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segunda-feira, 30 de novembro de 2015
ICEBERG
Isto é um iceberg. Dá para afundar muita coisa, para além de navios. E a parte mais importante não é a que está à vista.
segunda-feira, 23 de novembro de 2015
Presidenciais
Há
cerca de quatro meses exprimi nesta página o voto de que os portugueses pudessem
vir a ter a possibilidade de escolher Marcelo Rebelo de Sousa ou Maria de Belém
de entre os candidatos que viessem a surgir para as eleições para Presidente da
República, que agora já sabemos que ocorrerão em 24 de Janeiro.
Felizmente,
tal veio a suceder. Para além daquelas duas, há as candidaturas de Henrique
Neto e de Sampaio da Nóvoa, como independentes e também de Marisa Matias e de
Edgar Silva surgidas do interior dos seus partidos, respectivamente o Bloco de
Esquerda e o Partido Comunista Português. Todos estes candidatos serão
personalidades certamente respeitáveis, com as suas próprias propostas para o
exercício do mais alto cargo da República. De entre eles destaca-se claramente
Henrique Neto que tem atrás de si uma longa carreira de sucesso na área
empresarial, sendo-lhe familiar uma área importante para o país, que é a
economia, mas que é daquelas que mais claramente compete ao Governo, pelo seu
carácter executivo. Sampaio da Nóvoa aparece com alguns apoios importantes, mas
a sua carreira é exclusivamente académica, notando-se no seu discurso, a meu
ver, um claro distanciamento da realidade de um pequeno país integrado numa
união económica e financeira de que a esmagadora maioria dos portugueses não
quer sair. Os candidatos do BE e do PCP seguem a linha histórica de marcar
terreno numa primeira volta, com o fim de conseguir uma segunda, onde os
respectivos partidos possam vir a ter papel negocial.
Já
Marcelo e Maria de Belém são personalidades há muitos anos ligadas aos seus
partidos, o PSD e o PS, mas que se apresentam individualmente, de certa forma
até, pelo menos inicialmente, à revelia das actuais direcções partidárias. Ambos
tiveram percursos políticos de relevância e, acima de tudo, são políticos
experientes, centristas, que recusam radicalismos e experimentalismos. Pela sua
eleição, qualquer um deles será garantia de que a presidência se exercerá com
respeito por todas as opções políticas, mas sabendo que o futuro dos
portugueses deve ser acautelado, participando activamente na construção de
soluções governativas respeitadoras da vontade da esmagadora maioria dos
portugueses que é europeista, pretendendo integrar-se da melhor maneira na
Europa e não destrui-la por dentro.
Como
se tem visto na sequência dos resultados das últimas eleições legislativas, o
papel do Presidente da República é muito importante, dadas as características
semi-presidencialistas do nosso regime.
De acordo com a Constituição, que
devemos respeitar nas suas diversas orientações, para umas coisas mas para
outras também, cabe ao Presidente da República “nomear o primeiro-ministro,
após ouvir os partidos políticos e tendo em conta os resultados eleitorais”.
Significa isto que o Presidente (que tem a legitimidade própria de,
pessoalmente, ter sido directamente escolhido pela maioria dos votos dos
eleitores) tem aqui uma liberdade de opção que não deve nem pode alienar, dada
a sua escolha pelos portugueses significar também responsabilidade. Entre as
suas competências, o Presidente da República pode ainda, observando algumas
normas, dissolver a Assembleia da República. Pode-se ter menos consideração
pela personalidade que, em cada momento, exerce as funções de Presidente da
República. Não se pode é fingir que no nosso sistema político o Presidente da
República é uma simples figura representativa ou pretender cortar os seus
poderes e, ainda menos desrespeitá-la, dado ser o representante máximo da
República, o único escolhido directamente pelos portugueses.
Pelo
que se vai vendo, os próximos anos irão trazer-nos pela certa uma grande
conflitualidade e, pela quase certa a necessidade de encontrar de novo quem nos
apoie financeiramente para continuarmos no euro, como a maioria dos portugueses
querem, ao contrário dos que defendem o regresso ao escudo e ao “orgulhosamente
sós” da dita “oberania perdida”, sem explicar ao povo o que isso significaria.
A
escolha do Presidente da República em Janeiro de 2016 vai ser crucial para o
nosso caminho colectivo futuro. Marcelo Rebelo de Sousa reúne pessoalmente
todas as características necessárias para esse exercício. Tem uma formação
jurídica sólida, conhece o sistema político por dentro como ninguém, pensando
por si tem ideias políticas claras e possui uma capacidade notória de
comunicação, essencial para obter os necessários consensos. Por tudo isto e
muito mais, estou certo de que não estarei sozinho no apoio a Marcelo, antes
pelo contrário, estarei com a maioria dos portugueses na escolha presidencial a
fazer no dia 24 de Janeiro de 2016.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 23 de Novembro de 2015
segunda-feira, 16 de novembro de 2015
Paris
E
eis que a realidade brutal se impõe de forma absoluta a todos os nossos
problemas, dificuldades e indefinições. À semelhança do 11 de Setembro em Nova
Iorque, o ataque terrorista de ontem em Paris coloca um ponto de não retorno sobre
os caminhos mal ou bem percorridos até então.
