segunda-feira, 24 de abril de 2023

SOBRE UMA ESTÁTUA DE D. AFONSO HENRIQUES


 As obras artísticas figurativas aliam dois aspectos que podem transportar uma elevada tensão entre si: o representativo e o simbólico. Quando se trata de homenagear figuras com uma elevada carga Histórica, essa tensão é ainda maior podendo, caso seja mal resolvida, ter efeitos contrários à boa vontade original.

Vem esta introdução a propósito da passagem temporária por Coimbra de uma escultura de D. Afonso Henriques a caminho do seu destino final, em Zamora, Espanha e da vontade anunciada pela Câmara Municipal de vir a dotar a Cidade de uma escultura do Rei.

O nosso primeiro Rei é a figura central de uma narrativa muito bem construída pela cidade de Guimarães, onde existe uma estátua emblemática de D. Afonso Henriques, sob o lema «aqui nasceu Portugal», que abrange o castelo da Cidade e o cenográfico Paço Ducal, do sec. XV, portanto muito posterior à nacionalidade. Em torno destes elementos, Guimarães construiu, e muito bem, a sua marca. Se perguntarmos a qualquer português sobre Guimarães, com uma muito elevada probabilidade responderá que ali nasceu Portugal.

No entanto, foi em Coimbra que D. Afonso I estabeleceu a sua Corte, aqui morreu e aqui está sepultado. Há mesmo quem diga que o seu nascimento terá ocorrido em Coimbra ou Viseu, sendo já rara a defesa de que tenha nascido em Guimarães. Em Coimbra existe desde a Nacionalidade o Paço Real, que desde o início do sec. XVII se chama Paço das Escolas. O seu túmulo encontra-se no Mosteiro de Sta. Cruz que foi fundado precisamente por ele em 1131 e que é panteão nacional por essa razão. O túmulo é belíssimo e sobre ele pode-se admirar a estátua jacente do Rei fundador da autoria de Nicolau de Chanterenne, a encomenda de D. Manuel I, no sec. XVI.

Coimbra tem, assim, todos os motivos para chamar a si a fundação da nacionalidade podendo, com toda a facilidade, caso o queira, construir uma narrativa sólida e muito abrangente sobre o assunto. Contudo, a cidade nem sequer tem uma estátua do nosso primeiro Rei. A passagem desta escultura da autoria do escultor Dinis Ribeiro e do arquiteto Abel Cardoso, que pretende retratar o rei na sua juventude, foi efémera (muitos dizem que ainda bem) mas veio, apesar das polémicas, levantar a questão da estátua do Rei primeiro em Coimbra, o que em si é positivo.

Uma escultura que tem a possibilidade de ter um efeito iconográfico de peso para Coimbra levanta duas questões que se interpenetram: o tipo de escultura e a sua localização. Por exemplo, uma escultura apeada como a de Guimarães poderá ficar bem em certos locais e mal noutros, tal como acontece com uma escultura a cavalo. Também não convém que entre em conflito com outros locais que já são ícones de Coimbra como acontece, por exemplo, com a proximidade do Mosteiro de Sta Clara, associado à Rainha Santa Isabel onde se escolheu colocar a escultura que vai para Zamora. Isto é, a encomenda da estátua deverá ser antecedida pela escolha do local concreto onde será implantada, decisão que por si mesma já não é fácil. Uma estátua equestre ficaria bem, por exemplo, no meio da Praça Velha, já o mesmo não acontecendo com a Praça Oito de Maio ou o Largo da Sé Velha, outro monumento relacionado directamente com o nosso Rei fundador. Qualquer um destes locais receberia bem uma estátua apeada bem dimensionada, desde que que implantada adequadamente, tal como aconteceria com o jardim/escadaria em frente da Escola José Falcão precisamente na Av. Afonso Henriques, aqui com a vantagem de descentrar as visitas turísticas a Coimbra.


Particularizar a estátua a determinados pormenores, como idade muito jovem ou avançada, como acontece com esta que agora passou por Coimbra não parece que seja grande ideia, devendo-se optar por uma imagem do Rei consentânea com a que foi sendo construída ao longo dos séculos e por ele próprio pela sua acção decidida e forte de construção de um reino independente. De qualquer forma, depois de decidido o local de implantação, será adequado e até prudente que a Cidade realize um concurso de ideias que permita a autores diversos apresentar as suas propostas, com classificação por um júri (com participação de autarcas e de munícipes convidados, mas também de especialistas em História de Portugal e de Arte, incluindo professores da Universidade). Temos de ter consciência de que um monumento destes pode ser importante para a Cidade mas deverá, para que venha a fazer parte da sua marca identitária, estar em harmonia com o significado histórico do Homem representado, quer seja de forma mais clássica ou mais moderna, não interessa, desde que com qualidade artística claramente reconhecida.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 Abril 2023

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domingo, 23 de abril de 2023

O REGRESSO DA POLÍTICA

 


