segunda-feira, 15 de julho de 2024

Haja paz na Justiça


Maior ironia do destino não seria possível. Num momento em que tanto se discute o estado da Justiça em Portugal, em particular a actuação do Ministério Público e da sua dirigente máxima, morreu Joana Marques Vidal, a Procuradora-Geral da República que foi substituída no cargo em 2018 pela actual PGR, Lucília Gago.

Agora que tanta gente louva Joana Marques Vidal, vale a pena recordar o contexto da sua substituição como PGR. Foi sob a sua direcção que avançaram processos com grande impacto na nossa vida colectiva, mesmo para além da política. Recordo a Operação Marquês que envolveu o ex-primeiro ministro José Sócrates, os Inquéritos que envolveram o BES e mesmo a Operação Lex que envolveu juízes desembargadores. Curiosamente, os dois primeiros ainda não viram decisão judicial final, nem estarão perto disso. Foi notória a firmeza de Joana Marques Vidal na luta contra a corrupção, em particular aquela que atravessa a alta finança e o mundo partidário. Tal como foi notória a vontade de a substituir como PGR no final do seu mandato, quer pelo Governo de António Costa, quer pelo próprio Presidente da República e lá tinham as suas razões que não tinham nada a ver com competência, rigor e determinação da actuação de Joana Marques Vidal enquanto PGR.

Já Lucília Gago, a personalidade escolhida por António Costa e aprovada por Marcelo Rebelo de Sousa para PGR que termina agora o seu mandato, sai no meio de críticas vindas de todo o lado. Essas críticas assumem essencialmente dois aspectos: umas sobre a forma, quando se referem a problemas de comunicação e são as mais frequentes; já outras são sobre assuntos de substância, surgindo à cabeça o célebre comunicado que levou à demissão de António Costa da liderança do seu governo e posterior realização de eleições com tudo o que se seguiu. Não serão menos graves as críticas sobre a actuação, não já da PGR em si, mas do Ministério Público de que é dirigente máxima durante os últimos seis anos. Refiro-me, por exemplo, à realização de escutas a um político (ministro, por sinal) durante quatro anos ou à divulgação sistemática de segredos de justiça ou realização de operações de busca acompanhadas de câmaras de televisão. E as explicações dadas por Lucília Gago na recente entrevista à RTP em nada contribuíram para o esclarecimento público sobre estas questões, antes pelo contrário, apenas agravaram as dúvidas mesmo entre quem tivesse alguma compreensão pelo exercício do cargo pela PGR. Isto é, Lucília Gago sai do cargo e não deixa saudades, mas preocupação sobre a necessidade de introduzir alterações profundas no funcionamento do Ministério Público por parte da personalidade que a vier a substituir em Outubro próximo.

O ambiente em volta da Justiça está envenenado, vendo-se dezenas de cidadãos, boa parte deles políticos de relevância retirados, mas também jornalistas, comentadores e personalidades de diversas áreas sociais e económicas de diferentes opções ideológicas, a assinarem um documento a exigir reforma da Justiça. Em resposta, e parecendo que o dito documento foi assumido como sendo um ataque ao Ministério Público, largas centenas de procuradores do Ministério Público fizeram publicar um manifesto contrariando o seu teor.


Todos tivemos ainda a oportunidade de assistir a uma azeda troca de palavras (ainda que em diferido) entre a PGR e a nova Ministra da Justiça. Diria que pior é impossível. E os cidadãos que vivem fora do mundo da Justiça, mas que acompanham o que acontece com preocupação como o autor destas linhas, não podem deixar de ficar perplexos. Até porque sabemos que o Ministério Público pode propor a realização de escutas, mas estas não poderão acontecer sem a autorização fundamentada de um Juiz da Magistratura Judicial. Tal como sabemos que a regra geral é que os processos não tenham segredo de Justiça e para que o contrário se verifique é igualmente necessária a aprovação de um Juiz. Assim como os atrasos de processos conhecidos e de grande alarme social se verificam porque os arguidos ou acusados usam e abusam de expedientes legais para fazer passar o tempo e, eventualmente, serem ultrapassados os prazos de prescrição. E fazem-no porque podem, porque têm posses e porque a legislação processual penal o autoriza.