Perante
o mal absoluto não adianta procurar causas profundas ou justificações socio-políticas
mais ou menos elaboradas. Pretender justificar ou mesmo desculpar quem pratica
estes actos de barbárie seria o mesmo que fazê-lo a Adolf Hitler pelo Holocausto. Relembro que
esta gente do dito estado islâmico ainda na semana passada divulgou um filme em
que assassinava umas duzentas crianças, e há poucos meses decapitou e pendurou nas
ruínas históricas o corpo do arqueólogo responsável por Palmira não havendo evidentemente
ninguém, para além deles próprios, responsável por tais actos.
O
dito estado islâmico decidiu vir fazer, no coração da Europa, o mesmo que todos
os dias faz nos territórios sírios e iraquianos onde anda à solta. Se em
Janeiro último o ataque terrorista ao Charlie Hebdo tinha como alvo específico a
liberdade de imprensa e uma razão religiosa/ideológica evidente por aquela
revista satírica abordar frequentemente o fundamentalismo islâmico, desta vez o
alvo escolhido foram os cidadãos comuns. O maior número possível deles, fossem
homens, mulheres ou crianças. Fossem brancos, pretos ou amarelos. Fossem
cristãos, muçulmanos, judeus ou indus. De atentado passou a guerra trazida para
dentro da Europa.
Aquilo
que vemos nas televisões ser o dia-a-dia nos territórios nos territórios do
dito estado islâmico foi transportado para o centro de Paris. Tornou-se mais
fácil perceber a razão de milhões de pessoas andarem a procurar refúgio pelo médio-oriente
e pela Europa, fugindo ao pavor da guerra do estado islâmico. A mistura de
ataques suicidas com bombas junto a um estádio de futebol onde decorria um jogo
internacional com mais de 80.000 espectadores, disparos contra clientes de
restaurantes e ataque com armas semi-automáticas contra os espectadores numa
sala de espectáculos incluindo a tomada de reféns, configura o tipo de guerra
sem regras e sem quartel que levam a cabo no médio oriente e que sempre
disseram querer trazer ao ocidente europeu para instituir aquilo a que chamam
califado.
Os
fundamentalistas islâmicos sabem bem o que fazem e escolheram propositadamente
o momento para trazer a sua guerra para o centro da Europa. Parece não haver já
dúvidas de que a queda do avião russo há poucos dias na península do Sinai se
ficou a dever a uma bomba colocada a bordo pelos extremistas islâmicos. O
recente ataque em Beirute pretendeu levar a luta também para aquele país que,
recordado da sua trágica guerra civil, encontrou processos de voltar a ser um
país civilizado e pacífico, como era quando era conhecido como a Suiça do
médio-oriente. A intenção de colocar a ferro e fogo todo o Médio Oriente e a
Europa é hoje uma evidência. O facto de centenas de milhares de refugiados
dessa guerra procurarem hoje a Europa, provocando caos nas fronteiras e
obrigando a medidas excepcionais para dar uma solução digna ao problema é outro
cenário que os fundamentalistas pretendem usar para provocar cisões políticas e
aumentar as probabilidades de confusão nas ruas, enfraquecendo a capacidade de
resistência europeia. Não será simples coincidência que este ataque tenha tido
lugar em França, onde nas próximas eleições o sentimento de auto-defesa das
populações poderá facilitar a aceitação de ideias xenófobas refectidas nos
resultados eleitorais.
Num
momento destes não chega proclamar que somos todos franceses ou colocar “gosto”
em posts nas redes sociais. A França é, para todos os amantes da Liberdade, o
símbolo do progresso e da tolerância. Mas é mais do que isso. A França é o
centro de uma Europa que tenta encontrar um caminho comum de prosperidade em
liberdade. As diferenças entre os europeus que amam a civilização construída
tantas vezes com “sangue, suor e lágrimas” mesmo, ou sobretudo contra inimigos
internos, devem ser esbatidas contra o ressurgimento da barbárie. Perante o
sucedido, é nosso dever parar para lembrar e honrar todas as vítimas que
morreram sem sequer saberem em nome de quê e enviar, ainda que em pensamento, a
total solidariedade aos seus familiares.
Tal como a própria França, grande na
História da Humanidade em tantos aspectos e tantas vezes, perante a gigantesca
ferida aberta deve ser institucionalmente motivo de todo o apoio e confiança
incondicional dos outros países europeus, incluindo Portugal. Que todos nós,
europeus livres, possamos dizer, sem dúvidas nem medos: a barbárie não passará!
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 Nov. 15
segunda-feira, 9 de novembro de 2015
DEZ ANOS
Passaram
na semana passada dez anos sobre a publicação do primeiro “Visto de Dentro” no
Diário de Coimbra. Curiosamente, tendo ido revisitar aquele texto, verifiquei
que o poderia ter escrito nos dias de hoje. Está lá a necessidade de
perspectiva construtiva sobre os problemas da sociedade, bem como a opção por
evitar juízos morais, a que acrescento hoje a fuga a proselitismos, no respeito
pelas opiniões alheias.