A maioria absoluta alcançada nas eleições realizadas há pouco mais de um ano pelo PS dirigido por António Costa parecia ter retirado a política da atenção mediática, substituída por questões que à superfície parecem mais técnicas que outra coisa. A política pura e dura retirara-se para as catacumbas dos centros de poder totalmente ocupados e geridos pelo partido do Governo, permanecendo bem escondida dos olhares dos portugueses. Essa ocupação vai tão longe que abrange mesmo as entidades reguladoras da economia que, por definição, deveriam ser independentes mas para onde foram sendo dirigidos ex-governantes, desde ministros a secretários de Estado. Cá fora, para discussão pública, foram ficando assuntos diversos e irrelevantes para o futuro da generalidade dos portugueses, de que a eutanásia será o exemplo mais óbvio.

Tudo isto ia correndo, até que….. foi «destapada» a TAP na comissão de inquérito da Assembleia da República, dando razão ao velho ditado que nos ensina que «zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades».

A actuação da gestão da TAP e, principalmente, dos membros do Governo directamente responsáveis pela companhia está para além do compreensível pelo cidadão comum, ainda por cima tratando-se de uma empresa renacionalizada pelo Governo de António Costa depois de privatizada como mandava o memorando de entendimento assinado por Sócrates com a Troica e onde foram metidos 3,2 mil milhões de impostos dos portugueses. Esta situação, só por si, aconselharia qualquer Governo, a começar pelo seu primeiro responsável, a ter especiais cuidados com tudo o que dissesse respeito à empresa, ao contrário da perfeita balbúrdia que todos vamos descobrindo.

E a explicação habitual de que se tratava de assuntos técnicos caiu por terra, devido às evidentes interferências governamentais na própria gestão diária da TAP. O assunto tornou-se, assim, eminentemente político, com consequências que ainda não são visíveis neste momento, mas que se vão adivinhando.

Começou mesmo a falar-se abertamente de dissolução da Assembleia da República, com o próprio presidente da República a referir-se à hipótese como sendo uma prerrogativa constitucional de que não abdica. Muitas vozes, incluindo a do presidente, vão contudo adiantando não ser este um momento adequado para que tal aconteça, por razões conjunturais ligadas à guerra na Ucrânia, à inflação e sobretudo, por não se ver alternativa eleitoral viável ao partido Socialista. Quanto às razões conjunturais, são apenas areia atirada aos olhos dos portugueses, não fazendo qualquer sentido e nem vale a pena comentá-las. Já o argumento da falta de alternativa exige mais cuidado na sua abordagem. De facto, se a Democracia tem uma vantagem, é precisamente a de haver sempre alternativa: quem escolhe é o povo que, por definição, sabe o que faz. Na minha opinião, embora haja uma crise governativa sistémica, ela não é novidade nenhuma e é mesmo anterior à actual maioria absoluta pelo que, neste momento, não há ainda uma razão concreta que, por si, justifique a dissolução da Assembleia.

Claro que uma hipótese de ultrapassar a crise que tem vindo a criar seria o próprio partido Socialista assumir as suas responsabilidades de partido com maioria absoluta e substituir todo o governo, com o primeiro-Ministro à cabeça. Foi, por exemplo, o que fez recentemente o partido Conservador no Reino Unido, correndo com o primeiro-ministro incapaz de dar a volta à situação não uma, mas duas vezes. Todos sabemos, no entanto, que os nossos deputados não têm independência suficiente para tomar tal atitude, sejam de que partido forem, porque na realidade não são escolhidos pelos portugueses mas sim nomeados pelos directórios partidários para preencherem as listas apresentadas a eleições. Pelo que esta solução não será certamente seguida pelo PS, embora haja sempre uma primeira vez para estas coisas.


E, aqui, é evidente a responsabilidade grave que o PSD tem neste momento. A meu ver não pode estar à espera que o poder lhe caia nas mãos, mais cedo ou mais tarde. E precisa de sacudir rapidamente, e de vez, o colete de forças que o PS habilmente lhe colocou com o Chega. Para tal, tem uma saída viável a curto prazo, à semelhança de Sá Carneiro em 1979, mas atendendo aos tempos actuais. Deverá organizar um congresso para construção de uma alternativa com todo o centro-direita e independentes, incluindo Iniciativa Liberal e o CDS. Sim, neste último caso poderia mesmo tentar anular a asneira das últimas eleições, garantindo-lhe lugares em listas comuns nas próximas eleições. Eleições que, apesar de tudo, poderão ocorrer bem mais cedo do que se espera, pelo que a urgência é óbvia.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  17 de Abril 2023

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segunda-feira, 10 de abril de 2023

A BELEZA DOS CABELOS BRANCOS

 


Num dia destes chamou-me a atenção, no ginásio que frequento, uma jovem nos seus trintas, com boa parte da cabeça coberta por cabelos brancos que contrastavam fortemente com o resto do cabelo ainda bem preto. Na realidade, apenas a juventude estabelecia diferença relativamente à maioria das mulheres mais velhas frequentadoras do ginásio onde, tal como sucede no resto da sociedade, muitas mulheres escolhem hoje não pintar o cabelo.

