Há precisamente 500 anos, Niccolò Machiavelli escreveu a obra que ainda
hoje orienta muito do que se passa na política, o que muitos teimam em não ver,
ou não querer ver: O Príncipe.
No seu livro dedicado a Lourenço de Medici, entre outras coisas Machiavelli
assinalava que em política não há amigos, apenas aliados. Afastava da acção
política os conceitos moralistas que ainda hoje enganam muita gente e nos leva
frequentemente a apoiar ou mesmo a seguir actores políticos que se apresentam
como virtuosos, isto é, generosos, honestos e confiáveis, quando na sombra dos
seus gabinetes praticam o oposto.
Os políticos deverão perseguir os objectivos da segurança e do bem-estar
dos cidadãos, o que não deve ficar escondido por detrás das mais piedosas
intenções que tantas vezes levam ao descalabro colectivo e à ruína das nações.
Machiavelli não escreveu no Príncipe que “os fins justificam os meios”,
embora as interpretações do texto levem frequentemente a tirar essa conclusão. Sendo
uma afirmação mais que discutível e dificilmente aceite, é no entanto praticada
todos os dias em política, ainda que de forma encapotada. Em democracia, as
balizas comportamentais estão bem definidas por regras estabelecidas e aceites
por todos, mesmo por aqueles que com elas não concordam no seu íntimo. Os meios
a usar serão assim aceites pela comunidade, desde que dentro dos limites da
lei. É a ética pessoal que autoriza os meios a utilizar por cada um dentro
daqueles limites. Os critérios moralistas deverão ser esquecidos porque na
realidade não têm qualquer efeito, sendo a vantagem competitiva efectivamente
de quem utiliza quaisquer meios para atingir os seus fins sem peias morais. Não
vale a pena negar que isto acontece, porque sucede permanentemente e mesmo aqueles
que apregoam grandes regras morais se calam perante o sucesso dos que assim
agem, porque conseguem alcançar o poder.
Para Machiavelli, é preferível a um Príncipe ser temido do que amado.
Grande máxima para quem tem estomago para a seguir à letra. E nós temos bons exemplos
em Portugal neste século e no anterior, para não irmos mais longe. Já tivemos
um primeiro-ministro intelectualmente brilhante mas conhecido por ser muito
afectivo e com grande dificuldade de dizer não. Quando as condições para a
governação se complicaram, ele próprio acabou por perceber que o melhor a fazer
era desistir e ir para bem longe tratar de assuntos sociais e de caridade. Já
um chefe de Governo racional e frio como o que nos governou em ditadura durante
dezenas de anos, nunca teve a preocupação de que gostassem dele: bastava-lhe
que o temessem para que a desejada “normalidade” seguisse o seu caminho sem
grandes sobressaltos. Mas mesmo em democracia há quem prefira ser temido a ser
amado e, embora com matizes diferentes, já tivemos pelo menos dois
primeiros-ministros eleitos com essa característica evidente. Isto é, a
afirmação de Machiavelli não tem nada a ver com os regimes políticos concretos,
mas com a personalidade e a visão própria da acção política dos seus agentes.
Como em democracia é o povo que escolhe quem governa, por vezes dá mesmo a
impressão de que entre nós se vai cansando à vez de um e outro estilo e os vai
elegendo alternadamente.
Claro que os principais objectivos de qualquer político são obter e manter
o seu cargo, seja ele governativo, seja de direcção partidária. Um líder não
deverá portanto admirar-se quando alguém, ainda que do seu próprio partido,
tente ocupar o seu lugar no momento em que achar que as condições para tal lhe
são propícias; e nem deverá trazer palavras como traição à colação, a não ser
que o desafiante lhe tenha expressamente garantido que nunca o desafiaria. Mas
o que desafia andará também melhor se não esquecer que os seus apoios são, não manifestações
de amizade como podem parecer, mas acções visando o futuro deles próprios e
amanhã se virarão para outro lado que lhes parecer mais eficaz para obterem
aquilo que pretendem. Pior mesmo é perceber-se que por detrás das motivações
grandiloquentes em nome do povo não estão mais que ambições pessoais de poder,
mesmo sendo legítimas, situação que o próprio Machiavelli aconselhava o Príncipe
a evitar, ainda que usando de dissimulação.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 de Junho de 2014