É
assim que, com todo o gosto, e pedindo licença ao jornal e aos leitores desta
crónica semanal, reproduzo aqui aquela crónica:
“Serve o título desta série de
crónicas de opinião para indicar que o autor assume claramente um
posicionamento no interior do actual sistema social, político e económico. E é
a partir das suas observações desse ponto de vista que se propõe partilhar com os
leitores do Diário de Coimbra os seus comentários que reflectirão as suas
concordâncias, discordâncias e eventuais perplexidades suscitadas por diversas
situações. O mundo de hoje, e particularmente Portugal, atravessa uma crise
sentida por todos, decorrente de alterações profundas e muito rápidas da
organização das sociedades a nível global, que se vêm adicionar a deficiências
estruturais crónicas. Levantam-se questões novas que exigem frequentemente
abordagens diferentes e soluções muitas vezes inovadoras. Tentar-se-á aqui
fugir dos juízos morais que se transformam hoje amiúde em armas de combate
político e de destruição, a fazer lembrar tempos inquisitoriais antigos que
deveriam estar já bem enterrados. Optar-se-á sim por posições optimizadoras e
construtivas, com o objectivo de poder contribuir para uma visão positiva da
sociedade, que tão necessária é para melhorar a auto-estima dos concidadãos.
Aproveito para lembrar uma pequena história certamente bem conhecida de muitos
leitores.
Há muitos anos, um viajante passou
por três canteiros que trabalhavam cada um sua pedra; á mesma pergunta sobre o
que faziam, obteve três respostas distintas:
O primeiro respondeu que trabalhava
para ganhar a vida; O segundo respondeu que talhava uma pedra; O terceiro
respondeu que construía uma catedral.
O que acha o leitor? Sente-se de
algum modo interpelado pela historieta? Ou acha que não tem nada a ver com os
dias de hoje?”
A
este texto inicial seguiram-se já 520 crónicas escritas e publicadas em tantas
outras semanas sempre à segunda-feira, sem qualquer interrupção. Dez anos é de
facto muito tempo. Deu para ver partir Pai e Mãe e muitos amigos e familiares,
uns muito chegados, outros nem tanto, para o maravilhoso nascimento de netas e
até para ver os gráficos dos monitores no hospital a ficarem subitamente todos
horizontais após uma operação cirúrgica delicada e ter a felicidade de voltar a
acordar poucas horas depois.
O
“estatuto editorial” definido na primeira crónica foi sendo mantido com algum
cuidado, embora tenha consciência de que em alguns dos textos a situação
abordada ou mesmo o contexto pessoal levaram a que tivesse tido havido um pouco
mais de acutilância na abordagem. Mas algures terei escrito algo que aprendi há
muitos anos e costumo citar com frequência: admito tudo, fanáticos é que não,
isto é, podemos ou devemos mesmo ser intolerantes com a intolerância.
Escrever
a crónica semanal tornou-se um hábito, quando não mesmo uma necessidade. Às
vezes perguntam-me como encontro temas para tantas crónicas. Quase sempre é a
realidade que se impõe, mas acontece às vezes não ter vontade de escrever sobre
ela porque muito francamente me aborrece e é então que saem os textos de que
gosto mais. Outras vezes são as crónicas que ganham vida própria e, no fim, têm
pouco a ver com o que comecei a escrever. Muitas crónicas obrigam a fazer algum
estudo, porque descobri ter leitores que procuram informação onde eu supunha
haver apenas opinião, embora o mais sustentada que me seja possível.
De
vez em quando um leitor vem ter comigo a comentar este ou aquele aspecto, a
discordar desta ou outra opinião. Principalmente para esses a quem agradeço as
críticas e comentários, mas não nego que também para minha própria satisfação
pessoal, continuarei a dedicar os sábados de manhã à escrita, até porque aquilo
que calamos não existe.
segunda-feira, 2 de novembro de 2015
Refugiados
Na
semana passada, do meio das notícias trágicas sobre o actual drama dos
fugitivos à guerra nos próximo e médio orientes surgiu uma que, no meio daquela
tragédia nos fez sorrir e pensar que, mesmo no meio da desgraça, há sempre algo
que corre bem e mostra que a Humanidade merece ser salva. Uma mulher com 105
anos conseguiu chegar, com a sua família num total de 17 pessoas, a um campo de
refugiados na Croácia. Tinham partido do Afeganistão 20 dias antes e feito uma
viagem cheia de dificuldades atravessando montanhas e florestas; se durante
algumas partes do percurso, caminhou pelo seu próprio pé, em grande parte do
trajecto aquela mulher foi transportada às costas pelos familiares, incluindo o
filho que conta com 67 anos. Como muitos dos outros refugiados que ali chegam,
o sonho desta família é partir para a Suécia, um dos países nórdicos com
tradição de acolhimento de refugiados, tal como a Noruega.
O
que são refugiados? Todos nós ouvimos falar deles mas, eventualmente, não teremos
bem presente o verdadeiro significado da palavra. Um dos maiores cataclismos da
Humanidade foi provocado pela II Guerra Mundial. Quando acabou em 1945, milhões
de pessoas tinham perdido familiares, além dos seus haveres, enchendo as
estradas europeias de filas gigantescas a caminho de algum lugar onde pudessem
ter futuro.
Em 1951 sentiu-se a necessidade de garantir protecção legal
internacional a essas pessoas, que não são emigrantes clássicos, já que não são
pessoas que simplesmente procuram trabalho noutro país que não o seu. Na
realidade, os refugiados abandonam os seus próprios países fugindo da guerra ou
de perseguição já sofrida ou receada. De acordo com a lei internacional, o
refugiado não pode ser obrigado a regressar ao seu país contra a sua vontade.
