É indiscutível ser o Serviço Nacional de Saúde uma
das mais importantes aquisições sociais dos portugueses das últimas décadas. Se
algumas das decisões políticas que abriram caminho à sua existência surgiram
antes do 25 de Abril, elas foram tímidas na prática, cingindo-se à
regulamentação das carreiras hospitalares e à criação dos centros de saúde da
primeira geração, já nos anos setenta.
O verdadeiro pontapé de saída da criação do SNS
deu-se em 1978 com o Despacho ministerial publicado no Diário da República em
29 de Julho, que veio a ficar conhecido como “Despacho Arnaut” do nome do
Ministro dos Assuntos Sociais, Saúde e Segurança Social que o fez publicar,
António Arnaut que, acompanhado pelo Secretário de Estado da Saúde, o Médico
Mário Mendes, ficaram assim ligados a este importante passo com vista a uma
maior justiça social.
O passo dado, que constituiu uma verdadeira antecipação
do SNS foi tão mais importante, quanto se sabe do voluntarismo e capacidade de
decisão que exigiu do principal decisor contra importantes dificuldades
políticas que lhe foram levantadas de vários quadrantes, pelo que é da mais
elementar justiça prestar-lhe homenagem e agradecer-lhe por isso. Pela minha
parte, aqui deixo com todo o respeito o meu humilde preito e obrigado ao Dr.
António Arnaut que, devo dizê-lo com frontalidade, é independente da admiração
que por ele tenho no que respeita à sua notável intervenção cívica e literária.
De facto, pela primeira vez, foi aberto o acesso aos cuidados de saúde
existentes à altura a todos os cidadãos, sem olhar às suas condições
económicas, com vista à universalidade e gratuidade da prestação de cuidados de
saúde.
Ao “Despacho Arnaut” seguiu-se em 1979 a publicação
da Lei 56/79 que veio a concretizar a criação do Serviço Nacional de Saúde e que
garantiu o “acesso à proteção da saúde a todos os cidadãos, independentemente
da sua condição económica e social, bem como aos estrangeiros, em regime de
reciprocidade, apátridas e refugiados políticos”. Esta Lei acaba por trazer
também a assinatura de António Arnaut como Vice-Presidente, em exercício, da
Assembleia da República, quase que como fecho simbólico do seu papel na criação
do SNS.
Ao longo destes quase 40 anos o SNS foi evoluindo
acompanhando, umas vezes mal, outras vezes melhor, as alterações da organização
social, da economia e mesmo da própria medicina cujas técnicas são hoje,
mediante a vertiginosa evolução tecnológica que se tem verificado, muito
diferentes do que eram há escassas dezenas de anos.
Os índices que medem a evolução da saúde, desde o
aumento da longevidade média à mortalidade infantil, mostram o caminho
impressionante que foi possível fazer e que se devem, em grande parte, à
organização do SNS que se estende por todo o país. Mas os seus custos subiram
também de forma gigantesca, o que leva o Estado à necessidade de tentar
optimizar essa organização cortando redundâncias, eliminando custos supérfluos,
contratualizando externamente o que faz caro ou mesmo não faz, aumentando a
eficiência. Mas, muitas vezes também, cortando onde não deve cortar,
nomeadamente tratamentos específicos em doenças raras e de tratamento muito
dispendioso. E pratica também, tantas vezes, políticas de gestão que se vêm a
voltar contra a própria pretensa poupança, como nos cortes cegos de manutenção
de equipamentos e aquisição de peças suplentes, sem falar na substituição de
profissionais de saúde por simples e anónimas prestações de serviços.
A vida política leva tantas vezes, na sua vertigem
partidária de ataques aos adversários e de defesa automática de
correligionários, a desfazer naquilo que deveria ser assumido como aquisição
civilizacional, portanto o mais possível pertença de todos.
O Serviço Nacional de Saúde tem e sempre terá,
problemas. Alguns deles terão a ver com a sua organização em cada momento, mas
também com circunstâncias externas de que sofre as consequências. O que não
deverá é deixar de ser considerado como um dos factores mais importantes da
coesão social e do nosso desenvolvimento. A sua defesa é, como costuma dizer o
Dr. António Arnaut, uma questão sobretudo ética e não de posicionamento
político-partidário. Assim os responsáveis políticos de cada momento o sintam e
saibam, com verdade, ser consequentes nas decisões que lhes dizem respeito, que
são como em tudo na vida também económicas, mas sobretudo de carácter social.