segunda-feira, 15 de maio de 2023

VOLUNTARIADO

 


Não é preciso procurar muito na comunicação social ou nas redes sociais para se encontrar um certo espírito difuso de que a nossa actual sociedade é egoísta, tendo perdido muito de um espírito de solidariedade que em outros tempos a caracterizaria.

Na realidade, os tempos que atravessamos são de uma mudança social vertiginosa, e nem é preciso entrar pela análise das chamadas questões fracturantes cuja defesa veio substituir a velha luta de classes. Se há cem anos a industrialização crescente produziu autênticos exércitos de operários sem defesas para as suas condições de trabalho, lavrou também o terreno para o surgimento das lutas sindicais eu se basearam muito em ideologia, mas também em camaradagem e solidariedade social.

Tudo isso evoluiu, assistiu-se à instalação de regimes horríveis de ditaduras fascistas e nazis, bem como de um regime comunista que prometia o socialismo e finalmente a igualdade entre todos os homens acabando num triste capitalismo de Estado. Uma guerra mundial provocada pelas ditaduras ditou o fim delas próprias e dezenas de anos depois os próprios regimes de partido único comunista colapsaram, incapazes de competir com os regimes liberais.

Quando muitos previam o fim da História, o que sucedeu foi uma globalização anárquica e uma desregulação económica e financeira que, em poucas dezenas de anos, alterou a maneira de viver de milhões um pouco por todo o planeta.

O crescimento económico que o Ocidente conheceu nas décadas seguintes ao fim da II Grande Guerra deu lugar a alguma estagnação. Os países que tinham enriquecido continuam ricos, mas sem crescer nada do que se pareça com a segunda metade do sec. XX. Já os países pobres assim continuam ou ainda pior, com lideranças políticas extractivas e genericamente corruptas, provocando migrações gigantescas, como nunca aconteceu em tempos de paz.

Em consequência de tudo isto, e da incapacidade de os políticos compreenderem o que se passa continuando a pensar e agir como há 40/50 anos, a nossa vida social conhece igualmente desregulações e mesmo disrupções que são características de fim de época, embora seja impossível definir o que se vai seguir. Para além da guerra, o que se passa na Rússia, em reacção violenta contra os males do liberalismo, como Putin e os seus ideólogos defendem, pode ser um sinal, aliás com o será o que se passou recentemente no Brasil e mesmo nos EUA com Bolsonaro e Trump. Também há países europeus, mesmo integrantes da União Europeia, que parecem caminhar no mesmo sentido, embora de forma algo discreta, que os fundos da UE sabem bem e não só a nós.

Embora a regulação do trabalhado seja cada vez mais apertada e exigente, a realidade mostra que se está a assistir a mudanças profundas, também nesta área. A pandemia do COVID veio mostrar a possibilidade de grande parte das tarefas poder ser executada de forma não presencial, o que é permitido pelas novas tecnologias e pela internet. A legislação bem pode não o permitir no papel, mas os telemóveis, tablets e computadores portáteis fazem com que o trabalho vá muito para além das horas regulamentadas. Também as actividades extra-escolares dos alunos fazem com que os progenitores andem sempre a correr de um lado para o outro, retirando-lhes tempo para o necessário descanso que parece sê-lo cada vez menos, sendo frequentemente constituído por viagens e actividades que proporcionam tudo menos o que seria suposto fazer.


O tempo tornou-se de facto o bem mais precioso que se pode ter. Tempo para ir ao cinema, para ler um livro ou ouvir um concerto descansado do princípio ao fim, ou mesmo para uma conversa descontraída com amigos. É por isso que, nos dias de hoje, surpreende a capacidade de tantos para, apesar de tudo, dedicarem de forma gratuita (boa) parte do seu escasso tempo disponível aos outros.

A verdade é que o voluntariado, que se poderia pensar estar a desaparecer com as características absorventes da vida moderna, continua vivo e actuante, cumprindo um papel essencial na solidariedade entre as diversas camadas sociais.

Seja qual for a razão por que o fazem, há imensas pessoas que dedicam parte do seu tempo a visitar hospitais dando ajuda aos doentes que sofrem ou a ir às prisões consolar os presos ajudando-os a ultrapassar um tempo difícil, mas também a preparar o tempo que virá a seguir. Pessoas que, de forma discreta, partilham as suas posses com instituições que ajudam pessoas em situação difícil, sejam crianças ou velhos desamparados ou que oferecem apenas a sua companhia dando precisamente o que lhes é mais valioso: tempo.


Milhares de pessoas, desde jovens escuteiros a estudantes universitários, passando por gente na força da vida e reformados ofereceram o seu tempo e presença na campanha do Banco Alimentar do passado fim-de-semana, sujeitando-se a ouvir um outro não mais forte, mas sendo também testemunhas de tocantes mostras de que a solidariedade ainda não é entre nós uma palavra vã. Se houvesse necessidade de prova de que os fundamentos mais importantes da nossa sociedade ainda estão presentes com muita força, contrariamente ao que muitos julgam, ela aí está sem sombra nenhuma, longe da artificialidade em que tantas vezes as nossas vidas se enredam.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Maio de 2023

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segunda-feira, 8 de maio de 2023

RESPONSABILIDADE

 


Para quem já tem idade para ter seguido com alguma atenção a evolução política do país durante dezenas de anos não deixa de ser estranho que a simples possibilidade de demissão de um ministro provoque uma tão grande comoção na comunicação social e na classe política como tem sucedido nos últimos dias. Desconfio mesmo que essa atenção não será acompanhada pela esmagadora maioria dos portugueses que têm muito mais em que pensar e com que se preocupar.

