente do que se conhecia até então, bem como uma capacidade muito própria para gerir personalidades vincadas como são os músicos em orquestras de altos níveis de exigência e excelência, marcaram vivamente a sua passagem pelas diversas orquestras que dirigiu. Os quase vinte anos em que dirigiu o La Scala da sua cidade natal, Milão, conduziram a uma mudança radical naquele teatro. Claudio Abbado fugia ao conservadorismo musical e levava as suas orquestras a interpretar obras de compositores contemporâneos como Alban Berg ou mesmo Stockhausen. Sempre virado para o futuro, deu força ao jovem maestro venezuelano Gustavo Dudamel e fundou três orquestras: a Orquestra Mozart de Bolonha, a Orquestra Juvenil da união Europeia e a Orquestra Juvenil Gustav Mahler.
Como já é tradição quando morre um seu Maestro, o Teatro la Scala despediu-se de Claudio Abbado de uma forma tocante: de portas abertas, mas com as cadeiras sem público que ouvia em pé no exterior do Teatro, a filarmónica tocou uma das peças preferidas do grande Maestro, a Marcha Fúnebre da Terceira Sinfonia “Eróica” de Beethoven, sob a direcção emocionada de Daniel Baremboim.
Ficam-nos as gravações, mas Claudio Abbado é insubstituível porque as suas interpretações eram recriações permanentes da música.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Fevereiro de 2014

http://youtu.be/5sl0eYgs6EA

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Shostakovitch

Não deverá ser fácil encontrar um artista que tenha sido vítima de maiores desencontros de mitologias políticas do que Dimitri Shostakovitch. Um dos grandes génios da música, sendo quase certamente o maior do século XX, este compositor Russo vê agora a sua obra criativa ser descoberta e apreciada, finalmente sem óculos ideológicos, quaisquer que eles sejam. Como merece aliás, sendo mesmo por muitos considerado o Beethoven do século XX. E não é nenhum desconhecido que o afirma: de acordo com Sviatoslav Richter, “Shostakovitch é um descendente de Beethoven, através de Mahler e de Tchaikovski”.
O desejo do regime soviético em apresentar um grande compositor como representante perfeito da sua ideologia foi chocando, ao longo da sua vida, com a sua liberdade artística que não estava de facto ao serviço de ninguém. Para seu azar, Stalin resolveu ir assistir em 1936 a uma das suas obras mais significativas a ópera Lady Mcbeth que, após dois anos de apresentações de sucesso, terminou ali mesmo. Terminou a apresentação da ópera que só voltou a ser representada na ex –URSS em 1963, e ia terminando muito mais para o compositor. Algumas figuras relevantes do regime soviético que ousaram furar a censura à obra foram pouco depois executadas às ordens de Stalin. Os ideólogos do regime, Jdanov à cabeça, não perdoavam a Shostakovich e a outros diversos compositores o “formalismo” e “cosmopolitismo” das suas obras, o que os definia desde logo como pouco preocupados com “as preocupações dos trabalhadores”, e os catalogava como “inimigos do povo”.
Na sequência da “destalinização” que se seguiu ao desaparecimento do “paizinho dos povos”, Shostakovich acabou por se inscrever no Partido Comunista, o que foi amplamente anunciado para o exterior, escondendo-se no entanto que o partido não reconhecia erros na sua actuação anterior perante os compositores censurados. Curiosamente, o compositor aproveitou o abrandamento da mão pesada para escrever algumas das obras mais críticas do poder soviético.
Com uma obra imensa, de que se destacam 15 sinfonias e numerosos quartetos e concertos, não será talvez uma surpresa assim tão grande que o reconhecimento automático da sua obra se faça em todo o mundo através de uma composição de um estilo diferente. Na realidade, a utilização pelo cinema das suas suites de jazz, nomeadamente a valsa da 2ª suite, acabou por levar o seu nome a muitas pessoas que não conheciam a sua obra e que a partir daí foram satisfazer a sua curiosidade em outras paragens musicais. Esta história da promoção a música clássica pelo cinema levar-nos-ia aliás muito longe, em particular nos filmes de Stanley Kubrick que, também usou a valsa da 2º Suite em “Eyes Wide Shut”, para além de Francis Ford Coppola no seu “Godfather”.
Em tempos de “guerra fria”, a música de Chostakovitch andou de andas para bolandas entre o bloco comunista e o bloco ocidental. Felizmente, todo esse tempo passou. Resta-nos a possibilidade de conhecer e apreciar a Arte de Dimitri Shostakovitch que não é, nem nunca foi, boa ou má por ser soviética ou anti-soviética. E acredite leitor, a sua música é uma surpresa mesmo para quem acha que a música dita clássica acabou com Mahler. Não é verdade, muito longe disso. Ouça as suas obras, entre as quais se destacam a sétima e a décima sinfonias, para ter a certeza disso.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Fevereiro de 2013

