Como acontece sempre que uma grande personalidade
nos deixa, o recente desaparecimento de Stephen Hawking aos 76 anos não deixou
de trazer associada alguma controvérsia que aliás, nunca o abandonou em vida.
Não há seres humanos a preto e branco e o próprio gosto pessoal muitas vezes
atrai a discussão que tantas vezes se diz trazer a luz. Stephen Hawking foi um
dos cientistas mais consagrados dos nossos dias, mas cujos interesses
extravasaram em muito os campos da física teórica e da cosmologia a que se
dedicou. Nascido em Oxford em 8 de Janeiro de 1942, exactamente 300 anos depois
da morte de Galileu, veio em 1979 a ocupar a Cátedra de Matemática da
Universidade de Cambridge dita Lucasiana do nome de quem deu os fundos para a
fundar (Henry Lucas) e que em 1699 fora de Isaac Newton. Para além dos estudos
sobre o Espaço/Tempo e sobre os Buracos Negros que o tornaram conhecido,
Stephen Hawking foi um grande divulgador de ciência, tendo o seu livro “Uma
Breve História do Tempo” conhecido um enorme êxito em todo o mundo. Pouco
depois de completar 21 anos, foi-lhe diagnosticada esclerose
lateral amiotrófica, uma
doença degenerativa ainda sem cura que, ao longo dos anos, lhe foi paralisando
os músculos do corpo sem atingir as funções cerebrais. Durante grande parte da
vida, a sua deslocação fez-se em cadeira de rodas e a comunicação através de
sintetizadores de voz, tendo a certa altura perdido mesmo todo e qualquer
movimento do corpo, incluindo segurar a cabeça. O seu cérebro brilhante
continuou a trabalhar confinado a um corpo que se tornou na sua prisão, embora Stephen
Hawking tivesse, num esforço admirável, feito todos os possíveis para continuar
a transmitir ao exterior os resultados da laboração da sua actividade puramente
cerebral.
Também o cérebro de Beethoven, um dos maiores músicos de todos os tempos,
se viu a certa altura impedido de comunicar com o exterior através precisamente
daquilo que o distinguia de todos, a capacidade de juntar os sons de uma forma
única e revolucionária para a sua época. Nascido em 1770, a partir dos 26 anos
de idade, Beethoven foi progressivamente perdendo a capacidade auditiva. Aquele
que já então era considerado um génio, que aos dez anos já dominaria todo o
repertório da Bach e que iniciara a sua carreira de compositor aos 11 anos,
passaria grande parte da sua vida sem conseguir ouvir devidamente a
interpretação das suas composições. Nos últimos anos dez anos da sua vida ficou
mesmo completamente surdo. Felizmente, como a surdez só se manifestou enquanto
adulto, a sua memória auditiva era suficiente para compor mentalmente, passando
ao papel aquilo que para ele já era apenas pura construção cerebral, sem a
poder ouvir. Espantosamente algumas das suas obras mais marcantes, pelo
carácter inovador e visionário, são precisamente da fase final da sua vida como
os Quartetos para Cordas. Desta fase final é a célebre 9ª Sinfonia apresentada
pela primeira vez em 1824 sob a regência do compositor já com surdez total que
nem o permitiu ouvir a grande salva de aplausos final. A obra de Beethoven é de
tal forma avassaladora na História da Música, que durante muito tempo depois da
sua morte os compositores se abstiveram de compor mais do que nove sinfonias,
em manifestação de respeito e homenagem.
Beethoven e Hawking, personalidades históricas tão diferentes entre si e
que dedicaram os seus génios a áreas tão diferentes da criação humana, mas
unidos pela prisão dos seus cérebros nos corpos e conseguindo, com enorme
esforço, encontrar meios de comunicar o seu labor intelectual com o exterior,
constituindo-se assim em símbolos de liberdade. Através da superação de
dificuldades extremas, tanto Beethoven como Hawking conseguiram deixar a
Humanidade mais rica. Na realidade, a pior prisão que pode haver é a do
espírito, como muitos prisioneiros dos mais diversos campos de concentração e
escravaturas as mais diferentes descobriram por si, nunca se sujeitando aos
carcereiros.
Quando um dia perguntaram a um juiz, após o julgamento de um caso
particularmente grave, se ainda acreditava na Humanidade depois daquilo
acontecer, a sua resposta foi que sim, porque tinha lido o “Diário de Ann Frank”.
Tinha toda a razão. Àquela jovem heroína podemos acrescentar muitas outras
personalidades que nos mostram como é possível ao espírito humano ultrapassar
as barreiras mais adversas e escrever as mais belas páginas da Arte e da
Ciência, provando sempre que a Humanidade vale a pena.
NOTA: Republicação de artigo de 2 de Abril de 2018
NOTA: Republicação de artigo de 2 de Abril de 2018