Relembrando o essencial desta crise política, tudo começou com a demissão da secretária de Estado do Tesouro que antes tinha sido administradora da TAP, de onde saiu com uma choruda indemnização. Curiosamente, a sua entrada no Governo a convite do ministro das Finanças deu-se para substituir o anterior ocupante da pasta que tinha passado a trabalhar como sec. de Estado adjunto do primeiro-ministro com responsabilidades na área de coordenação do Governo, dado que o seu antecessor nesse lugar foi obrigado a demitir-se ao ter sido tornada pública a sua actuação, algum tempo antes, como presidente da Câmara de Caminha. Em sucessão delirante de acontecimentos, depois da demissão da sec. de Estado do Tesouro, saiu outro sec. de Estado, agora no ministério das Infraestruturas e a seguir foi a vez de o poderoso ministro das Infraestruturas seguir o mesmo caminho. Tudo no meio de descoberta de mentiras sobre mentiras, tendo-se seguido a demissão em directo na televisão, por dois ministros, das duas principais figuras da administração da TAP: a administradora executiva e o presidente do conselho de administração.

E pensar que tudo teve início com a história rocambolesca de um pavilhão pago por uma Câmara, que nunca chegou a existir, história de que todo o país se riu às gargalhadas, pela sua implausibilidade!

Está agora na berlinda João Galamba, ministro das Infraestruturas há cerca de quatro meses, desde a demissão de Pedro Nuno Santos, de quem era, aliás, secretário de Estado. Na sequência de notícias pelo menos contraditórias sobre notas de reuniões e cenas ocorridas no seu gabinete ministerial reveladas publicamente com detalhe inaudito por João Galamba, o presidente da República veio a público, numa atitude sem precedentes, exigir a saída do ministro, o que foi recusado pelo primeiro-ministro.

Abriu-se assim uma evidente crise institucional entre Governo e presidência da República, algo que já aconteceu anteriormente por diversas vezes no actual regime democrático, lembrem-se as relações entre institucionais muito tensas, para dizer o mínimo, entre Eanes e Sá Carneiro e entre Mário Soares e Cavaco Silva. Contudo, a reacção de Marcelo Rebelo de Sousa à recusa de António Costa em demitir Galamba constituiu um passo em frente que é outra originalidade. Marcelo falou directamente ao país num discurso muitíssimo duro sobre a actuação de João Galamba concluindo por a considerar irresponsável, considerando que a sua continuação como ministro acarreta graves consequências para o Governo e para o próprio Estado a nível de responsabilidade e mesmo de autoridade. Em consequência o Presidente avisou que a sua atitude perante a governação será, apesar de manter colaboração institucional, muito mais severa e rigorosa.


O insólito da situação deve estar a deixar a generalidade dos portugueses atónitos e desagradados com a situação, até porque foram chamados a escolher deputados e consequentemente Governo há pouco mais de um ano, mas sabendo bem que num dia destes terão a possibilidade de dizer o que acham disto tudo através de novo voto.

Já a classe política reage de forma curiosa. Lá longe, na extrema-direita e proximidades clama-se por uma dissolução imediata do parlamento e realização de novas eleições; lá igualmente longe, mas do lado da extrema-esquerda e vizinhança aponta-se que primeiro-ministro e presidente têm igualmente responsabilidades, não pedindo eleições imediatas, mas garantindo não terem medo delas. Nas proximidades, o PSD afasta-se da questão principal, salientando as responsabilidades concretas dos membros do Governo, mas afastando a necessidade de eleições imediatas. Ainda por perto o PS, fechando os olhos à realidade, garante que tudo isto não foge à normalidade democrática, não passando de compreensíveis diferenças de pontos de vista.

O que todos sabemos é que as próximas decisões políticas do país estarão claramente dependentes do que se vai passar na Comissão Parlamentar de Inquérito da TAP. Isto é, o futuro do país depende de afirmações que poderão andar muito perto de vinganças pessoais e não da governação económica, da gestão do SNS, da Justiça, da Educação, etc.

Tudo isto é evidentemente triste, mas será mesmo o nosso fado?

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Maio de 2023

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segunda-feira, 1 de maio de 2023

DEMOCRACIA E DEMOCRATAS

 


Uma das grandes forças do regime democrático é a possibilidade de albergar anti-democratas no seu seio. É claro que é também uma das suas fraquezas, porque fica frequentemente sujeito a que os demagogos o possam capturar pelo seu interior, levando as maiorias decisoras a crer no que lhes é vendido como verdade, quando é exactamente o contrário.

Portugal entrou no quadragésimo nono ano do actual regime, que foi fundado em 1974 e que é, felizmente, democrático. Claro que não temos democracia há 49 anos, nem podíamos ter, porque de uma revolução ou mesmo de um golpe de Estado que se siga a um regime ditatorial de partido único com dezenas de anos, seria quase impossível passar instantaneamente para uma Democracia plena.

Mas, na realidade, o chamado PREC (Processo Revolucionário em Curso), em que andaram à solta forças antagónicas com tentativas diversas de orientar de forma não democrática o que seria o novo regime que sairia do 25 de Abril acabou por durar pouco tempo, embora tenha sido um tempo intenso. No 25 de Novembro de 1975 as próprias Forças Armadas colocaram um fim no PREC, possibilitando ao país organizar-se através de escolhas feitas por eleições livres e democráticas. O regime acabaria por se consolidar em 1982 na chamada Revisão Constitucional que deu por finda a intervenção militar instituindo-se um Tribunal Constitucional para garantir a constitucionalidade da diversa legislação que, a partir daí, sucessivos Governos e Sessões parlamentares fossem produzindo.

O 25 de Abril constitui-se, assim, como um momento fundacional de um Regime, aquele em que vivemos. Quase cinquenta anos depois, mais do que fazer comemorações festivas, que são evidentemente justas e necessárias, já que a Liberdade nunca é celebrada em demasia, torna-se necessário fazer avaliações que devem ser o mais justas e realistas que seja possível.