Isto é, em vez de ataques entre uns e outros, o que é necessário, é mesmo urgente, é que os dois maiores partidos se entendam e resolvam isto de uma vez por todas, através do que podem e devem fazer: alterar a legislação dos procedimentos penais na Assembleia da República no sentido de maior eficácia e rapidez, no respeito total pelos direitos dos cidadãos. Melhor forma de comemorar os 50 anos do 25 de Abril não haverá, certamente.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Julho de 2024 

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terça-feira, 9 de julho de 2024

Inteligência artificial e o Mestre SUN

“O General que compreende perfeitamente as vantagens que advêm das variações das táticas sabe como comandar as suas tropas”


Historicamente a guerra, a par do seu extenso rol de horror e tragédias, tem servido para notáveis e rápidos avanços tecnológicos que, nos tempos de paz que se lhes seguem, muito contribuem para facilitar a vida das pessoas comuns. Basta pensar na pólvora e mais recentemente, nos computadores e no GPS. De facto, a necessidade aguça o engenho e as urgências de vitória militar puxam por capacidades adormecidas. Na Segunda Guerra Mundial os Aliados viram-se na necessidade de deslindar a famosa máquina de códigos alemã, daí tendo nascido o Colossus, primeiro computador a que rapidamente se sucederam outros de utilização militar. Não foram necessárias muitas décadas até que praticamente toda a actividade humana se baseia hoje nos computadores como este em que escrevo. O sistema GPS (Sistema de Posicionamento Global) já era utilizado militarmente no início dos anos 80 do século passado, mas foi preciso que os americanos abatessem por engano um avião comercial de passageiros iraniano para que o Presidente Reagan ordenasse a abertura livre e gratuita do sistema ao mundo civil. Aliás, a própria internet pela qual vou enviar esta crónica por mail para publicação se deve à investigação militar, já que a primeira rede foi criada em 1969 pelo Departamento de Defesa dos EUA: a Arpanet.

Atualmente fala-se muito em IA (Inteligência Artificial) sendo abordadas muitas áreas em que o seu desenvolvimento facilitará imenso a actividade humana como, por exemplo, na medicina. Há também quem receie o papel da IA na eliminação de postos de trabalho, replicando aqueles que no início da Revolução Industrial se opuseram à utilização das máquinas, chegando a invadir fábricas destruindo os equipamentos de fiação mecanizados. Estou convicto de que, ao contrário de quem assim pensa, estamos no dealbar de uma nova era em que muito será facilitada a vida e a organização social, em particular na área económica.

Mas se há área em que a IA irá muito rapidamente mudar tudo aquilo que se viu até hoje, é a guerra. Desde o início da guerra na Ucrânia em 2022 que se tem visto a forma como têm evoluído as tácticas militares existindo, ao lado da guerra convencional baseada em artilharia e combates quase corpo a corpo, toda uma utilização de novas tecnologias. Os drones são uma demonstração da evolução extremamente rápida das capacidades dos instrumentos militares. De início eram orientados por GPS mas a capacidade inimiga de empastelar os sinais de orientação, bem como a utilização de ondas de rádio capazes de criar alvos fictícios para proteger os verdadeiros levaram à entrada da IA nos drones. Eles passaram a não depender de sinais exteriores, sendo capazes de se orientar no terreno por eles próprios e de distinguir os alvos falsos dos verdadeiros, através da capacidade de realizar milhões de cálculos por segundo.


Este é um exemplo simples da forma como a IA está já a mudar a forma de fazer a guerra. O ser humano é absolutamente incapaz, num cenário de guerra, de analisar todos os factores que levam a uma decisão correcta face a uma situação em permanente e imprevisível evolução, o que é facilmente executado pela IA. O problema moral coloca-se numa situação limite em que deverá ser colocada uma decisão humana no meio antes da ordem final. O que, na realidade, atribui automaticamente uma vantagem ao inimigo que não tenha essa preocupação moral e pode resultar na derrota.