Trata-se de uma alteração social recente que, eventualmente, surge como uma das numerosas mudanças trazidas pelo confinamento provocado pela pandemia do COVID-19. De facto, a ida aos cabeleireiros tornou-se muito mais rara, aliás com consequências muito sérias ao nível dessa actividade económica.

Mas essa não será a principal razão por que muitas mulheres deixaram de pintar o cabelo, quer frequentem ou não o cabeleireiro com a mesma regularidade de antes. Há, notoriamente, uma escolha deliberada por assumir um dos sinais típicos da passagem dos anos por todos nós, homens e mulheres.

Que fique claro que não estou, nem de perto nem de longe, a fazer alguma crítica às pessoas que escolhem pintar os seus cabelos quando começam a aparecer as primeiras cãs. Também estão no pleno direito de fazer as suas escolhas e terão as suas razões para as assumir. Além disso, se as mudanças sociais das últimas dezenas de anos trouxeram alguma vantagem, é precisamente a de aceitar as escolhas pessoais aos mais diversos níveis.

Mas assumir os cabelos brancos traz, em si, uma capacidade de afirmação social de relevo, para além da beleza própria dos cabelos prateados e do seu significado. Lembro-me de artistas célebres que sempre assumiram os seus cabelos brancos quando eles surgiram, não diminuindo em nada o seu encanto pessoal, muito antes pelo contrário. Por exemplo, para referir algumas das minhas artistas preferidas, a célebre cantora folk americana Emmylou Harris surgiu, a certa altura, com uma nova beleza que nada fica a dever à que tinha enquanto jovem. Ou a excelente atriz britânica Helen Mirren que surge tão estonteante nos dias actuais como quando actuava na Royal Shakespeare Company nos já longínquos anos 70.

E, se a minha própria filha já apresenta orgulhosamente os seus cabelos brancos ao começar os seus quarentas, a que propósito o seu pai iria esconder os seus quase setenta, disfarçando os anos já vividos? Na realidade os cabelos brancos podem aparecer numa idade avançada ou mesmo nunca, mas também podem surgir em pessoas bem mais novas. Poderá tal facto ser fruto de dificuldades da vida que fazem com que os trabalhos de cada ano sejam equivalentes a vários anos descansados. E assumir isso mesmo também só faz ressaltar uma personalidade forte e uma excepcional capacidade de resistir às pressões e dificuldades, o que em si mesmo já é notável.

Acontece ainda que esta evidente mudança significa ainda uma alteração comportamental social da maior relevância. Ao afirmarem-se com os seus cabelos prateados as pessoas mostram que se consideram como elementos activos e importantes na sociedade, longe de se andarem a esconder seja de que maneira for. Não apenas pela experiência adquirida ao longo das suas vidas, o que já por si é um valor inestimável, mas também por serem quem são e não um peso morto. Na realidade, mostram que podem ter um papel social de relevo e com elevadas vantagens para toda uma sociedade que passa por momentos de evidentes dificuldades de organização e mesmo definição de objectivos concretos.

E um cabelo prateado bem cuidado usado com orgulho é também sexy, já que pode, por si mesmo atrair o outro, podendo vir a somar-se a outros eventuais atributos físicos pessoais indo, contudo mais além pela capacidade evidente dos aspectos psicológicos que se somam assim aos outros. 

Texto publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Abril de 2023

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segunda-feira, 3 de abril de 2023

DAS EMPRESAS EM PORTUGAL


 É talvez uma das piores heranças da geringonça que permitiu a António Costa governar o país depois de ter perdido as eleições em 2015. Nos últimos anos tornou-se praticamente consensual na sociedade portuguesa um sentimento de oposição sistemática às empresas, principalmente às grandes e, com toda a naturalidade de uma evidência instalada, contra aquelas que apresentam grandes lucros ao fim do ano. Se isto não é novidade por parte dos apoiantes do PCP e do BE que rejeitam em absoluto o liberalismo e o sistema económico que lhe está subjacente que é o capitalismo, já é um pouco surpreendente que posições muito semelhantes surjam de quem não se assume como comunista ou mesmo socialista da nova vaga.

Parece que o sucesso das empresas é equivalente ao assalto automático ao bolso dos consumidores, mais parecendo que os portugueses se tornaram neste séc. XXI seguidores de Proudhon, para quem “a propriedade é o roubo”.

E, ao longo dos anos, foi-se instalando uma ideia generalizada de que é positivo que a nossa economia seja constituída em mais de 98% por micro, pequenas e médias empresas, que estarão mais perto dos consumidores e dos seus interesses imediatos, ao contrário das grandes que são uns monstros exploradores que, por vezes, até instalam as suas sedes em outros países. Nada de mais errado.