Em primeiro lugar, é evidente que no momento da queda do antigo regime havia alguns cidadãos que tinham lutado contra ele de diversas formas. Se na sua maioria tinham como motivo dessa luta a instituição de uma democracia liberal à semelhança da Europa ocidental, outros havia que almejavam antes um regime comunista cujo modelo era a Europa de Leste orientada pela então União Soviética. Alguns portugueses acreditavam ainda na propaganda do Regime que, havendo durado tanto tempo quase se constituíra em «vida habitual e normal»; seriam cada vez menos, muito por consequência da Guerra Colonial que Portugal mantinha em África, quando todas as antigas potências coloniais já tinham dado independência aos seus territórios ultramarinos. Contudo, a esmagadora maioria do povo mal conhecia a Democracia e o seu funcionamento. Não se podendo considerar como democrata antes da Revolução, aderiu, contudo, com entusiasmo, até porque muitas famílias tinham algum familiar em países europeus ou americanos, que serviam de farol se não ideológico, pelo menos como se tratando de países onde se sentia que a Liberdade e o desenvolvimento económico andavam a par.

Foi assim que durante as primeiras dezenas de anos após o 25 de Abril o povo português participava de forma massiva e mesmo entusiástica nos diversos actos eleitorais que se iam seguindo. Com governações à esquerda ou à direita, melhor ou pior, mais ou menos intervenções externas, o país foi tendo algum equilíbrio, sem grandes extremismos. Até que António Costa correu com António José Seguro da liderança do PS e a seguir perdeu as eleições. Contudo, para sobreviver politicamente, aceitou fazer o que o seu partido antes nunca fizera desde 1975: fazer acordos parlamentares com a esquerda mais radical do PCP e do BE com vista a poder ser governo minoritário, puxando assim drasticamente o centro da política para o lado esquerdo. Como os desequilíbrios não se corrigem automaticamente apenas na Física, uma das consequências imediatas, para além das políticas seguidas, foi abrir o caminho para o surgimento de uma direita radical que se assume como anti-sistema, como antes nunca havia sucedido, que vai absorvendo ressentimentos e reacções um pouco por todo o espectro político.

E estamos hoje a ver as consequências, com cenas lamentáveis na Assembleia da República e fora dela. Enquanto os portugueses observam com espanto absoluto o que se vai destapando da gestão governamental do caso TAP, os partidos entretêm-se a, como eles dizem, colocar linhas vermelhas que só existem nas suas bolhas fechadas à realidade. Seriam bem mais consequentes ao responderem aos anseios populares fazendo uma avaliação da sua actuação com vista a uma alteração completa das suas práticas, começando por rever as leis eleitorais que favorecem os grandes partidos e cortam a ligação dos eleitores com os eleitos. 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Maio de 2023

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segunda-feira, 24 de abril de 2023

SOBRE UMA ESTÁTUA DE D. AFONSO HENRIQUES


 As obras artísticas figurativas aliam dois aspectos que podem transportar uma elevada tensão entre si: o representativo e o simbólico. Quando se trata de homenagear figuras com uma elevada carga Histórica, essa tensão é ainda maior podendo, caso seja mal resolvida, ter efeitos contrários à boa vontade original.

Vem esta introdução a propósito da passagem temporária por Coimbra de uma escultura de D. Afonso Henriques a caminho do seu destino final, em Zamora, Espanha e da vontade anunciada pela Câmara Municipal de vir a dotar a Cidade de uma escultura do Rei.

O nosso primeiro Rei é a figura central de uma narrativa muito bem construída pela cidade de Guimarães, onde existe uma estátua emblemática de D. Afonso Henriques, sob o lema «aqui nasceu Portugal», que abrange o castelo da Cidade e o cenográfico Paço Ducal, do sec. XV, portanto muito posterior à nacionalidade. Em torno destes elementos, Guimarães construiu, e muito bem, a sua marca. Se perguntarmos a qualquer português sobre Guimarães, com uma muito elevada probabilidade responderá que ali nasceu Portugal.

No entanto, foi em Coimbra que D. Afonso I estabeleceu a sua Corte, aqui morreu e aqui está sepultado. Há mesmo quem diga que o seu nascimento terá ocorrido em Coimbra ou Viseu, sendo já rara a defesa de que tenha nascido em Guimarães. Em Coimbra existe desde a Nacionalidade o Paço Real, que desde o início do sec. XVII se chama Paço das Escolas. O seu túmulo encontra-se no Mosteiro de Sta. Cruz que foi fundado precisamente por ele em 1131 e que é panteão nacional por essa razão. O túmulo é belíssimo e sobre ele pode-se admirar a estátua jacente do Rei fundador da autoria de Nicolau de Chanterenne, a encomenda de D. Manuel I, no sec. XVI.

Coimbra tem, assim, todos os motivos para chamar a si a fundação da nacionalidade podendo, com toda a facilidade, caso o queira, construir uma narrativa sólida e muito abrangente sobre o assunto. Contudo, a cidade nem sequer tem uma estátua do nosso primeiro Rei. A passagem desta escultura da autoria do escultor Dinis Ribeiro e do arquiteto Abel Cardoso, que pretende retratar o rei na sua juventude, foi efémera (muitos dizem que ainda bem) mas veio, apesar das polémicas, levantar a questão da estátua do Rei primeiro em Coimbra, o que em si é positivo.