A
tragédia dos refugiados que se desenrola aos nossos olhos nos dias de hoje faz
lembrar as grandes movimentações de pessoas do passado, com a diferença de não
se tratar de europeus e sim de pessoas oriundas de alguns países africanos que
chegam às costas do norte de África e ainda da Síria, do Afeganistão e do
Iraque, mas também do Kosovo e da Albânia. Todos pretendem entrar na União
Europeia e sonham terminar as suas viagens essencialmente na Alemanha, na
Suécia, na Itália, em França e no reino Unido. Só no corrente ano já entraram
na Europa mais de 600.000 pessoas nestas condições, das quais metade são
crianças, sendo o ritmo actual de cerca de 10.000 por dia, ritmo esse ainda
assim inferior ao do ano de 2014 que foi de 42.500. As rotas de entrada na
Europa que têm impressionado mais pelas mortes que lhes estão associadas são as
do Mediterrâneo Central e Oriental, dada a utilização de embarcações sem
capacidade para as centenas de pessoas que transportam com o objectivo de
chegarem a Malta, Sicília, península italiana e ilhas gregas. No dia seguinte à
notícia da chegada feliz da mulher de 105 anos de idade à Europa, em dois
naufrágios junto às ilhas gregas de Kalymnos e Rodas morreram pelo menos 21
pessoas, havendo um número desconhecido de desaparecidos.
Mas
o elevado número de pessoas que chegam diariamente às fronteiras da Roménia, da
Bulgária, da Sérvia, da Macedónia e da Grécia cria um problema humanitário
gigantesco, aumentado nestes dias pelo frio do Inverno que está a chegar. A Europa
é, para todos estes refugiados, um “el-.dorado” pela estabilidade, prosperidade
e segurança que proporciona aos seus cidadãos. E cabe à Europa, como um todo,
dar resposta satisfatória aos anseios destes refugiados que a procuram como
tábua de salvação. Os países que, pela sua localização, são a porta de entrada
dos refugiados que atravessaram a Turquia, têm que sentir a solidariedade de
toda a União, porque este é um problema humanitário, mas também um problema político
comum. Percebe-se que esses países construam barreiras que criem pontos
controlados de entrada, mas já não se percebe que outros países, como a Suécia,
se venham queixar de que não têm condições para receber uns 190.000 refugiados,
receando entrar em colapso!
As
“primaveras árabes” que tanto encantaram muitos europeus, as sucessivas invasões
do Afeganistão, a invasão do Iraque, os conflitos entre muçulmanos sunitas e
xiitas, a descida do preço do petróleo, a guerra civil na Síria, problemas
antigos mas sempre prontos a eclodir como a questão dos curdos e o
recrudescimento do fanatismo islâmico criaram um barril de pólvora às portas da
Europa. Receia-se que esse barril possa explodir, com o imperialismo de uns e
sede de imperialismo de outros que já foram e querem ser de novo. A Europa pode
dar um contributo essencial para o futuro, acolhendo as populações em fuga,
partilhando com elas aquilo que tantas vezes tem a mais e construindo assim a
possibilidade de uma futura cooperação com os países de que são originárias.
Não esqueçamos que metade destes refugiados são crianças, a quem é devida formação
escolar e cultural. No futuro, são estes jovens que podem fazer toda a
diferença, quando regressarem aos seus países.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 2 de Novembro de 2015
segunda-feira, 26 de outubro de 2015
Coimbra no seu melhor, também na Cultura
A
Canção de Coimbra, nas suas diversas formas, é um património cultural
diferenciador e mesmo identificador da nossa Cidade. De entre os seus cultores
ao longo dos anos contam-se alguns dos maiores expoentes da música portuguesa,
quer entre os cantores, quer instrumentistas. Algumas das canções e das
composições instrumentais tornaram-se famosas no mundo inteiro e os seus
acordes iniciais remetem instantaneamente para Coimbra.
Há
cerca de um ano deixou-nos aquele que é considerado um dos expoentes na arte de
tocar guitarra à maneira de Coimbra, no que se tornou uma referência pela forma
inconfundível como o fazia, diferente de todos os outros guitarristas,
anteriores e contemporâneos. Francisco Martins aprendeu ainda criança a tocar
Guitarra com António Portugal e a sua sensibilidade própria e a dedicação ao
instrumento levaram-no a ser um executante excepcional. Mas Francisco Martins
tinha ainda uma outra qualidade inata que o distingue de todos os outros
cultores da canção de Coimbra. Era um compositor genial com a capacidade de
produzir belas melodias. Especialistas como Armando Luís de Carvalho Homem
elogiam a beleza das suas composições e a sua arte suprema como executante na
Guitarra.
Os
artistas que o acompanharam à viola ao longo da sua vida recordam com saudade e
carinho a experiência que foi tocarem com ele. Em especial, é particularmente comovente
ouvir Rui Pato, que o acompanhou desde os dezasseis anos, descrever a emoção
que era tocar com Francisco Martins, ele que é igualmente um artista notável a
tocar o seu instrumento, a guitarra clássica, tendo por isso mesmo sido
escolhido por José Afonso para o acompanhar nos seus discos imortais.