Recentemente, foi tornado público um estudo conjunto da Associação Business Roundtable e da Nova Information Management School denominado “Análise prospetiva do impacto do crescimento das grandes empresas em Portugal” que procedeu a uma avaliação do impacto das grandes empresas na economia nacional.

Surpresa das surpresas: 1% das empresas do país são responsáveis por gerar 57% do valor Acrescentado Bruto. Os números do estudo mostram que, no período entre 2016 e 2019 as grandes empresas nacionais foram, em média, 3,7 vezes mais produtivas que as médias empresas e geraram um VAB dez vezes superior ao dessas mesmas empresas.

Mas as surpresas não se ficam por aqui. O prof. Bruno Damásio da Nova IMS e investigador responsável pelo estudo fez notar “o forte impacto que as organizações de grande dimensão têm, tanto a nível económico, como dos trabalhadores e do próprio Estado”. De tal forma que, “para além de 57% do VAB, essas grandes empresas garantem por si 62% das exportações, 48% dos gastos com pessoal, 64% das contribuições para a segurança social e 71% dos impostos entregues ao Estado. Significa isto que 1% das empresas contribuem com muito mais do que as restantes 99% do tecido empresarial, constituído por pequenas e médias empresas”, como vincou ainda Bruno Damásio.

Para além disso, as grandes empresas pagaram, em média, salários de 30.900 euros, o que significa mais 30% do que as médias e mais 70% do que as pequenas empresas.


É fácil percebermos que algo está profundamente errado nas políticas que temos seguido. Mas este estudo vem provar, à evidência, um dos principais problemas da nossa organização económica. A produtividade e o crescimento dos rendimentos, quer dos investidores, quer dos trabalhadores, estão em linha com o crescimento das próprias empresas e não na continuidade de uma economia baseada essencialmente em muitas micro, pequenas e médias empresas que apenas subsistem num mercado pobre e pouco sofisticado.

Como resultado, o que vemos é um Estado que, paulatinamente, se vai transfigurando de “social” em “assistencialista” à medida que vamos empobrecendo relativamente aos parceiros europeus. Isto apesar dos fundos que nos vão enviando para isto e mais aquilo e ainda recuperação (de quê?) e de resiliência (será que sabem ao menos o que é?), mas nunca para que as empresas cresçam, sejam competitivas, tenham lucros a sério e possam pagar ordenados semelhantes aos dos outros europeus.

E o que mais perturba no meio disto tudo é que pareça que ninguém com responsabilidades políticas esteja a dar conta disto e andemos para aí todos entretidos a catar quem fica com o IVA do galão ou do croissant do pequeno-almoço ou se os imigrantes nos vão destruir a nossa sagrada vivência. Ou ainda se presidente da República e primeiro-Ministro andam de candeias às avessas ou vão juntos à bola. Já agora, a Roménia (a Roménia, lembram-se do Ceausescu????) que as previsões apontavam que nos apanharia em riqueza em 2024 já o fez em 2022. Os outros vêm já a seguir, se continuarmos com esta conversa da treta de achar que “as empresas são o roubo”, quando o Estado é que não consegue cumprir as suas obrigações mínimas na saúde, na educação, na justiça, na defesa, etc. etc.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Abril de 2023

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segunda-feira, 27 de março de 2023

ERROS HISTÓRICOS

 


Muitos amigos me perguntam frequentemente onde vou buscar inspiração para escrever uma crónica semanal durante tantos anos sem falhar, e já lá vão mais de 17. Visto de fora pode, de facto, parecer uma dificuldade. Na realidade, vista de dentro, a situação é muito diversa. Porque as crónicas acabam por ter um fio condutor que às tantas diz mais sobre o autor das linhas do que sobre cada um dos assuntos abordados em já quase um milhar de semanas. E, por outro lado, as crónicas como que ganham vida própria de modo que aquilo que se pretendia comunicar chega mesmo a perder espaço perante considerações laterais ou adjacentes que sempre surgem e levantam outras matérias interessantes como quem puxa um fio e atrás dele vem sempre outro agarrado. Por vezes torna-se mesmo necessário fixar o rumo para que os “empurrões” laterais não nos levem a um porto diferente daquele onde se pretendia chegar.

Toda esta introdução vem a propósito da crónica da semana passada que, se o estimado leitor teve a paciência de a ler, deve recordar que tratava da constatação pessoal de que o país me parece navegar sem rumo, por não ter objectivos claros a atingir. E fiz uma comparação com tempos em que os portugueses mostraram ser capazes de estar à frente do seu tempo, quer em gestão de projectos extremamente complexos, como ainda em estar na vanguarda do conhecimento científico. Tudo para «dar novos mundos ao mundo» e transformar a vida no nosso planeta para sempre através da primeira globalização. E noto agora que lá está de novo a crónica a tomar uma direcção não pretendida. Terei mesmo de regressar futuramente a este tema, já que não se pode deixar de notar que a saída dos europeus desta ponta ocidental para o mar no século de quinhentos se tenha precisamente seguido a «apertos» sucessivos da Europa pelo lado oriental. Primeiro pela expansão mongol entre 1000 e 1250 e depois pelos otomanos que conquistaram Constantinopla em 1453, no que habitualmente se considera o início do fim da Idade Média fixado em 1492, quando foi descoberta a América e os muçulmanos foram finalmente expulsos da Península Ibérica.