Uma escultura que tem a possibilidade de ter um efeito iconográfico de peso para Coimbra levanta duas questões que se interpenetram: o tipo de escultura e a sua localização. Por exemplo, uma escultura apeada como a de Guimarães poderá ficar bem em certos locais e mal noutros, tal como acontece com uma escultura a cavalo. Também não convém que entre em conflito com outros locais que já são ícones de Coimbra como acontece, por exemplo, com a proximidade do Mosteiro de Sta Clara, associado à Rainha Santa Isabel onde se escolheu colocar a escultura que vai para Zamora. Isto é, a encomenda da estátua deverá ser antecedida pela escolha do local concreto onde será implantada, decisão que por si mesma já não é fácil. Uma estátua equestre ficaria bem, por exemplo, no meio da Praça Velha, já o mesmo não acontecendo com a Praça Oito de Maio ou o Largo da Sé Velha, outro monumento relacionado directamente com o nosso Rei fundador. Qualquer um destes locais receberia bem uma estátua apeada bem dimensionada, desde que que implantada adequadamente, tal como aconteceria com o jardim/escadaria em frente da Escola José Falcão precisamente na Av. Afonso Henriques, aqui com a vantagem de descentrar as visitas turísticas a Coimbra.


Particularizar a estátua a determinados pormenores, como idade muito jovem ou avançada, como acontece com esta que agora passou por Coimbra não parece que seja grande ideia, devendo-se optar por uma imagem do Rei consentânea com a que foi sendo construída ao longo dos séculos e por ele próprio pela sua acção decidida e forte de construção de um reino independente. De qualquer forma, depois de decidido o local de implantação, será adequado e até prudente que a Cidade realize um concurso de ideias que permita a autores diversos apresentar as suas propostas, com classificação por um júri (com participação de autarcas e de munícipes convidados, mas também de especialistas em História de Portugal e de Arte, incluindo professores da Universidade). Temos de ter consciência de que um monumento destes pode ser importante para a Cidade mas deverá, para que venha a fazer parte da sua marca identitária, estar em harmonia com o significado histórico do Homem representado, quer seja de forma mais clássica ou mais moderna, não interessa, desde que com qualidade artística claramente reconhecida.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 Abril 2023

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domingo, 23 de abril de 2023

O REGRESSO DA POLÍTICA

 


A maioria absoluta alcançada nas eleições realizadas há pouco mais de um ano pelo PS dirigido por António Costa parecia ter retirado a política da atenção mediática, substituída por questões que à superfície parecem mais técnicas que outra coisa. A política pura e dura retirara-se para as catacumbas dos centros de poder totalmente ocupados e geridos pelo partido do Governo, permanecendo bem escondida dos olhares dos portugueses. Essa ocupação vai tão longe que abrange mesmo as entidades reguladoras da economia que, por definição, deveriam ser independentes mas para onde foram sendo dirigidos ex-governantes, desde ministros a secretários de Estado. Cá fora, para discussão pública, foram ficando assuntos diversos e irrelevantes para o futuro da generalidade dos portugueses, de que a eutanásia será o exemplo mais óbvio.

Tudo isto ia correndo, até que….. foi «destapada» a TAP na comissão de inquérito da Assembleia da República, dando razão ao velho ditado que nos ensina que «zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades».

A actuação da gestão da TAP e, principalmente, dos membros do Governo directamente responsáveis pela companhia está para além do compreensível pelo cidadão comum, ainda por cima tratando-se de uma empresa renacionalizada pelo Governo de António Costa depois de privatizada como mandava o memorando de entendimento assinado por Sócrates com a Troica e onde foram metidos 3,2 mil milhões de impostos dos portugueses. Esta situação, só por si, aconselharia qualquer Governo, a começar pelo seu primeiro responsável, a ter especiais cuidados com tudo o que dissesse respeito à empresa, ao contrário da perfeita balbúrdia que todos vamos descobrindo.

E a explicação habitual de que se tratava de assuntos técnicos caiu por terra, devido às evidentes interferências governamentais na própria gestão diária da TAP. O assunto tornou-se, assim, eminentemente político, com consequências que ainda não são visíveis neste momento, mas que se vão adivinhando.

Começou mesmo a falar-se abertamente de dissolução da Assembleia da República, com o próprio presidente da República a referir-se à hipótese como sendo uma prerrogativa constitucional de que não abdica. Muitas vozes, incluindo a do presidente, vão contudo adiantando não ser este um momento adequado para que tal aconteça, por razões conjunturais ligadas à guerra na Ucrânia, à inflação e sobretudo, por não se ver alternativa eleitoral viável ao partido Socialista. Quanto às razões conjunturais, são apenas areia atirada aos olhos dos portugueses, não fazendo qualquer sentido e nem vale a pena comentá-las. Já o argumento da falta de alternativa exige mais cuidado na sua abordagem. De facto, se a Democracia tem uma vantagem, é precisamente a de haver sempre alternativa: quem escolhe é o povo que, por definição, sabe o que faz. Na minha opinião, embora haja uma crise governativa sistémica, ela não é novidade nenhuma e é mesmo anterior à actual maioria absoluta pelo que, neste momento, não há ainda uma razão concreta que, por si, justifique a dissolução da Assembleia.

Claro que uma hipótese de ultrapassar a crise que tem vindo a criar seria o próprio partido Socialista assumir as suas responsabilidades de partido com maioria absoluta e substituir todo o governo, com o primeiro-Ministro à cabeça. Foi, por exemplo, o que fez recentemente o partido Conservador no Reino Unido, correndo com o primeiro-ministro incapaz de dar a volta à situação não uma, mas duas vezes. Todos sabemos, no entanto, que os nossos deputados não têm independência suficiente para tomar tal atitude, sejam de que partido forem, porque na realidade não são escolhidos pelos portugueses mas sim nomeados pelos directórios partidários para preencherem as listas apresentadas a eleições. Pelo que esta solução não será certamente seguida pelo PS, embora haja sempre uma primeira vez para estas coisas.