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A GUERRA DOS OITENTA ANOS


Está prestes a fazer cem anos que começou aquela que no futuro certamente se chamará “guerra dos 80 anos”. Em 28 de Junho de 1914 foi assassinado em Sarajevo na Bósnia o arquiduque Francisco Fernando da Áustria, herdeiro do trono da Áustria-Hungria. A partir dos Balcãs, em um mês toda a Europa estava em guerra, no que se convencionou chamar Primeira Guerra Mundial, dado que rapidamente alastrou às possessões ultramarinas das diversas potências então existentes: Império Alemão, Império Britânico, Império Austro-Húngaro, Império Russo, Império Otomano, Terceira República Francesa e Itália. O conflito durou até Novembro de 1918, tendo causado mais de 20 milhões de mortos. Apesar do pouco ou nulo interesse da Inglaterra em que tal acontecesse, Portugal entrou na guerra em 1916 por vontade de Afonso Costa e do PRP que assim tentaram utilizar um inimigo externo como pólo unificador das diversas forças políticas. Correu tudo mal, tendo o Corpo Expedicionário Português sofrido 10 mil mortos na Flandres e milhares de feridos, não se obtendo qualquer consenso político interno e acabando a própria Democracia às mãos dos militares poucos anos depois. Com a vitória dos Aliados, após a entrada dos americanos na guerra, seguiu-se o Armistício e o Tratado de Versalhes, de tal forma humilhante para a Alemanha que o Marechal Foch comandante supremo da “Triple Entente” declarou ser apenas um armistício válido por vinte anos.
O velho marechal não se enganou. No Tratado de Versalhes estava o alimento com que Hitler haveria de alimentar o ressentimento do povo alemão, levando-o a abraçar o extremismo nazi e a iniciar uma nova guerra que surgiu como consequência directa da anterior. O anónimo cabo do exército austríaco da primeira guerra construiu uma poderosa força militar com que pretendeu dominar a Europa por “mil anos”, iniciando a Segunda Guerra Mundial que acabaria por ser a mais mortífera da História da Humanidade, com mais de 60 milhões de mortes. De novo a participação americana foi decisiva para o fim do conflito e libertação da Europa.
 Quando acabou em 1945, o mundo ficou dividido em dois blocos tendo Churchill afirmado que uma cortina de ferro tinha descido sobre toda a Europa oriental sob o jugo soviético. Aqui começou uma nova fase da guerra, a chamada “guerra fria”, que teve momentos em que a temperatura subiu e chegou quase a acender a guerra total que todos sabiam que seria termonuclear e com consequências imprevisíveis para toda a Humanidade; foi o caso dos mísseis de Cuba no início dos anos sessenta e já nos anos oitenta com a colocação dos mísseis SS 20 na Alemanha de Leste e resposta dos Pershing na então Alemanha Ocidental.
A fase da “guerra fria” terminou em 1989 com a queda do muro de Berlim e a implosão do império soviético, permitindo finalmente a instalação de regimes democráticos nos países do leste europeu e a reunificação alemã. Mas a paz na Europa ainda não estava conseguida. O fim da URSS iria ainda libertar forças adormecidas ou apenas controladas nos Balcãs.
A cidade que viu acontecer o atentado que deu origem à primeira grande guerra viria a tornar-se de novo conhecida pelas piores razões. A “guerra da Bósnia” entre 1992 e 1995 provocou a morte de mais de 200.000 bósnios, tendo sido marcada pela brutalidade e selvajaria dos participantes. A União Europeia mostrou-se completamente ineficaz na gestão deste conflito, tendo ficado tristemente célebre a passividade, para dizer o menos, dos soldados holandeses perante as mortandades feitas à sua frente pelas milícias sérvias. De novo foram os americanos que, sob a bandeira da NATO, terminaram com esta guerra europeia. Sarajevo ficou assim como a cidade do início e do fim da “guerra dos oitenta anos”.
A Europa conheceu, em séculos passados, guerras terríveis e duradouras como a dos “cem anos” e a dos “trinta anos”. Todas elas intermitentes, mas que só terminaram quando, muitos anos depois, ficou resolvido o problema inicial. Esta, de que em nossa vida fomos em parte testemunhas, ficará na História como a mais mortífera e a que mostrou à Humanidade como, no momento chave, o seu futuro está dependente da decisão de um único homem, imperfeito como todos nós somos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 Janeiro 2014