O que é facto é que na crónica anterior referi apenas de forma lateral os nomes de Abraham Zacuto e de Pedro Nunes como cientistas muito importantes para o sucesso da saga dos “descobrimentos portugueses”. De facto, a sua importância histórica vai muito para além disso. Zacuto terá nascido em Salamanca, tendo-se refugiado em Portugal depois da promulgação do decreto dos reis católicos obrigando os judeus à conversão ao cristianismo ou ao exílio. Esteve ao serviço de D. João II mas a sua estada entre nós durou apenas seis anos já que o rei D. Manuel, para obter autorização para casar com D. Isabel, filha dos reis católicos, promulgou também a conversão ou expulsão dos judeus de Portugal, tendo Zacuto seguido de novo o caminho do exílio. Assim fugiu à tragédia que se seguiu em Lisboa ao casamento de D. Manuel que nos deveria ainda hoje encher de vergonha. Já Pedro Nunes, embora tivesse ascendência judaica, nunca foi importunado, talvez devido ao seu enorme prestígio, já que em 1544 lhe foi entregue a cátedra de matemática da Universidade de Coimbra. Contudo, destino diferente tiveram os seus netos que foram presos, torturados e condenados por judaísmo pela Inquisição dirigida pelo Inquisidor-mor cardeal infante D. Henrique. 


A mesma sorte de Pedro Nunes acabou por ter o mais ilustre médico do seu tempo, Garcia de Orta, seu conterrâneo e conhecido, que embora sendo cristão-novo, logrou morrer na Índia sem ser directamente incomodado pelo tribunal do Santo Ofício local. Já, logo depois da sua morte, a sua irmã Catarina foi condenada por judaísmo e queimada viva em 1569 num auto-de-fé. A sanha contra os judeus era de tal ordem que até os ossos de Garcia da Orta viriam a ser desenterrados e queimados em 1580.

O significado profundo do tratamento dado aos judeus naqueles tempos não foi apenas religioso, indo muito além do sofrimento indescritível de cada um dos homens, mulheres e crianças de ascendência judaica perseguidos pela sua ascendência. O ódio então manifestado teve a sua primeira e mais sangrenta manifestação pública no banho de sangue do massacre que durou três dias em Lisboa em Abril de 1506, mas foi-se mantendo nos 285 anos que durou a Inquisição portuguesa.

A perseguição e expulsão dos judeus teve consequências que perduram, já que assim saíram do país elites de áreas as mais diversas desde a economia e finança até à ciência, com consequências óbvias num atraso atávico de que padecemos. Para além de uma aversão social algo subterrânea que podemos, sem dificuldade, ainda nos dias de hoje ver aparecer à tona de água e não apenas contra judeus.

De vez em quando, estas crónicas suscitam críticas sempre amigas ou mesmo comentários pertinentes. Assim, esta crónica de hoje é dedicada ao meu querido Amigo e Camarada Carlos Alberto Maia Teixeira que sistematicamente tem a caridade de me orientar nas águas tantas vezes tormentosas da escrita e da opinião tornada pública.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 Março 2023

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segunda-feira, 20 de março de 2023

ESTAMOS NO ALTO MAR, SEM BÚSSULA

 


Foi em Lisboa no séc. XV que um astrónomo judeu chamado Abraão Zacuto, cuja história todos devíamos conhecer para percebermos como a Humanidade pode ser má e mal-agradecida, introduziu significativos melhoramentos num antigo instrumento de navegação, o astrolábio, bem como nas tábuas astronómicas. Ao ensinar os navegantes portugueses a utilizar esses instrumentos no tempo de D. João II que o trouxe para Portugal e, portanto, a orientarem-se no alto-mar, teve um papel crucial na capacidade para organizar as viagens ao Brasil e à Índia.

Os navegadores da época adquiriram assim a possibilidade de conhecer com alguma precisão a latitude do local em que se encontravam, ao medirem a altura dos astros relativamente ao horizonte. Claro que faltava a outra coordenada geográfica, a longitude, que só alguns séculos mais tarde foi possível calcular com a invenção dos cronómetros, o que só aumenta a admiração pela capacidade e coragem dos marinheiros portugueses de então. Não se esqueça ainda o matemático Pedro Nunes que no sec. XVI desenvolveu o conceito da loxodrómica para descrever o trajecto marítimo entre dois pontos sobre o meridiano que por eles passa, que só Leibniz haveria de resolver matematicamente com os logaritmos.

Foi um tempo em que os portugueses ditaram cartas ao mundo, não só como os melhores marinheiros, mas também, ou sobretudo, como capazes de organizar e gerir eficientemente projectos da mais elevada complexidade.