Como consequência imediata, se os países ricos e poderosos sempre tiveram vantagens em situação de guerra, a IA vai dilatar essa vantagem até ao infinito. Porque, antigamente e nos nossos dias, mesmo os poderosos não podiam vencer sem perdas humanas significativas no terreno, o que não irá acontecer no futuro. A IA permite obter vantagens decisivas, quer na defesa, quer no ataque, a quem dominar a tecnologia e estiver sempre na vanguarda do desenvolvimento da mesma.

Neste momento os países que estão nessa situação são a China e os EUA, estando a Europa completamente fora da corrida. Se até há pouco a China parecia estar ao lado ou mesmo ligeiramente adiantada nesta corrida tecnológica do desenvolvimento da IA, neste momento os EUA parece tomarem já larga vantagem. Sinal disso mesmo é a valorização gigantesca da Nvídia, maior produtor mundial de chips capazes de IA.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Julho de 2024

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segunda-feira, 1 de julho de 2024

PUTIN: DIZ-ME COM QUEM ANDAS…


 O título da crónica foi-me sugerido pela recente visita de Putin à Coreia do Norte. Na realidade, em vez de Putin podia ter escrito Kim Jong-un com o resto do título semelhante porque, com a sua acção dos últimos vinte anos, Putin já atingiu o patamar que era quase exclusivo do líder norte-coreano na cena internacional.

Kim Jong-un é o exemplo acabado da contradição em política. Lidera com pulso de ferro um dos poucos regimes comunistas do mundo, mas na realidade representa a terceira geração de uma dinastia do tipo monárquico. De facto, sucedeu na chefia do partido e do Estado a seu pai Kim Jong-il falecido em 2011 o qual, por sua vez, havia sucedido a seu pai Kim Il-sung em 1992.

O regime da Coreia da Norte existe desde a guerra da Coreia entre 1950 e 1953 que se iniciou precisamente com a invasão do Sul pela Coreia do Norte comunista liderada por Kim Il-sung. A guerra terminou sem qualquer tratado de paz através da constituição de uma zona desmilitarizada sobre o famoso Paralelo 38. Enquanto a Coreia do Sul se desenvolveu e é hoje uma economia rica e hiper-sofisticada, a Coreia do Norte continuou a ser uma economia paupérrima totalmente dependente do Estado e do Partido, onde frequentemente se morre à fome, dado que a preocupação fundamental assumida pelo Estado consiste numas Forças Armadas gigantescas dotadas, elas sim, de equipamento bastante moderno, incluindo capacidade nuclear.

Foi este país que Putin foi agora visitar, acabando por com ele estabelecer um acordo de parceria que é uma verdadeira aliança. O líder comunista norte-coreano é conhecido pelos seus gostos burgueses de que os carros topo-de-gama que é visto frequentemente a conduzir são apenas um dos muitos exemplos possíveis de apontar. É também conhecido pelas execuções de “inimigos”, inclusivamente familiares, levadas a cabo com requintes de selvajaria e extrema barbaridade. Mas Kim Jong-un tem, é claro, atitudes muito apreciadas pelo líder russo que justificam esta viagem e todo o afecto político de que se revestiu. É que Kim Jung-un é praticamente o único líder político mundial em funções que assume o apoio, a cem por cento, à guerra de agressão que Putin está a levar a cabo na Ucrânia, para a qual não se vê um fim. E Putin necessita de toda a ajuda possível, principalmente em fornecimento de armamento, o que Jong-un lhe presta de bom grado, já que material de guerra é coisa que não lhe falta e a sua troca por energia, por exemplo, é algo que lhe convém sobremaneira, sendo o seu país a miséria que é.

Tudo para que Putin continue a sua guerra ao Ocidente e ao nosso estilo de vida liberal e respeitador das regras internacionais. Na realidade, os únicos argumentos de Putin para invadir a Ucrânia que poderiam ter alguma credibilidade caso tivessem alguma adesão à realidade são ter sido provocado pela NATO e pela UE. Claro que são uma falsidade absoluta já que, antes pelo contrário, é a Federação Russa que sob a liderança de Putin tem uma atitude verdadeiramente imperialista que põe em perigo os seus países vizinhos e toda uma Europa que se desmilitarizou confiante em anos de paz e prosperidade.