Além dos
espectáculos ao vivo, Rui Pato acompanhou Francisco Martins nos seus álbuns a
solo “Canção da Primavera” em 1986 contendo, entre outros temas, a “Canção da
Primavera”, “Despedida” e “Momento Breve” e “Primavera 2” em 1996 que inclui “a
“Dança Estival”, a “Canção da Primavera nº 2”, as “Variações em Fá Maior” e a
“Despedida”, entre outros. No seu último álbum a solo “Convívios Musicais” em
2004, Francisco Martins foi acompanhado à viola por Aníbal Moreira, experiência
que este descreve como um dos pontos mais altos da sua vida artística. Antes
destes, Francisco Martins havia editado o disco “Flores para Coimbra” em 1969,
onde era patente a sua capacidade de fazer acompanhamentos e já se fazia notar
a sua originalidade e inspiração como compositor nas obras “E alegre se fez Triste”
e “Trova da planície”, com letras de Manuel Alegre e Orlando de Carvalho,
respectivamente.
Francisco
Martins viveu a sua vida da forma discreta que escolheu, alternando a sua
actividade artística musical com o exercício da profissão, tendo sido um Médico
de reconhecido profissionalismo e saber como Chefe do Serviço de
Neurorradiologia nos Hospitais da Universidade de Coimbra.
Senhor
de um humor próprio e uma simpatia inexcedível, deixou uma profunda saudade em
todos os que tiveram a sorte de o conhecer ou ser seus amigos e o autor destas
linhas teve o privilégio de ouvir os seus comentários ao escrito nalgumas destas
crónicas e em particular, como ele dizia sorrindo “ao que lá não estando, está”.
Mas sendo um artista genial, deixou-nos as obras que compôs e gravou, que fazem
com que ele nos acompanhe em permanência, sortilégio exclusivo dos artistas.
Cultivar
a sua memória e divulgar a obra que nos deixou é um dever que sentimos ser da
Cidade que foi sua de alma e coração.
É,
pois, inteiramente justo e adequado o PRÉMIO FRANCISCO MARTINS que a Orquestra
Clássica do Centro, com o apoio da Câmara Municipal e da Livraria Almedina,
acaba de instituir para premiar anualmente autores de obras musicais, promovendo
novos valores e, simultaneamente, perpetuar a obra e o nome de Francisco
Martins. Sendo reconhecido pelos seus pares como um dos maiores executantes de
Guitarra de Coimbra e fundamentalmente um dos compositores mais notáveis da
Música de Coimbra, este será o primeiro passo para o reconhecimento que a nossa
Cidade notoriamente lhe deve como um dos seus artistas maiores.
E,
caro leitor, é enorme a satisfação do autor destas linhas por mais uma vez
poder colocar no título da crónica semanal, “Coimbra no seu Melhor” e partilhar
esse gosto com os leitores.
segunda-feira, 19 de outubro de 2015
Coimbra no seu melhor
A
avalanche de notícias das últimas semanas não é propícia a que outras novidades
importantes, mas fora do foco principal da atenção generalizada, tenham a
atenção que merecem. Ainda que num determinado dia surjam com algum destaque na
imprensa, são rapidamente esquecidas, levadas pelo imediatismo de que vive a
comunicação social.
Há
cerca de uma semana, Portugal foi admitido na Aliança M8, que é o mais
importante grupo de reflexão na área da saúde a nível mundial, tendo passado a
ser o 14º país e o 5º da Europa a fazer parte dele. A candidatura, que começou
a ser preparada há um ano, foi aprovada por unanimidade enquanto decorria a
Assembleia Geral da Cimeira Mundial da Saúde, que é a conferência anual da
Aliança M8 e que teve lugar em Berlim. Deve-se salientar que a candidatura
portuguesa contou com o patrocínio do Brasil e da Academia Portuguesa de
Medicina e ainda com o apoio do Charité, hospital universitário e universidade
de Berlim, bem como do Ministério da Saúde.
A
Aliança M8 constitui uma rede de excelência de Centros Médicos de Saúde
Académicos, Universidades e Academias Nacionais, a partir da qual se organiza
anualmente a Cimeira Mundial da Saúde, onde se analisam e discutem os cuidados
de saúde. É seu objectivo “promover a a
investigação transnacional, bem como a inovação na abordagem da prestação de
cuidados, almejando o desenvolvimento de sistemas de saúde eficazes na
prevenção da doença”. Além de Portugal que passou agora a integrar a
Aliança M8, fazem parte mais quatro países europeus, a França, a Inglaterra, a
Suiça e a Alemanha. Das instituições incluídas salientam-se, por exemplo, o
Imperial College do Reino Unido, a Sorbonne de França, a Universidade de São
Paulo do Brasil, ou a Bloomberg Escola de Saúde Pública John Hopkins dos EUA
Trata-se
do início da participação de Portugal no mais importante fórum mundial da
saúde, mas o seu significado é ainda mais importante para Coimbra. De facto,
Portugal é aqui representado pelo consórcio formado pelo Centro Hospitalar e
Universitário de Coimbra (CHUC) e pela Universidade de Coimbra.
É
reconhecida desde há muito tempo a relevância da Saúde em Coimbra, quer pela
amplitude da oferta de serviços, quer pela qualidade e nalgumas áreas mesmo pela
excelência reconhecida a nível nacional e internacional. O estabelecimento do
consórcio entre o CHUC e a Universidade de Coimbra é apenas a formalização de
uma ligação que existe desde sempre, já que boa parte do ensino da Medicina em
Coimbra se faz no próprio CHUC. Foi, no entanto, importante para juntar
esforços através dos representantes máximos das duas instituições, mas também
por anexar os próprios ministérios da Saúde e da Educação, simbolizando uma
união de esforços concertada no objectivo da entrada de Portugal na Aliança M8.