Algo que, na actualidade, parece termos perdido em absoluto, tal a incapacidade que revelamos para sair de uma «austera, apagada e vil tristeza» detectada por Camões logo após os Descobrimentos. E já lá estava a desgraçada austeridade a que parece estarmos condenados pelas elites que nos caem em sorte.

É assim que assistimos a um Governo que, num dia atira para o lixo as PPP da saúde que o próprio Tribunal de Contas classificava como económicas para o país enquanto o regulador da saúde as classificava como das mais qualificadas do SNS, para pouco depois abrir a porta ao seu regresso. Ou renacionaliza a companhia de aviação para, pouco depois, preparar a sua reprivatização mas sem que, entretanto, lá tenha metido mais de 3 mil milhões dos impostos dos portugueses, no meio de vergonhosas situações de mentiras e o mais completo desnorte e incompetência. Tal como vemos um presidente da República que, após criticar fortemente o governo de Esquerda, parece sentir necessidade se atirar de imediato violentamente à Direita, sendo uma pura perda de tempo tentar encontrar alguma justiça ou injustiça em qualquer uma das situações.


Apesar de dispor de uma maioria absoluta na Assembleia da República ou, quem sabe, por via dela, verifica-se que o Governo pratica de governação à vista, sem que se detecte um rumo em nenhuma das áreas governativas, seja na Educação, na Saúde, na Justiça, na Segurança Social, na Defesa ou mesmo na Segurança dos cidadãos. Parece mesmo que só existe o tal Plano de Recuperação e de Resiliência, dinheiros europeus que parecem destinados a compensar parcialmente o défice de investimentos públicos dos últimos sete anos em todas aquelas áreas, fruto da elevação das cativações a instrumento fundamental de governação. Ah, não esquecendo a tal «necessidade de contas certas» redescobertas depois do enterro da geringonça, tentando fazer convencer os portugueses de que se trata de um «desígnio nacional», quando não passa de uma simples mas necessária regra contabilística obrigatória para qualquer governo decente e responsável.

Governa-se em alto mar sem se fazer ideia de onde se quer chegar pelo que, na realidade, não é precisa qualquer bússola nem astrolábio ou moderno GPS que nos oriente. São os ventos e a ondulação que nos transportam, felizes por pertencermos a uma União Europeia rica, qual boia cujo dinheiro nos mantém à tona da água, mas apenas isso.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Março de 2023

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segunda-feira, 13 de março de 2023

DOCES ENGANOS

 


Eu não sei se a recente alteração à legislação que regula as Ordens Profissionais foi ou não resultado de imposição da União Europeia para aprovação do famoso  PRR (Plano de Recuperação e Resiliência). Na realidade, as afirmações de António Costa de que o bom andamento do PRR estaria dependente da aprovação desta legislação parecem indicar que tal será verdade, recordando-se que já o Memorando de Entendimento da Troika previa alterações ao regime das Ordens, que nunca foram desenvolvidas. As Ordens manifestaram-se genericamente contra as alterações aprovadas na Assembleia da República e ficaram satisfeitas quando o Presidente da República enviou o projecto do Decreto para o Tribunal Constitucional para fiscalização preventiva da sua constitucionalidade. O Tribunal Constitucional veio a decidir pela constitucionalidade das alterações aprovadas, terminando aí a discussão sobre o assunto.

Mas algo está errado em tudo isto e não é caso novo na governação do país, mas não só. Na realidade, o Tribunal Constitucional não se pronunciou, neste como noutros casos, sobre a bondade da nova legislação que lhe é submetida para parecer. O TC apenas se pronuncia sobre se a legislação é ou não conforme à Constituição do país, isto é, sobre se viola ou não o estabelecido na nossa lei fundamental. Ao contrário do que parece ser o pensamento dominante. Se os partidos ou outras associações entendem que determinada nova legislação é prejudicial ao bom funcionamento do país, devem manter aí a discussão e defender as suas ideias e opiniões junto da opinião pública. Até porque, depois de novas eleições, poderão também alterar a legislação de acordo com o que entendem ser o interesse nacional. Descansar sobre as decisões do tribunal Constitucional, confiando no TC para travar leis que são políticas na sua essência e abandonando aí as opções políticas é que não, embora essa ideia vá fazendo o seu caminho na opinião pública, resultado de uma tentativa de judicialização da política a todos os títulos errada.

Estamos a assistir a uma vaga de greves em áreas diversas mas essenciais para o bom funcionamento do país, desde a Educação à Saúde, passando pelos transportes públicos. Com quase cinquenta anos de prática democrática é natural que os cidadãos reajam de forma automática ao exercício do direito à greve, aceitando-as com naturalidade. Sucede que o que se está a passar é tudo menos normal. O número de greves e o seu prolongamento no tempo têm consequências muito para além da relação entre os trabalhadores e as suas entidades patronais. Até porque, nas greves a que assistimos, o patrão é o Estado, seja directamente, seja através de gestão pública, como é o caso da CP. Não é admissível que estas greves dos professores se prolonguem durante tantos meses, porque no fim quem sofre é a formação das crianças e adolescentes que já vão no terceiro ano sucessivo de aprendizagem deficitária, atendendo ao Covid. 