Por isso mesmo faz todo o sentido relembrar o que se passou há pouco mais de oitenta anos, como se fez há pouco nas celebrações do desembarque aliado na Normandia em 6 de Junho de 1944 em que tantos homens deram a vida para que a Liberdade fosse uma realidade numa Europa fustigada pela opressão e pela tirania do nazi-fascismo.


A Europa sente de novo os ventos que trazem o cheiro da pólvora. A aliança dita “de defesa” entre dois estados com líderes agressivos não vem trazer pacificação. Com o seu velho aliado americano obrigado a escolher entre um psicopata e um velho senil e com os extremismos internos a substituir as velhas forças centristas, a Europa está num momento muito difícil que exige reformas profundas e difíceis.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Julho de 2024

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quinta-feira, 27 de junho de 2024

COIMBRA: QUESTÕES DE ACESSIBILIDADE


 Como consequência das obras de instalação da rede de Metrobus os conimbricenses estão a sentir, desde há mais de dois anos, sérios problemas na sua mobilidade dentro da Cidade. E vão continuar a sentir, já que o atraso das obras, em particular da chamada Linha do Hospital consignada em 22 de Julho de 2022 com um prazo de execução de 18 meses, é considerável não sendo pessimista esperar que não estejam terminados durante o ano de 2025. As razões serão compreensíveis, mas todos nós, cidadãos comuns, podemos constatar que o plano de trabalhos não estará a ser cumprido, detectando-se numerosas frentes de obras que ficam por terminar, enquanto outras têm início. Um aspecto ficou evidente: nos dois meses que antecederam as comemorações do 25 de Abril largas dezenas de trabalhadores afadigaram-se junto ao Estádio para completar os acessos à futura estação, para logo depois as obras confinantes entrarem num regime completamente diverso, estando ainda hoje por concluir.

O leitor não se iluda, estas obras são importantíssimas para a Cidade e abrangem uma pesada renovação de infraestruturas que necessitavam de ser substituídas, nomeadamente as redes de águas e de saneamento das vias que vão suportar o novo sistema de mobilidade. O problema aqui está nos atrasos que se verificam genericamente por toda a Cidade.

Quando o novo sistema estiver em funcionamento a mobilidade urbana ficará extraordinariamente beneficiada, em particular nas proximidades da rede do Metrobus, diminuindo ainda a procura de estacionamento em zonas hoje completamente caóticas no que respeita a esse aspecto e estou a lembrar-me da zona dos HUC, o que em muito irá melhorar a qualidade de vida urbana. Não estou tão convencido quanto ao benefício dos moradores dos concelhos de Miranda do Corvo e da Lousã, relativamente à antiga infraestrutura ferroviária, mas não vale a pena chover no molhado perante tudo o que se passou, entretanto, e que nos envergonha a todos. E perante a situação existente desde o fecho da antiga Linha da Lousã, todos acabam por ficar a ganhar.


Mas se esta intervenção viária, cuja ideia inicial data de 1991 está finalmente em curso, outras há de que Coimbra está dependente para as quais todos os conimbricenses deverão estar alertados.

Uma delas tem a ver com chamada linha de alta velocidade ferroviária. Ouvimos falar de abertura de concursos para alguns troços, mesmo na nossa região e devemos estar preocupados com a falta de informação sobre o assunto no que respeita a Coimbra. De facto, está prevista a construção de um “by-pass” que servirá Coimbra com alguns comboios de alta velocidade na chamada Estação Velha renovada. O sistema contempla quatro linhas, isto é a duplicação das existentes entre dois locais da futura linha de alta velocidade em que toca a actual Linha do Norte algures perto de Soure a Sul e da Pampilhosa a Norte. Mas o que não sabemos é algo de crucial: está garantida junto da IP a simultaneidade da construção da linha de alta velocidade e do “by-pass” de Coimbra? Quantos comboios de alta velocidade irão passar diariamente por Coimbra? Há alguma garantia concreta quanto a estes aspectos essenciais para a nossa Cidade? A transparência em grandes obras estruturantes é absolutamente essencial.