Desta
vez, Coimbra conseguiu ser farol e agregar o país à sua volta, impondo-se não
por razões simbólicas ou de qualquer outro tipo, mas pela sua excelência e
capacidade de organização. E não se pense que foi muito fácil. Basta referir
que, tanto o Hospital de S. João do Porto, como o Hospital de S. Maria de
Lisboa estavam interessados em ser o representante português na Aliança M8,
tendo exercido influências, às vezes até exageradas, para que Coimbra mais uma
vez ficasse para trás.
Seria
injusto, perante este sucesso, não referir o nome do principal responsável para
que acontecesse. O presidente do Conselho de Administração do CHUC Dr. Martins
Nunes foi capaz de definir um objectivo muito difícil, que muitos considerariam
mesmo inacessível, estabelecer uma estratégia, construir a necessária rede de
aliados nacionais e proponentes internacionais, perceber donde vinham as
dificuldades laterais para as anular e lutar para levar a Instituição que
dirige a ocupar um lugar entre as melhores e mais influentes Escolas de
Medicina do mundo. Não é algo que seja vulgar em Portugal, mas em Coimbra é um
sucesso a salientar e que merece todo o respeito e admiração da nossa
comunidade. Parabéns pelo trabalho bem feito, Dr. Martins Nunes.
Mas
a importância desta entrada na Aliança M8 é feita em representação de Portugal.
Permite o acesso directo ao que de melhor se faz na Medicina e na sua
investigação no mundo, enquanto abre uma porta à Medicina portuguesa e aos
nossos investigadores.
Poder
escrever com toda a justiça o que vai no título desta crónica, “Coimbra no seu
melhor”, é uma satisfação enorme. Retirar uma notícia com uma enorme relevância
para a nossa comunidade da enxurrada das notícias que vêm e vão sem deixar
rasto e dar-lhe atenção pública é uma obrigação de cidadania.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 Outubro 2015
segunda-feira, 12 de outubro de 2015
O gosto e o desgosto do Capitalismo
Há algumas semanas li uma interessante entrevista a
uma jovem que se rebelava publicamente contra o “estado de coisas”. Perguntada
sobre como se definia politicamente respondeu de pronto que era anti-capitalista;
questionada sobre se era comunista, respondeu que não.
Vivemos hoje numa sociedade em que a organização
económica em quase todo o mundo deriva do capitalismo ou, se se preferir outra
designação, economia de mercado. As excepções são uns restos do antigo modelo
comunista, como Cuba ou a Coreia do Norte, havendo ainda a China governada pelo
partido Comunista, mas com uma organização económica complexa que mistura puro
capitalismo de Estado, com livre iniciativa privada, embora rigorosamente
vigiada.
O colapso da União Soviética ocorreu em 1989, há
portanto 26 anos, o que significa, na realidade, que os jovens de hoje não
possuem qualquer memória pessoal sobre aquela realidade, desconhecendo em
absoluto as origens das posições ideológicas anti-capitalistas clássicas, sejam
as dos partidos comunistas clássicos, ou das dos numerosos esquerdismos maoismos,
trotzkismos, etc, sejam as de extrema direita.
No que diz respeito a Portugal,
o 25 de Novembro de 1975 está ainda mais longe, pelo que a sua memória
histórica aparece ainda mais diluída, com a ajuda do branqueamento levado a
cabo pelos próprios interessados que vão mantendo intactos os seus referenciais
ideológicos historicamente derrotados em 1989.
O capitalismo não é uma ideologia política,
constituindo antes uma forma de organização económica baseada na liberdade
pessoal e na livre iniciativa, sendo aquela que historicamente teve mais
sucesso. Tem facetas boas e tem facetas más. Para não irmos mais longe, o caso
da vigarice organizada pela Volkswagen à escala global, é o exemplo acabado de
como a ganância e a necessidade de os administradores apresentarem resultados
positivos e crescimento constante aos accionistas (os donos das empresas) podem
levar a enganar consumidores e autoridades fiscais do mundo inteiro.
A
desproporção de poder do capital das empresas perante os outros “stakeholders”
leva facilmente a estes abusos, pelo que a regulação e a capacidade de actuação
e independência de autoridades fiscais e entidades judiciais é essencial para
restabelecer o necessário equilíbrio.
Mas a indústria automóvel é igualmente uma das
demonstrações mais categóricas das capacidades positivas do capitalismo. Os
automóveis evoluíram desde o seu surgimento, sendo hoje tecnologicamente
avançados, oferecendo uma economia de combustível e uma segurança inimagináveis
até há poucos anos. Tal foi possível, pela competição entre os diversos
fabricantes do mundo inteiro, que foram sucessivamente absorvendo as inovações
tecnológicas que cada um ia conseguindo. A comparação com automóveis dos países
comunistas até aos anos noventa do século passado dava azo às mais diversas
anedotas, porque nos lembramos dos Trabant, Wartburg, Volgas e coisas
semelhantes que também tinham 4 rodas, mas mais nada que se comparasse ao que o
capitalismo consegue produzir.