Se os professores têm razão nas suas reivindicações, e parece ser pacífico que têm, o Governo tem de encontrar soluções para ultrapassar a situação com a maior urgência. Tal como as greves de médicos e outros profissionais de saúde são tão gravosas para a população que o Governo não pode deixar andar e deve resolver as questões em aberto com a maior rapidez. A justificação da falta de dinheiro por este Governo  não colhe, sobretudo depois do Novo Banco e da TAP. Contudo, em qualquer destes casos se assiste a uma espécie de calma olímpica da parte do Governo, mas também da sociedade em geral, com consequências futuras que estão à vista. No que respeita aos jovens, aqueles que frequentam a escola públicas sofrem com as greves enquanto os do ensino particular avançam sem problemas, numa injustiça flagrante. Já com o que se passa na Saúde a consequência imediata é a transferência dos doentes com alguma capacidade económica do SNS para a os hospitais privados.

Estes são apenas alguns dos muitos doces enganos em que infelizmente a maioria de nós vai embarcando regularmente, as mais das vezes proporcionados pelos mais diversos responsáveis, políticos mas também empresariais ou outros. É dever de quem tem acesso à comunicação social lutar por desmontar falácias, mostrando a realidade, doa a quem doer, de forma independente. Só mais um exemplo do doce encantamento de «verdades estabelecidas» que se revelam contrárias à realidade. Neste caso, quem desmontou o doce engano foi o próprio Presidente da República que, na entrevista na RTP da passada semana, referiu que «o país está cada vez mais velho e mais pobre». Isto quando os responsáveis governamentais têm insistido na ladainha de que «estamos a aproximar-nos dos países mais ricos».

Nos seus doces enganos, Portugal mais parece a Inês assim cantada por Camões:

 “Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito”

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 de Março de 2023

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segunda-feira, 6 de março de 2023

BEATRIZ ÂNGELO

 


Carolina Beatriz Ângelo foi a primeira mulher a votar em Portugal. Tal aconteceu nas Eleições para a Assembleia Constituinte, em 28 de Maio de 1911. Mas para que tal acontecesse, Beatriz Ângelo teve que provar, em tribunal, que era «chefe de família» uma vez que era viúva e tinha uma profissão que lhe permitia sustentar a sua filha. Foi, contudo, uma vez sem exemplo, já que o novo regime republicano fez logo a seguir sair legislação que apenas dava aos homens o estatuto de «chefe de família» retirando às mulheres o direito de votar que continuaria, aliás, durante todo o regime do «Estado Novo». Só com o 25 de Abril de 1974 as mulheres portuguesas viriam a adquirir, em pleno, o direito de votar em igualdade com os homens.

O sucedido foi ainda mais significativo para Beatriz Ângelo dadas as suas profundas convicções republicanas, defendendo ainda a igualdade entre homens e mulheres como sufragista militante. Beatriz Ângelo ficou de tal forma chocada que se chegou a referir aos republicanos com desprezo, exceptuando Afonso Costa A atitude do novo poder republicano, no que toca ao voto feminino, dever-se-ia à vontade de restringir o direito de voto ao máximo, de forma a deixar de fora grandes franjas do povo que poderiam provocar o regresso à Monarquia..

Beatriz Ângelo foi ainda a primeira mulher portuguesa a licenciar-se em Medicina e a exercer a sua profissão por inteiro, sendo também a primeira mulher a operar no Hospital de S. José, tendo-se especializado em Ginecologia. Tinha nascido perto da Guarda em 16 de Abril de 1868 numa família politicamente liberal, tendo estudado no Liceu da Guarda e concluído a sua licenciatura na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa em 1902. Faleceu muito nova de síncope cardíaca, aos 33 anos, em 3 de Outubro de 1911, poucos meses depois das eleições em que participou.

A atribuição do seu nome a um grande Hospital em Loures foi, portanto, um acto de grande simbolismo e da maior justiça por se tratar da primeira médica portuguesa e de uma mulher de fortíssimas convicções que fazia valer mesmo perante injustiças e erros cometidos por quem lhe era próximo politicamente. Uma atitude que ainda hoje, ou sobretudo hoje, devia ser seguida pelos defensores dos diversos partidos que tantas vezes praticam um proselitismo insuportável.