A localização central de Coimbra é uma vantagem natural garantida desde logo pela geografia. Mas a verdade é que essa vantagem não se traduz nas ligações rodoviárias com o interior beirão, ao contrário do que se passa com muitas outras cidades nacionais, o que se traduz em desvantagem competitiva. Basta lembrar como a A13 ficou “pendurada” em Ceira, não se ouvindo falar na sua conclusão até ao IP3. Por falar em IP3, é absolutamente lamentável que essa estrada perigosíssima que liga Coimbra a Viseu, toda ela um ponto negro, ainda não tenha sido substituída por uma auto-estrada segura. Tal como por terminar está o IC6 até à Covilhã, falando-se agora de elaborar o projecto da travessia do concelho de Oliveira do Hospital como se de grande coisa se tratasse. Se o ridículo matasse, muita gente já cá não estaria.

Com todos estes exemplos não pretendo senão chamar a atenção para assuntos que deveriam andar permanentemente em discussão no espaço público, para além dos gabinetes ministeriais e autárquicos, porque estrategicamente fundamentais para Coimbra e o seu futuro.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  24 de Junho de 2024

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segunda-feira, 17 de junho de 2024

COIMBRA A NÃO GOSTAR DE SI MESMA

 


Na semana passada passaram 300 anos sobre o nascimento, em Coimbra, de Carlos Seixas. É quase certo que muitos conimbricenses que não tenham um gosto ou interesse pessoal pela área de actividade em que se distinguiu Carlos Seixas não tenham dado pela efeméride. E, no entanto, Carlos Seixas é considerado um dos maiores compositores portugueses de música erudita, dentro do género Barroco, aquele que se praticava durante a época em que viveu, isto é, o sec. XVIII. Além de um compositor excepcional que criou um estilo próprio, foi também um executante virtuoso no órgão e no cravo, razão por que muito novo foi para Lisboa onde foi organista da Sé Patriarcal e da Capela Real. Mas nem por isso se deu conta na nossa Cidade de qualquer actividade cultural refente a Carlos Seixas e à sua obra. Vá lá que, por enquanto, há uma rua com alguma dimensão que leva o seu nome, mas provavelmente a maioria dos seus moradores não será capaz de dar qualquer informação sobre quem foi Carlos Seixas. E nem sequer é da sua responsabilidade que tal suceda. Se as instituições educativas e as elites e responsáveis culturais não se preocupam com a divulgação e promoção do que de excelente tem a nossa História, quem o fará?

Será uma característica da nossa Cidade: toda a gente refere genericamente gostar muito da Cidade, considerando-a mesmo superior a muitas outras que trata até com um certo desdém. Mas costuma dizer-se que o diabo está sempre nos detalhes e é aí no concreto da realidade que a coisa fica diferente. Esquecemo-nos frequentemente de cuidar de nós e do que é nosso, que tantas vezes não fica a dever nada ao que trazemos de fora, que consideramos superior só porque vem de Lisboa ou do Porto, curvando-nos muitas vezes a outros interesses que tantas vezes nos são desfavoráveis. E demasiadas vezes atacamos mesmo quem por cá tenta fazer o melhor, apenas por motivos políticos partidários ou mesmo invejas pessoais.

No passado dia 10 de Junho comemorou-se, como é habitual, o chamado “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”.

Como este ano passam 500 anos sobre o nascimento de Luís de Camões e temos comemorações da efeméride durante dois anos, que não podemos fazer a coisa por menos, pelos vistos temos mesmo necessidade de prolongar comemorações. E ainda bem já que, enquanto celebramos datas do passado, nos esquecemos do resto o mesmo é dizer da realidade presente.


E as comemorações dos 500 anos de Camões tiveram início em Coimbra com cerimónias na Universidade, incluindo sessão solene com presença do Presidente da República e concerto musical nos Gerais, com direito a transmissões televisivas em directo. Só que, mais uma vez, o espectáculo musical, programado e realizado em Coimbra, não contemplou a Orquestra Clássica do Centro, que é da nossa Cidade e da qual tem todas as razões para se orgulhar, pela sua excelência. Por isso mesmo a devia apresentar sempre que possível, mas, antes pelo contrário, de novo se contrataram outros músicos para a performance. Temos mesmo complexos estranhos que nos impedem de ver o melhor que temos.

De novo, e lamentavelmente, Coimbra a não gostar de si própria. Quando é que mudaremos de destino?