O anti-capitalismo cresce entre a juventude de hoje,
sem que tal signifique uma posição política ditada por uma ideologia sustentada,
designadamente naquelas que vão até Marx ou Engels e que não dizem nada aos
jovens de hoje que vivem mergulhados na informação trazida pela internet
através dos tablets, computadores e telemóveis. Tudo isto, ironicamente,
produtos cuja existência e utilidade só foram tornados possíveis pelo
capitalismo e que, além do mais, promovem de forma extrema a liberdade
individual.
Mas todos esses aparelhos funcionam com software, tão ou mais
importante que os próprios equipamentos. E os produtores de software ganham
fortunas colossais a nível global mas, praticamente, não têm mão-de-obra, o que
contribui largamente para a má imagem actual do capitalismo, de que toda a
gente aproveita, mas que tanta gente detesta.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra de 12 de Outubro de 2012.
segunda-feira, 5 de outubro de 2015
Pequena reflexão, no dia que lhe é dedicado
Sábado de manhã a escrever a crónica semanal em dia
de reflexão. As eleições são amanhã e esta crónica será publicada na
segunda-feira, já depois de conhecidos os resultados eleitorais e terem
acontecido as consequências políticas mais importantes, para além dos festejos
dos vencedores. Como habitualmente, folha branca e caneta ao lado do
computador, para alinhar tópicos a desenvolver. Um assunto se impõe: eleições.
As eleições deste fim-de-semana vão ficar para a
História. Eventualmente pelos resultados, mas desde logo pelo seu
circunstancialismo verdadeiramente excepcional.
Imagine quem me está a ler que, na parede de fundo
da sua sala de jantar, tem o quadro Guernica de Picasso. Sim, eu sei que só
pelas suas dimensões tal seria difícil, eu próprio já me emocionei algumas
vezes perante a pintura, pelo que a conheço bem. Mas deixe esse aspecto de lado
e imagine que todos os dias almoça e janta com as crianças e restante família
tendo a Guernica como fundo. Significaria isso que mesmo durante esses períodos
de leve convívio e confraternização agradável e bem-disposta, não deixaria de
ter como pano de fundo a guerra, a destruição, o ódio, a desgraça da barbárie,
o sofrimento atroz e os gritos de socorro eternizados genialmente por Picasso.
O que, deve dizer-se, não é propriamente boa companhia para os momentos de
lazer e convivência, pelo que quem almoçasse numa tal sala só tinha duas hipóteses:
ou nunca mais lá almoçava, ou de alguma maneira esquecia que o quadro estava
ali, transformando-o mentalmente numa simples peça de decoração sem significado
intrínseco.
Ora bem, o que se passou nestas eleições foi uma
situação semelhante, que obrigou de alguma forma os portugueses a almoçar numa
sala com a Guernica ao fundo, fazendo os possíveis e impossíveis por não dar
por ela.
Portugal é o país em que o principal responsável
durante dezenas de anos por um dos maiores bancos está detido com suspeitas de
fraudes e sei lá que mais crimes económicos. Ricardo Salgado foi durante anos a
face do banco e do grupo económico a que presidia, por escolha da restante
família. Mas foi muito mais do que isso. Socialmente era o expoente de uma
determinada elite que fugia às capas das revistas ditas sociais; ao contrário
dos arrivistas que se pelam por lá aparecer, aquela família pagava o que fosse
preciso para se manter fora das fotografias. E tinha-se a noção de que pairava
acima das restantes pessoas, quer pela atitude, quer pelo poder que se
adivinhava só pela sua presença. Poder real, dado que o seu banco era
claramente aquele que mais claramente se relacionava com a economia e as médias
e pequenas empresas mas, e sobretudo, pela participação do grupo nos maiores
negócios do país, naqueles em que o Estado tinha uma palavra decisiva. Falo,
como é bom de ver, nas telecomunicações e nas diversas parcerias publico
privadas que transformaram as obras públicas em simples justificação para
negócios financeiros. Tudo ruiu fragosamente perante o descalabro de contas que
se tornaram impossíveis de esconder e o homem que era o maior responsável por
aquele império está detido, aguardando pela conclusão de processos que se
adivinham numerosos e pesados, não só em Portugal, mas também em pelo menos
meia dúzia de países com a Suiça à cabeça.
Mas esta não é a única detenção de pessoas
importantes que a Justiça manteve durante os meses que antecederam estas
eleições. Vários políticos de topo se viram a braços com processos judiciais
relacionados com actividades ilícitas como corrupção e troca de favores durante
o exercício de elevadas funções como governantes ou agentes superiores do Estado,
pelo que passaram esta campanha detidos. À cabeça está, como é evidente, o
anterior primeiro-ministro de Portugal, não cabendo aqui comentar ou analisar
da justeza ou não da actuação da Justiça neste caso, bastando apenas para o
caso dar nota de que a situação existe e é ineludível.
Tal como podemos fazer por ignorar o quadro de
Guernica na sala de jantar, a realidade de fundo destas eleições foi esta. Para
além das questões evidentes da vinda e saída da troika, da austeridade e
sacrifícios dos portugueses, das contas do Estado, da evolução económica, da
emigração, do desemprego, das exportações etc. etc. havia algo de que não se
falava, mas que estava sempre presente.
Portugal é um país com muitos séculos de História. É
mesmo o pais europeu que tem as suas fronteiras estabilizadas há mais tempo. Os
portugueses já passaram por muito ao longo de todos estes séculos e adquiriram
um saber e um sentir colectivos que ultrapassam em muito questões pontuais, por
mais relevantes que elas pareçam quando surgem.