E, aqui, é evidente a responsabilidade grave que o PSD tem neste momento. A meu ver não pode estar à espera que o poder lhe caia nas mãos, mais cedo ou mais tarde. E precisa de sacudir rapidamente, e de vez, o colete de forças que o PS habilmente lhe colocou com o Chega. Para tal, tem uma saída viável a curto prazo, à semelhança de Sá Carneiro em 1979, mas atendendo aos tempos actuais. Deverá organizar um congresso para construção de uma alternativa com todo o centro-direita e independentes, incluindo Iniciativa Liberal e o CDS. Sim, neste último caso poderia mesmo tentar anular a asneira das últimas eleições, garantindo-lhe lugares em listas comuns nas próximas eleições. Eleições que, apesar de tudo, poderão ocorrer bem mais cedo do que se espera, pelo que a urgência é óbvia.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  17 de Abril 2023

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segunda-feira, 10 de abril de 2023

A BELEZA DOS CABELOS BRANCOS

 


Num dia destes chamou-me a atenção, no ginásio que frequento, uma jovem nos seus trintas, com boa parte da cabeça coberta por cabelos brancos que contrastavam fortemente com o resto do cabelo ainda bem preto. Na realidade, apenas a juventude estabelecia diferença relativamente à maioria das mulheres mais velhas frequentadoras do ginásio onde, tal como sucede no resto da sociedade, muitas mulheres escolhem hoje não pintar o cabelo.

Trata-se de uma alteração social recente que, eventualmente, surge como uma das numerosas mudanças trazidas pelo confinamento provocado pela pandemia do COVID-19. De facto, a ida aos cabeleireiros tornou-se muito mais rara, aliás com consequências muito sérias ao nível dessa actividade económica.

Mas essa não será a principal razão por que muitas mulheres deixaram de pintar o cabelo, quer frequentem ou não o cabeleireiro com a mesma regularidade de antes. Há, notoriamente, uma escolha deliberada por assumir um dos sinais típicos da passagem dos anos por todos nós, homens e mulheres.

Que fique claro que não estou, nem de perto nem de longe, a fazer alguma crítica às pessoas que escolhem pintar os seus cabelos quando começam a aparecer as primeiras cãs. Também estão no pleno direito de fazer as suas escolhas e terão as suas razões para as assumir. Além disso, se as mudanças sociais das últimas dezenas de anos trouxeram alguma vantagem, é precisamente a de aceitar as escolhas pessoais aos mais diversos níveis.

Mas assumir os cabelos brancos traz, em si, uma capacidade de afirmação social de relevo, para além da beleza própria dos cabelos prateados e do seu significado. Lembro-me de artistas célebres que sempre assumiram os seus cabelos brancos quando eles surgiram, não diminuindo em nada o seu encanto pessoal, muito antes pelo contrário. Por exemplo, para referir algumas das minhas artistas preferidas, a célebre cantora folk americana Emmylou Harris surgiu, a certa altura, com uma nova beleza que nada fica a dever à que tinha enquanto jovem. Ou a excelente atriz britânica Helen Mirren que surge tão estonteante nos dias actuais como quando actuava na Royal Shakespeare Company nos já longínquos anos 70.

E, se a minha própria filha já apresenta orgulhosamente os seus cabelos brancos ao começar os seus quarentas, a que propósito o seu pai iria esconder os seus quase setenta, disfarçando os anos já vividos? Na realidade os cabelos brancos podem aparecer numa idade avançada ou mesmo nunca, mas também podem surgir em pessoas bem mais novas. Poderá tal facto ser fruto de dificuldades da vida que fazem com que os trabalhos de cada ano sejam equivalentes a vários anos descansados. E assumir isso mesmo também só faz ressaltar uma personalidade forte e uma excepcional capacidade de resistir às pressões e dificuldades, o que em si mesmo já é notável.

Acontece ainda que esta evidente mudança significa ainda uma alteração comportamental social da maior relevância. Ao afirmarem-se com os seus cabelos prateados as pessoas mostram que se consideram como elementos activos e importantes na sociedade, longe de se andarem a esconder seja de que maneira for. Não apenas pela experiência adquirida ao longo das suas vidas, o que já por si é um valor inestimável, mas também por serem quem são e não um peso morto. Na realidade, mostram que podem ter um papel social de relevo e com elevadas vantagens para toda uma sociedade que passa por momentos de evidentes dificuldades de organização e mesmo definição de objectivos concretos.

E um cabelo prateado bem cuidado usado com orgulho é também sexy, já que pode, por si mesmo atrair o outro, podendo vir a somar-se a outros eventuais atributos físicos pessoais indo, contudo mais além pela capacidade evidente dos aspectos psicológicos que se somam assim aos outros. 

Texto publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Abril de 2023

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segunda-feira, 3 de abril de 2023

DAS EMPRESAS EM PORTUGAL


 É talvez uma das piores heranças da geringonça que permitiu a António Costa governar o país depois de ter perdido as eleições em 2015. Nos últimos anos tornou-se praticamente consensual na sociedade portuguesa um sentimento de oposição sistemática às empresas, principalmente às grandes e, com toda a naturalidade de uma evidência instalada, contra aquelas que apresentam grandes lucros ao fim do ano. Se isto não é novidade por parte dos apoiantes do PCP e do BE que rejeitam em absoluto o liberalismo e o sistema económico que lhe está subjacente que é o capitalismo, já é um pouco surpreendente que posições muito semelhantes surjam de quem não se assume como comunista ou mesmo socialista da nova vaga.

Parece que o sucesso das empresas é equivalente ao assalto automático ao bolso dos consumidores, mais parecendo que os portugueses se tornaram neste séc. XXI seguidores de Proudhon, para quem “a propriedade é o roubo”.