Publicado no Diário de Coimbra em 17 de Junho de 2024

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terça-feira, 11 de junho de 2024

ANTES VERMELHOS QUE MORTOS

 


Esta era a frase gritada por estudantes universitários em Berlim ocidental no início dos anos oitenta do século passado quando, perante a ameaça dos mísseis SS20 apontados ao ocidente colocados por Moscovo na Europa de Leste, os americanos responderam com a colocação de mísseis Pershing na Europa ocidental virados a leste. O contexto já pertence à História, dado que poucos anos depois a URSS implodiria e com ela o mundo comunista com o seu modelo social e político. Era um grito de certo modo pacifista que contemporizava com quem desde sempre tentava forçar a sua vontade, no caso o império russo, na altura dito soviético. Por cá também havia quem defendesse o mesmo, com um Conselho para a Paz e Cooperação sempre na vanguarda, na realidade mais um organismo teleguiado a partir de Moscovo.

Há pouco menos de cem anos Hitler atirou as condições do Tratado de Versalhes para o caixote do lixo e rearmou a Alemanha iniciando uma série de invasões de países vizinhos perante a complacência dos líderes dos restantes países. Mesmo depois dessas ditas anexações os líderes dos países democráticos de tudo tentaram para acalmar os ímpetos agressivos do regime nazi desde tentativas de pedir a intermediação de Mussolini até à conferência de Munique de Setembro de1938 visando o “apaziguamento” de Hitler. Em Agosto de 1939 até mesmo Estaline estabeleceu um pacto de não agressão entre a Alemanha Nazi e a URSS o conhecido Pacto Molotov-Ribbentrop. A invasão da Polónia aconteceu logo em 1 de Setembro de 1939, iniciando-se aí a hecatombe trágica da Segunda Guerra Mundial, com a declaração de guerra à Alemanha pela Grã Bretanha e pela França a ter lugar dois dias depois. Acabava aí a discussão sobre as intenções de Hitler e sobre se seria mais vantajoso para o mundo ceder às suas pretensões evitando uma guerra generalizada.

Em 22 de Fevereiro de 2022 a Rússia invadiu a Ucrânia numa guerra que continua mais de dois anos depois. Esta acção militar seguiu-se à conquista militar de duas províncias ucranianas e da península da Crimeia que ocorreram em Março de 2014. Nessa altura o Ocidente balbuciou uns protestos, mas Putin levou a sua avante sem problemas de maior, utilizando pretextos em tudo semelhantes aos de Hitler nas suas acções imediatamente anteriores à invasão da Polónia. Nesta nova “operação militar” como Putin começou por lhe chamar, o exército russo dirigiu-se directamente à capital ucraniana mas, de alguma forma, o exército ucraniano conseguiu travar essa gigantesca coluna russa obrigando-a a dar meia volta e regressar ao exterior das fronteiras ucranianas. Desde então Putin iniciou uma guerra generalizada de conquista de território ucraniano, estilhaçando todas as regras internacionais relativas à guerra e nomeadamente de protecção de populações civis. Um exemplo: a táctica mais recente consiste em bombardear instalações civis, provocando a deslocação para o local de bombeiros, médicos e enfermeiros, para meia-hora depois bombardear o mesmo local atingindo directamente as forças de socorro.

Entretanto, aparecem aqui e ali, propostas de negociação de termos de paz imediata. Claro que, enquanto decorre uma guerra de invasão a um país soberano, estas propostas equivalem a um reconhecimento de derrota por parte da Ucrânia. Como acontecia com Hitler, tentar apaziguar Putin desta maneira não teria outro efeito senão dar-lhe força para continuar sua estratégia imperial de conquista de países que ele considera que nunca deveriam ter saído da esfera russa. Putin tem de ser parado na Ucrânia e, ao contrário do que proclamam de novo os falsos “pacifistas”, só a derrota russa na Ucrânia poderá impedir uma nova guerra europeia generalizada com todas as consequências que traria.