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

HOLLANDE, político

Pressionado pela difícil situação económica do seu país, o presidente da República Francesa viu-se na necessidade de se juntar ao clube dos líderes que antes das eleições dizem uma coisa e depois fazem outra bem diferente. De facto, o défice orçamental francês é actualmente o maior da zona euro; acresce o crescimento económico apenas anémico de 0,8% ao ano desde o início do euro, tendo depois da Itália o pior crescimento europeu nos últimos 25 anos, isto no país que era, não há muito tempo juntamente com a Alemanha, o motor da Europa. Se lhe somarmos um desemprego de 11% a crescer, exportações a cair fragorosamente, custos de trabalho altíssimos e o início de uma nova recessão económica, temos um retrato que, no mínimo, é preocupante.
Foi perante este quadro negro que coloca a França no centro dos problemas económicos europeus, ultrapassando os países periféricos em que nos inserimos que, na sua conferência de imprensa da semana passada, o inefável presidente François Hollande travou a fundo na sua política e fez uma volta de 180º. Hollande mandou as suas reticências sobre a austeridade às urtigas e definiu um novo caminho para a França. Faz lembrar a resposta que em tempos Clinton deu aos republicanos americanos na sua primeira campanha eleitoral: “é a economia, estúpidos!”. As prioridades passam agora por cortar nas despesas do estado, designadamente nas prestações sociais, no sector da Saúde e nas pensões da segurança social. Nada que nós portugueses não conheçamos bem. A diferença é que nós estamos a cumprir um compromisso apertado que assumimos perante a troika, o que não sucede em França que, por enquanto, ainda pode escolher os próprios caminhos a seguir.
François Hollande diz agora que foi eleito com o apoio do PS e da esquerda, “mas que não professa uma ideologia, embora tenha ideias”, adiantando ainda “sou social, reformista e realista, mas sobretudo patriota”.
Como marco político importante em todo este quadro, estão as eleições europeias já no próximo mês de Maio. A França não foge a um movimento que tem alastrado por toda a Europa, levando a um crescimento dos partidos de direita nacionalista com rejeição clara da União Europeia. A Frente Nacional, agora dirigida por Marine Le Pen, fugiu às suas tradicionais bandeiras do tempo de Jean-Marie le Pen, o racismo, a xenofobia e a intolerância, virando-se para o populismo anti-União Europeia, para a imigração ilegal e para a soberania, incluindo o proteccionismo das empresas francesas perante a competição estrangeira. Bruxelas, como símbolo do poder da União Europeia com a sua carga burocrática, passou a ser a origem de todos os males. Em resultado de tudo isto, cerca de 55% dos estudantes franceses colocam a hipótese de votar na Frente Nacional, tal como grande parte do mundo rural e até mesmo uma boa fatia dos imigrantes já estabelecidos em França.
Claro que a causa do descontentamento popular que alimenta os partidos populistas por toda a Europa, e não apenas em França, reside na realidade nas políticas consumistas promovidas pelos governos durante anos que levaram ao estado caótico das contas públicas e à incapacidade manifesta de garantir as políticas sociais entretanto assumidas perante os cidadãos.
Os actuais líderes políticos europeus poderão ser fracos, mas enfrentam uma situação de extrema dificuldade que não foi criada por eles e sim pelos que os antecederam durante décadas. E os cidadãos comuns conhecem bem as consequências de tudo isto, porque são eles que estão hoje a pagar pelos erros cometidos. O terreno para a progressão dos populismos extremistas está aplainado. Não nos admiremos se nas próximas eleições europeias os partidos populistas e eurocépticos tiverem uma votação que virará do avesso o parlamento europeu, com consequências que ainda não conseguimos antecipar, mas que não serão certamente boas para o futuro da Europa. Como sabemos da História, já Dario III, rei da Pérsia, após a vitória de Alexandre sobre as suas tropas, mandou matar o seu conselheiro que o tinha avisado sobre as consequências das suas decisões.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Janeiro de 2013