E, ao longo dos anos, foi-se instalando uma ideia generalizada de que é positivo que a nossa economia seja constituída em mais de 98% por micro, pequenas e médias empresas, que estarão mais perto dos consumidores e dos seus interesses imediatos, ao contrário das grandes que são uns monstros exploradores que, por vezes, até instalam as suas sedes em outros países. Nada de mais errado.

Recentemente, foi tornado público um estudo conjunto da Associação Business Roundtable e da Nova Information Management School denominado “Análise prospetiva do impacto do crescimento das grandes empresas em Portugal” que procedeu a uma avaliação do impacto das grandes empresas na economia nacional.

Surpresa das surpresas: 1% das empresas do país são responsáveis por gerar 57% do valor Acrescentado Bruto. Os números do estudo mostram que, no período entre 2016 e 2019 as grandes empresas nacionais foram, em média, 3,7 vezes mais produtivas que as médias empresas e geraram um VAB dez vezes superior ao dessas mesmas empresas.

Mas as surpresas não se ficam por aqui. O prof. Bruno Damásio da Nova IMS e investigador responsável pelo estudo fez notar “o forte impacto que as organizações de grande dimensão têm, tanto a nível económico, como dos trabalhadores e do próprio Estado”. De tal forma que, “para além de 57% do VAB, essas grandes empresas garantem por si 62% das exportações, 48% dos gastos com pessoal, 64% das contribuições para a segurança social e 71% dos impostos entregues ao Estado. Significa isto que 1% das empresas contribuem com muito mais do que as restantes 99% do tecido empresarial, constituído por pequenas e médias empresas”, como vincou ainda Bruno Damásio.

Para além disso, as grandes empresas pagaram, em média, salários de 30.900 euros, o que significa mais 30% do que as médias e mais 70% do que as pequenas empresas.


É fácil percebermos que algo está profundamente errado nas políticas que temos seguido. Mas este estudo vem provar, à evidência, um dos principais problemas da nossa organização económica. A produtividade e o crescimento dos rendimentos, quer dos investidores, quer dos trabalhadores, estão em linha com o crescimento das próprias empresas e não na continuidade de uma economia baseada essencialmente em muitas micro, pequenas e médias empresas que apenas subsistem num mercado pobre e pouco sofisticado.

Como resultado, o que vemos é um Estado que, paulatinamente, se vai transfigurando de “social” em “assistencialista” à medida que vamos empobrecendo relativamente aos parceiros europeus. Isto apesar dos fundos que nos vão enviando para isto e mais aquilo e ainda recuperação (de quê?) e de resiliência (será que sabem ao menos o que é?), mas nunca para que as empresas cresçam, sejam competitivas, tenham lucros a sério e possam pagar ordenados semelhantes aos dos outros europeus.

E o que mais perturba no meio disto tudo é que pareça que ninguém com responsabilidades políticas esteja a dar conta disto e andemos para aí todos entretidos a catar quem fica com o IVA do galão ou do croissant do pequeno-almoço ou se os imigrantes nos vão destruir a nossa sagrada vivência. Ou ainda se presidente da República e primeiro-Ministro andam de candeias às avessas ou vão juntos à bola. Já agora, a Roménia (a Roménia, lembram-se do Ceausescu????) que as previsões apontavam que nos apanharia em riqueza em 2024 já o fez em 2022. Os outros vêm já a seguir, se continuarmos com esta conversa da treta de achar que “as empresas são o roubo”, quando o Estado é que não consegue cumprir as suas obrigações mínimas na saúde, na educação, na justiça, na defesa, etc. etc.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Abril de 2023

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segunda-feira, 27 de março de 2023

ERROS HISTÓRICOS

 


Muitos amigos me perguntam frequentemente onde vou buscar inspiração para escrever uma crónica semanal durante tantos anos sem falhar, e já lá vão mais de 17. Visto de fora pode, de facto, parecer uma dificuldade. Na realidade, vista de dentro, a situação é muito diversa. Porque as crónicas acabam por ter um fio condutor que às tantas diz mais sobre o autor das linhas do que sobre cada um dos assuntos abordados em já quase um milhar de semanas. E, por outro lado, as crónicas como que ganham vida própria de modo que aquilo que se pretendia comunicar chega mesmo a perder espaço perante considerações laterais ou adjacentes que sempre surgem e levantam outras matérias interessantes como quem puxa um fio e atrás dele vem sempre outro agarrado. Por vezes torna-se mesmo necessário fixar o rumo para que os “empurrões” laterais não nos levem a um porto diferente daquele onde se pretendia chegar.

Toda esta introdução vem a propósito da crónica da semana passada que, se o estimado leitor teve a paciência de a ler, deve recordar que tratava da constatação pessoal de que o país me parece navegar sem rumo, por não ter objectivos claros a atingir. E fiz uma comparação com tempos em que os portugueses mostraram ser capazes de estar à frente do seu tempo, quer em gestão de projectos extremamente complexos, como ainda em estar na vanguarda do conhecimento científico. Tudo para «dar novos mundos ao mundo» e transformar a vida no nosso planeta para sempre através da primeira globalização. E noto agora que lá está de novo a crónica a tomar uma direcção não pretendida. Terei mesmo de regressar futuramente a este tema, já que não se pode deixar de notar que a saída dos europeus desta ponta ocidental para o mar no século de quinhentos se tenha precisamente seguido a «apertos» sucessivos da Europa pelo lado oriental. Primeiro pela expansão mongol entre 1000 e 1250 e depois pelos otomanos que conquistaram Constantinopla em 1453, no que habitualmente se considera o início do fim da Idade Média fixado em 1492, quando foi descoberta a América e os muçulmanos foram finalmente expulsos da Península Ibérica.