 Putin assume que rejeita a ordem internacional baseada em princípios liberais e acordos internacionais essencialmente saída da II Guerra Mundial por outra que todos percebemos ser exactamente o contrário, orientada por ditaduras. Os próximos tempos vão ser perigosos porque, para se defender, a Ucrânia tem absoluta necessidade de responder aos ataques russos de onde eles são lançados, isto é, de território russo. O Ocidente tem de se manter firme no apoio à Ucrânia incluindo desmascarar os falsos “pacifistas” que por aí andam, mesmo entre nós. Porque todos estamos em perigo, na mira das armas de Putin, não duvidemos disso.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Junho de 2024

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segunda-feira, 3 de junho de 2024

POPULISMOS

 


Há poucos dias a campanha eleitoral em curso para o Parlamento Europeu produziu mais uma das muitas afirmações populistas em que tem sido pródiga. Alguns dos partidos concorrentes, já nem sei quais, mas da esquerda e da direita, propuseram um ordenado mínimo igual para todos os países da União. Não sei mesmo se os proponentes se apercebem do que estão a propor, acredito que não, estão apenas a competir para conquistar o primeiro lugar num patético campeonato de populismo. Na realidade, atingir um tal desiderato só seria possível com um extremo aprofundamento da integração económica e financeira na direção do federalismo europeu, algo que estará certamente nos antípodas da vontade dos seus proponentes. Acresce que, se em Portugal o ordenado mínimo anda por pouco mais de 800 euros, países europeus há em que o seu valor é superior a 2.400 euros. Como nenhum país iria aceitar diminuir o valor do seu ordenado mínimo, para ser comum em toda a União esse seria também o valor em Portugal, país em que o ordenado médio anda pelos 1.310 euros. Fácil se torna verificar a tontice da proposta, mas a verdade é que foi feita.

O populismo não é um fenómeno dos dias de hoje, mas parece ter ganhado asas, talvez com a actual facilidade de comunicação proporcionada pelos novos meios cibernéticos.

O populismo é partilhado pela esquerda e pela direita, havendo sinais da sua prática por todos os partidos, mas constitui a própria base do discurso em partidos localizados nos extremos do leque político. As consequências da governação populista são bem conhecidas. Desde meados do sec. XX que as américas central e do sul se tornaram em exemplos dos resultados do populismo levado à governação, alternando mesmo entre líderes populistas de esquerda e direita. Os resultados são facilmente visíveis, sendo paradigmático o exemplo da Argentina, um dos cinco países mais ricos do mundo há cem anos, mas que vegeta hoje numa penúria triste e desconsolada como resultado de políticas populistas, no caso chamadas justicialistas.


Há cem anos, os outros partidos dos extremos eram os partidos “revolucionários” que adoptavam uma filosofia abrangente que tudo explicava e que proporcionaria uma solução global e “justa” para os problemas da sociedade, hoje praticamente desaparecidos. Os de direita incluindo nazi e fascistas, foram derrotados numa trágica guerra mundial. Os de esquerda subsistiram à sombra do império russo/soviético e os que resistiram ao desaparecimento da URSS tiveram que se “democratizar” integrando-se naquilo a que chamavam “democracia burguesa” e sujeitando-se às suas regras. É o caso do “nosso” partido Comunista que se viu obrigado a abandonar a conquista do poder pela via revolucionária, sendo hoje um partido perfeitamente integrado no sistema democrático.

Mas o populismo continua bem vivo, como vemos nesta campanha eleitoral. Como o termo “fascista” ficou desgastado ao longo dos anos pela sua utilização abusiva pela esquerda sobre tudo o que fosse de direita, o partido actualmente mais à direita, o Chega, é normalmente classificado como sendo da “direita populista”. E o facto é que este partido, que conquistou 50 lugares na Assembleia da República, é inteiramente populista, não se lhe conhecendo qualquer ideologia política nem respostas concretas para os problemas nacionais. Embora não devamos esquecer que, para pagar o acréscimo de despesa pública que propõe, não se tenha lembrado de outra solução senão que taxar as grandes empresas, incluindo a banca, pelos seus “lucros excessivos”. Curiosamente, ou talvez não, exactamente a solução preferida pelo Bloco de Esquerda para os mesmos problemas. Como se costuma dizer, os extremos tocam-se e não é raro que o façam! Até no uso mais descarado de um populismo sem limites. O que me parece deveria ser um critério básico de rejeição de qualquer partido, pela falta de respeito que mostra pelos eleitores.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Junho de 2024

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