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Só p´ra lembrar

Em 2009, eram estas as conversas:

CONFIANÇA NOS POLÍTICOS


Estou certo que não chocarei ninguém ao afirmar que a política e os políticos sofrem de uma das maiores crises de confiança de que há memória, entre nós. Muitas razões contribuem para isso, algumas de fundo e outras que têm a ver com as características da vida actual. Já o humorista Rafael Bordalo Pinheiro representava a política como uma porca a amamentar muitos bácoros, o que mostra que a má ideia que os portugueses têm dos políticos não é dos dias de hoje. Haveremos no entanto de convir que já era tempo de essa situação se ter alterado, o que não é manifestamente o caso. Nos dias de hoje a internet com as suas redes sociais ajuda a manter essa má imagem, às vezes com razão, mas frequentemente sem nenhuma. O imediatismo das respostas, a superficialidade das análises e uma boa dose de anonimato mal-intencionado ajudam aos velhos comentários que não acrescentam nada às soluções para os problemas: “isto é uma vergonha”, “eles são todos iguais” e “eles andam todos ao mesmo”.
A sensação de separação entre a vida política e o resto do país vai-se ampliando e a organização política, bem como o funcionamento dos partidos (da esquerda à direita) não contribuem em nada para melhorar a situação.
Um exemplo: o leitor, que sei ser uma pessoa interessada e preocupada com os destinos do país, sabe quem são os deputados eleitos pelos partidos no seu círculo eleitoral, no caso, o de Coimbra? Atrevo-me a apostar que não sabe e, mais significativo, provavelmente não conseguirá sequer identificar com precisão os deputados do partido a que deu o seu voto. Claro que também não fará a mínima ideia dos critérios que ditaram a escolha dos nomes que integraram as listas e, pior, deverá desconhecer por completo o trabalho que têm ou não produzido na Assembleia da República desde que foram eleitos, pelo que em próximas eleições não terá quaisquer hipóteses de avaliar esse trabalho com consciência e seriedade.
Nos últimos dias, felizmente, têm vindo para a discussão pública algumas ideias sobre reformas da lei eleitoral, que em parte eu próprio já aqui defendi nestas linhas, por mais que uma vez. Uma das propostas contempla a criação de um círculo nacional que escolheria 100 deputados e 115 círculos uninominais, para além dos círculos da Madeira, dos Açores e da Emigração. O círculo nacional permitiria a entrada no Parlamento de representantes de partidos com pequena percentagem, o que não acontece hoje, com a vantagem de surgirem na Assembleia da República outras vozes e opiniões, assegurando uma melhor representação do sentir dos portugueses. Quanto aos círculos uninominais, seriam possíveis as candidaturas independentes, possibilitando a escolha de candidatos que valham por si próprios, que as populações conheçam e em quem tenham confiança.
Claro que os partidos maiores teriam a vida dificultada, em particular as distritais por onde passam hoje as escolhas dos candidatos a deputados, com negociações completamente estranhas aos interesses das populações e favorecendo os amiguismos e outras dependências, tantas vezes inconfessáveis. Ver-se-iam obrigados a escolher candidatos credíveis, que não tenham feito toda a carreira dentro das comissões políticas e nada dizendo ao cidadão comum para quem os seus representantes têm é que resolver os problemas da sociedade. Uma alternativa interessante será dar aos eleitores a possibilidade de ordenar os eleitos do seu círculo, de acordo com as suas preferências, sem ter que votar em listas fechadas.
Curiosamente, parece até que uma alteração às leis eleitorais deste tipo nem precisaria de uma Revisão Constitucional. Claro que não se vê os actuais detentores do poder dentro dos partidos a promoverem por si uma alteração destas. Resta-nos a nós, cidadãos comuns militantes ou não de partidos, mas com consciência da situação actual, fazer tudo para que essa alteração seja de alguma forma imposta pela sociedade aos partidos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 de Janeiro de 2014