O que é facto é que na crónica anterior referi apenas de forma lateral os nomes de Abraham Zacuto e de Pedro Nunes como cientistas muito importantes para o sucesso da saga dos “descobrimentos portugueses”. De facto, a sua importância histórica vai muito para além disso. Zacuto terá nascido em Salamanca, tendo-se refugiado em Portugal depois da promulgação do decreto dos reis católicos obrigando os judeus à conversão ao cristianismo ou ao exílio. Esteve ao serviço de D. João II mas a sua estada entre nós durou apenas seis anos já que o rei D. Manuel, para obter autorização para casar com D. Isabel, filha dos reis católicos, promulgou também a conversão ou expulsão dos judeus de Portugal, tendo Zacuto seguido de novo o caminho do exílio. Assim fugiu à tragédia que se seguiu em Lisboa ao casamento de D. Manuel que nos deveria ainda hoje encher de vergonha. Já Pedro Nunes, embora tivesse ascendência judaica, nunca foi importunado, talvez devido ao seu enorme prestígio, já que em 1544 lhe foi entregue a cátedra de matemática da Universidade de Coimbra. Contudo, destino diferente tiveram os seus netos que foram presos, torturados e condenados por judaísmo pela Inquisição dirigida pelo Inquisidor-mor cardeal infante D. Henrique. 


A mesma sorte de Pedro Nunes acabou por ter o mais ilustre médico do seu tempo, Garcia de Orta, seu conterrâneo e conhecido, que embora sendo cristão-novo, logrou morrer na Índia sem ser directamente incomodado pelo tribunal do Santo Ofício local. Já, logo depois da sua morte, a sua irmã Catarina foi condenada por judaísmo e queimada viva em 1569 num auto-de-fé. A sanha contra os judeus era de tal ordem que até os ossos de Garcia da Orta viriam a ser desenterrados e queimados em 1580.

O significado profundo do tratamento dado aos judeus naqueles tempos não foi apenas religioso, indo muito além do sofrimento indescritível de cada um dos homens, mulheres e crianças de ascendência judaica perseguidos pela sua ascendência. O ódio então manifestado teve a sua primeira e mais sangrenta manifestação pública no banho de sangue do massacre que durou três dias em Lisboa em Abril de 1506, mas foi-se mantendo nos 285 anos que durou a Inquisição portuguesa.

A perseguição e expulsão dos judeus teve consequências que perduram, já que assim saíram do país elites de áreas as mais diversas desde a economia e finança até à ciência, com consequências óbvias num atraso atávico de que padecemos. Para além de uma aversão social algo subterrânea que podemos, sem dificuldade, ainda nos dias de hoje ver aparecer à tona de água e não apenas contra judeus.

De vez em quando, estas crónicas suscitam críticas sempre amigas ou mesmo comentários pertinentes. Assim, esta crónica de hoje é dedicada ao meu querido Amigo e Camarada Carlos Alberto Maia Teixeira que sistematicamente tem a caridade de me orientar nas águas tantas vezes tormentosas da escrita e da opinião tornada pública.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 Março 2023

Imagens retiradas da internet

segunda-feira, 20 de março de 2023

ESTAMOS NO ALTO MAR, SEM BÚSSULA

 


Foi em Lisboa no séc. XV que um astrónomo judeu chamado Abraão Zacuto, cuja história todos devíamos conhecer para percebermos como a Humanidade pode ser má e mal-agradecida, introduziu significativos melhoramentos num antigo instrumento de navegação, o astrolábio, bem como nas tábuas astronómicas. Ao ensinar os navegantes portugueses a utilizar esses instrumentos no tempo de D. João II que o trouxe para Portugal e, portanto, a orientarem-se no alto-mar, teve um papel crucial na capacidade para organizar as viagens ao Brasil e à Índia.

Os navegadores da época adquiriram assim a possibilidade de conhecer com alguma precisão a latitude do local em que se encontravam, ao medirem a altura dos astros relativamente ao horizonte. Claro que faltava a outra coordenada geográfica, a longitude, que só alguns séculos mais tarde foi possível calcular com a invenção dos cronómetros, o que só aumenta a admiração pela capacidade e coragem dos marinheiros portugueses de então. Não se esqueça ainda o matemático Pedro Nunes que no sec. XVI desenvolveu o conceito da loxodrómica para descrever o trajecto marítimo entre dois pontos sobre o meridiano que por eles passa, que só Leibniz haveria de resolver matematicamente com os logaritmos.

Foi um tempo em que os portugueses ditaram cartas ao mundo, não só como os melhores marinheiros, mas também, ou sobretudo, como capazes de organizar e gerir eficientemente projectos da mais elevada complexidade.

Algo que, na actualidade, parece termos perdido em absoluto, tal a incapacidade que revelamos para sair de uma «austera, apagada e vil tristeza» detectada por Camões logo após os Descobrimentos. E já lá estava a desgraçada austeridade a que parece estarmos condenados pelas elites que nos caem em sorte.

É assim que assistimos a um Governo que, num dia atira para o lixo as PPP da saúde que o próprio Tribunal de Contas classificava como económicas para o país enquanto o regulador da saúde as classificava como das mais qualificadas do SNS, para pouco depois abrir a porta ao seu regresso. Ou renacionaliza a companhia de aviação para, pouco depois, preparar a sua reprivatização mas sem que, entretanto, lá tenha metido mais de 3 mil milhões dos impostos dos portugueses, no meio de vergonhosas situações de mentiras e o mais completo desnorte e incompetência. Tal como vemos um presidente da República que, após criticar fortemente o governo de Esquerda, parece sentir necessidade se atirar de imediato violentamente à Direita, sendo uma pura perda de tempo tentar encontrar alguma justiça ou injustiça em qualquer uma das situações.