O facto de os portugueses, embora bem conscientes do
circunstancialismo excepcional destas eleições, terem mantido a serenidade,
demonstrando um civismo exemplar e uma cultura democrática superior durante
estas eleições e todo o longo período de campanha que as antecedeu é o mais
importante que fica, muito para além da sua vontade política expressa nos votos
no dia de amanhã.
Nota: foto de votantes inserida posteriormente neste texto.
segunda-feira, 28 de setembro de 2015
Poluidor, em qualquer estrada
Em 1965 foi publicado nos EUA um livro da autoria de
Ralph Nader, com o título “Unsafe at any speed” – “Inseguro a qualquer
velocidade”. Embora tivesse ficado para a história como tendo sido a causa do
fim da produção de um modelo concreto, o “Corvair”, o livro punha em causa
muitas opções da indústria automóvel de então, em particular a resistência em
adoptar sistemas de segurança para os passageiros como os cintos de segurança,
bem como a continuação de utilização de sistemas tecnológicos inseguros, como
as suspensões, a direcção e travões, para além de designs exteriores perigosos
para os peões em caso de atropelamento. Foi um grito de alerta, muito mal
recebido pela industria automóvel, mas o certo é que depois disso houve uma
evolução drástica nessa indústria, bem como na acção de associações de
consumidores e na exigência dos próprios automobilistas. Hoje em dia, os
automóveis só por terem uma carroçaria e quatro rodas se parecem com os daquele
tempo. A própria indústria automóvel puxou pela investigação e desenvolvimento
de sistemas activos e passivos que tornam os automóveis de hoje
incomparavelmente mais seguros para todos os utentes da via pública.
Por sua vez, os choques de petróleo da década de setenta
e a consciência ecológica crescente levaram a um aprofundamento do conhecimento
do funcionamento dos motores de combustão para a melhoria da sua eficiência,
com vista a diminuir o consumo de combustível e a emissão de gases de escape,
principalmente dióxido de carbono.
Da indústria automóvel do mundo inteiro, houve um
país que se destacou nas últimas dezenas de anos pela qualidade dos seus
produtos, que é a Alemanha. Os automóveis alemães, em particular das três
marcas premium, a Mercedes, a BMW e a Audi, alcançaram um patamar de prestígio
pela robustez das suas mecânicas, qualidade geral de construção que se traduz
numa grande fiabilidade, pioneirismo na introdução de sistemas activos de
segurança e mesmo design exterior que os tornaram no modelo a seguir pela indústria
automóvel de todo o mundo e objectos de desejo dos consumidores.
Em particular, o desenvolvimento tecnológico dos
motores diesel fabricados na Alemanha, acabou com a imagem barulhenta, pouco
potente, suja e poluente que tinham há alguns anos. Hoje em dia, é mesmo o
desenvolvimento tecnológico dos motores diesel, que se sobrepõem mesmo aos
motores a gasolina em termos de potência e velocidade, que faz frente a um
surgimento mais em força dos motores eléctricos. A eficiência dos motores a gasóleo
tem subido enormemente, sendo evidente que ainda podem tirar muito mais força
motriz da energia do combustível que gastam, pelo que o seu futuro é ainda
promissor.
No entanto, um acontecimento veio nos últimos dias
abanar a indústria automóvel de uma forma só comparável ao sucedido na década
de sessenta com o livro de Nader. A Volkswagen, que é actualmente o maior
fabricante automóvel do mundo, está no centro de um furacão com consequências
ainda difíceis de calcular. Depois de ter sido alvo de uma denúncia, por parte
da agência de protecção ambiental americana (EPA), de que milhões dos seus
automóveis possuíam um dispositivo que permitia enganar as medições da emissão
de gases de escape, a Volkswagen reconheceu o facto, boa parte da sua
administração demitiu-se, o seu valor bolsista caiu em mais de trinta por
centro, arrastando muitos investidores na queda e as multas que vai pagar são
gigantescas.
A protecção ambiental leva a que os impostos sobre
os automóveis tenham uma forte componente ambiental. Em Portugal, por exemplo,
quer o imposto único de circulação (IUC), quer o imposto sobre os veículos
automóveis (ISV) têm essa componente, calculada a partir das emissões
declaradas de CO2. Se os construtores automóveis declaram um valor e depois
quando circulam na estrada poluem trinta ou quarenta por cento mais, há
consequências ambientais evidentes, mas também prejuízo fiscal para o Estado,
para além de engano deliberado dos consumidores.
Existe ainda outro prejuízo impossível de calcular a
curto prazo. A Volkswagen é alemã e detentora de várias outras marcas como a
Skoda, a Seat e a Audi, estando esta última claramente entre as melhores marcas
do mundo, para além da própria Porsche pertencer ao mesmo grupo. A confiança,
particularmente na indústria automóvel, constrói-se de forma árdua e contínua
ao longo de muitos anos, pelo rigor e exigência de qualidade acima de toda a
suspeita. A perda dessa confiança é instantânea. E quando uma indústria é quase
a imagem de marca de um país no mundo inteiro, a perda é ainda maior. E é essa
a maior questão trazida pela fraude gigantesca da Volkswagen.
Foto de http://www.economist.com/.
Foto de http://www.economist.com/.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 de Setembro de 2015
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