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O DOENTE DETERMINADO

Quando lhe começaram a fazer os tratamentos aceitou a contra gosto, mas com alguma esperança nos resultados, porque bem sabia da gravidade da doença de que padecia. Na realidade, o diagnóstico já tinha sido feito há algum tempo e, no fundo, ele tinha consciência de que desta vez não havia volta a dar e tinha mesmo que passar pelos tratamentos que sabia serem dolorosos e demorados. Mesmo nessa altura ainda houve uns amigos que mais uma vez o tentaram convencer a tomar umas aspirinas porque não, aqueles médicos só queriam o mal dele e fazê-lo passar por um mau bocado escusado. Mas o diagnóstico estava ali bem à vista na sua crueza e a junta médica estrangeira deixou-o sem grande alternativa: ou fazia os tratamentos preconizados ou o deixavam sozinho sem qualquer esperança de cura e o fim estaria próximo e seria bem cruel.
Os tratamentos começaram e foram muito dolorosos desde o princípio. Não ajudava nada ter que tomar os medicamentos e verificar, de cada vez que a junta médica vinha ver se os resultados estavam a surgir de acordo com o previsto, que lhe prescreviam novas e mais fortes doses que lhe iam aumentando o sacrifício. E sempre a ouvir que era asneira prosseguir, que os tratamentos não iam fazer nada, que as aspirinas é que lhe teriam resolvido os problemas e, ainda por cima, sem dores. Mesmo aqueles que durante anos o tinham aconselhado mal e levado para caminhos viciosos, provocando-lhe a grave doença de que padecia, continuavam a cantar-lhe músicas agradáveis aos ouvidos, na esperança de que ele não topasse as verdadeiras causas dos seus padecimentos. Para ajudar às dificuldades, havia quem o tentasse baralhar garantindo-lhe que, se sofria, era por causa dos medicamentos e não pela doença, e que mais valia deixar de os tomar, que tudo ficaria bem de repente.
Mas o doente lá foi resistindo a tudo: cantos das sereias, conselhos inúteis dos bem-intencionados de sempre; mesmo uns safanões e uns tantos empurrões quando ia ao hospital fazer os tratamentos não o impediram de continuar os seus sacrifícios, na esperança de que os bons resultados surgiriam, livrando-o daquele mal horrível que tanto o atormentava. Ele sentia que o seu corpo tinha mais dores e se ia abaixo notoriamente com a dureza dos medicamentos que tomava e tinha plena consciência de que, por vezes, os médicos tateavam na posologia e nas doses a aplicar. Mas também foi sentido aos poucos que algo começava a mudar no seu corpo e que os músculos começavam a ganhar alguma tonicidade.
O fim dos tratamentos estava já à vista e a esperança de que passaria esta provação por cima dava-lhe cada vez mais forças. Talvez, afinal, o esforço viesse a valer a pena e pudesse de novo respirar o ar a plenos pulmões e até participar em provas desportivas com outros como ele.Caro leitor, faço votos de que neste ano de 2014 este doente tão especial para todos nós se liberte dos tratamentos a que se sujeita há quase três anos e consiga finalmente caminhar sem ajuda, o que constitui a melhor mensagem de bom ano novo que consigo imaginar.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Janeiro de 2014