Apesar de dispor de uma maioria absoluta na Assembleia da República ou, quem sabe, por via dela, verifica-se que o Governo pratica de governação à vista, sem que se detecte um rumo em nenhuma das áreas governativas, seja na Educação, na Saúde, na Justiça, na Segurança Social, na Defesa ou mesmo na Segurança dos cidadãos. Parece mesmo que só existe o tal Plano de Recuperação e de Resiliência, dinheiros europeus que parecem destinados a compensar parcialmente o défice de investimentos públicos dos últimos sete anos em todas aquelas áreas, fruto da elevação das cativações a instrumento fundamental de governação. Ah, não esquecendo a tal «necessidade de contas certas» redescobertas depois do enterro da geringonça, tentando fazer convencer os portugueses de que se trata de um «desígnio nacional», quando não passa de uma simples mas necessária regra contabilística obrigatória para qualquer governo decente e responsável.

Governa-se em alto mar sem se fazer ideia de onde se quer chegar pelo que, na realidade, não é precisa qualquer bússola nem astrolábio ou moderno GPS que nos oriente. São os ventos e a ondulação que nos transportam, felizes por pertencermos a uma União Europeia rica, qual boia cujo dinheiro nos mantém à tona da água, mas apenas isso.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Março de 2023

Imagens retiradas da internet

segunda-feira, 13 de março de 2023

DOCES ENGANOS

 


Eu não sei se a recente alteração à legislação que regula as Ordens Profissionais foi ou não resultado de imposição da União Europeia para aprovação do famoso  PRR (Plano de Recuperação e Resiliência). Na realidade, as afirmações de António Costa de que o bom andamento do PRR estaria dependente da aprovação desta legislação parecem indicar que tal será verdade, recordando-se que já o Memorando de Entendimento da Troika previa alterações ao regime das Ordens, que nunca foram desenvolvidas. As Ordens manifestaram-se genericamente contra as alterações aprovadas na Assembleia da República e ficaram satisfeitas quando o Presidente da República enviou o projecto do Decreto para o Tribunal Constitucional para fiscalização preventiva da sua constitucionalidade. O Tribunal Constitucional veio a decidir pela constitucionalidade das alterações aprovadas, terminando aí a discussão sobre o assunto.

Mas algo está errado em tudo isto e não é caso novo na governação do país, mas não só. Na realidade, o Tribunal Constitucional não se pronunciou, neste como noutros casos, sobre a bondade da nova legislação que lhe é submetida para parecer. O TC apenas se pronuncia sobre se a legislação é ou não conforme à Constituição do país, isto é, sobre se viola ou não o estabelecido na nossa lei fundamental. Ao contrário do que parece ser o pensamento dominante. Se os partidos ou outras associações entendem que determinada nova legislação é prejudicial ao bom funcionamento do país, devem manter aí a discussão e defender as suas ideias e opiniões junto da opinião pública. Até porque, depois de novas eleições, poderão também alterar a legislação de acordo com o que entendem ser o interesse nacional. Descansar sobre as decisões do tribunal Constitucional, confiando no TC para travar leis que são políticas na sua essência e abandonando aí as opções políticas é que não, embora essa ideia vá fazendo o seu caminho na opinião pública, resultado de uma tentativa de judicialização da política a todos os títulos errada.

Estamos a assistir a uma vaga de greves em áreas diversas mas essenciais para o bom funcionamento do país, desde a Educação à Saúde, passando pelos transportes públicos. Com quase cinquenta anos de prática democrática é natural que os cidadãos reajam de forma automática ao exercício do direito à greve, aceitando-as com naturalidade. Sucede que o que se está a passar é tudo menos normal. O número de greves e o seu prolongamento no tempo têm consequências muito para além da relação entre os trabalhadores e as suas entidades patronais. Até porque, nas greves a que assistimos, o patrão é o Estado, seja directamente, seja através de gestão pública, como é o caso da CP. Não é admissível que estas greves dos professores se prolonguem durante tantos meses, porque no fim quem sofre é a formação das crianças e adolescentes que já vão no terceiro ano sucessivo de aprendizagem deficitária, atendendo ao Covid. 


Se os professores têm razão nas suas reivindicações, e parece ser pacífico que têm, o Governo tem de encontrar soluções para ultrapassar a situação com a maior urgência. Tal como as greves de médicos e outros profissionais de saúde são tão gravosas para a população que o Governo não pode deixar andar e deve resolver as questões em aberto com a maior rapidez. A justificação da falta de dinheiro por este Governo  não colhe, sobretudo depois do Novo Banco e da TAP. Contudo, em qualquer destes casos se assiste a uma espécie de calma olímpica da parte do Governo, mas também da sociedade em geral, com consequências futuras que estão à vista. No que respeita aos jovens, aqueles que frequentam a escola públicas sofrem com as greves enquanto os do ensino particular avançam sem problemas, numa injustiça flagrante. Já com o que se passa na Saúde a consequência imediata é a transferência dos doentes com alguma capacidade económica do SNS para a os hospitais privados.

Estes são apenas alguns dos muitos doces enganos em que infelizmente a maioria de nós vai embarcando regularmente, as mais das vezes proporcionados pelos mais diversos responsáveis, políticos mas também empresariais ou outros. É dever de quem tem acesso à comunicação social lutar por desmontar falácias, mostrando a realidade, doa a quem doer, de forma independente. Só mais um exemplo do doce encantamento de «verdades estabelecidas» que se revelam contrárias à realidade. Neste caso, quem desmontou o doce engano foi o próprio Presidente da República que, na entrevista na RTP da passada semana, referiu que «o país está cada vez mais velho e mais pobre». Isto quando os responsáveis governamentais têm insistido na ladainha de que «estamos a aproximar-nos dos países mais ricos».

Nos seus doces enganos, Portugal mais parece a Inês assim cantada por Camões:

 “Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito”

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 de Março de 2023

Imagens recolhidas na internet