É por tudo isto que o que se tem sabido sobre o que se tem passado no Hospital Beatriz Ângelo se torna ainda mais revoltante. Após todas as notícias sobre enormes atrasos sistemáticos em consultas e cirurgias, foi há poucos dias notícia a demissão de 11médicos chefes da urgência geral que se sucedeu ao fecho da urgência pediátrica à noite e aos fins de semana. Sabendo-se que os hospitais de D. Estefânia e de S. José já estão a trabalhar nos limites, imaginam-se as consequências de arcar com a sobrecarga originada pelo fecho das urgências do Beatriz Ângelo, que é a segunda maior urgência pediátrica de Lisboa e Vale do Tejo. As imagens e os relatos dos familiares dos doentes das urgências do Hospital Beatriz Ângelo são aterradoras, denunciando um estado perfeitamente caótico inaceitável num país civilizado que se orgulha do seu SNS.

A situação torna-se ainda mais incompreensível quando os relatos de utentes mostram a diferença do serviço prestado pelo hospital na actualidade e até há dois anos, quando funcionava em regime de Parceria Publico-Privada. Percebe-se porquê. Quando era uma PPP o hospital não se podia permitir a chegar a uma situação destas porque o Estado nunca o permitiria. Tendo passado a ser de gestão pública caíram-lhe em cima todas as deficiências de funcionamento, e principalmente de gestão, que nos últimos anos têm caracterizado o SNS. Os governos de António Costa acabaram com as PPP na saúde que funcionavam bem e saiam mais baratas ao erário público. Agora temos o que se vê e a comparação torna-se inevitável. Aliás, é o próprio autarca de Loures insuspeito de «neo-liberalismo» e que até é do partido do Governo, a reconhecer a realidade e a descida radical de qualidade dos serviços prestados às populações. O Governo queixa-se da falta de pediatras, mas a realidade é que os hospitais privados não se queixam do mesmo. Alguma razão haverá para que isto suceda e, para ser inteiramente verdadeiro, toda a gente vê qual é: a falta de condições de trabalho oferecidas pelo SNS aos profissionais da saúde promoveu um crescimento significativo da oferta privada, ajudado pela ADSE dos funcionários públicos e pelo crescimento dos seguros privados de saúde.

Catarina Beatriz Ângelo, pelo seu exemplo de vida, merecia mais respeito pelo legado que deixou, para além dos cidadãos servidos pelo Hospital que leva o seu nome não deverem ser considerados de segunda categoria por complexos ideológicos de governantes.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Março de 2023

Fotos retiradas da internet

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Putin, derrotado

 


A primeira e principal razão apresentada por Putin apara invadir a Ucrânia, faz agora um ano, foi «a desnazificação» da Ucrânia. Em paralelo, argumentou com uma» zona de segurança» da Federação Russa perante uma expansão do inimigo NATO.

O resultado dessa invasão, que continua, salda-se hoje em muitos milhões de refugiados ucranianos, milhares de civis ucranianos mortos, incluindo mulheres e crianças e destruição inacreditável de cidades inteiras com bombardeamentos de artilharia e mísseis lançados a partir de território russo e do mar Negro. Isto para além de largas dezenas de milhares de soldados mortos de ambos os lados, sejam atacantes russos, sejam defensores ucranianos.

Nas primeiras semanas da invasão o alvo principal dos russos foi a própria capital da Ucrânia, Kiev. Ficou evidente, para todo o mundo, que o objectivo imediato de Putin era conquistar a capital e instalar um regime fantoche por si comandado, como já acontece em vários países da antiga União Soviética.

Só que aconteceu o impensável. Os ucranianos fizeram das tripas coração, agarraram-se à sua terra e conseguiram repelir o ataque à sua capital, apesar dos proclamados 60 km de extensão da coluna invasora russa. Desde então, os russos praticam uma técnica de guerra implacável de destruição de cidades, quer sejam edifícios de habitação, ou sejam escolas ou hospitais, numa demonstração de total desprezo pela vida de civis desarmados sem defesa e das leis e convénios internacionais. A actuação criminosa e bárbara dos soldados russos vai ainda mais além, cometendo sistemáticos crimes de guerra contra a população civil que, mais tarde ou mais cedo, terão de vir a ser objecto de julgamento em tribunais internacionais. Tempo virá em que o próprio Putin poderá ter que se sentar no banco dos réus.


Mas, entretanto, muita desgraça está e ainda vai acontecer, fazendo-se votos de que a patente demência de Putin não o leve a fazer subir a guerra ao patamar seguinte que levaria ao holocausto nuclear e à destruição de grande parte da Humanidade.

Acima de tudo há que perceber os processos mentais de Putin e desmontar a sua máquina de propaganda que, até entre nós consegue encontrar defensores. Para o comprovar basta ver que os deputados comunistas, usando embora da sua indiscutível liberdade, não apoiaram as intervenções de apoio à Ucrânia invadida e repúdio da Rússia invasora na Assembleia da República no passado dia 24 de Fevereiro.

Parece-me evidente que a teoria da «desnazificação da Ucrânia» de Putin radica na necessidade de obter o apoio da população russa que, como seria normal, deveria aceitar com dificuldade a invasão de um país vizinho, ainda por cima com tantos laços históricos. Ao usar o termo «nazi» Putin sabe bem que está a apelar a um sentimento profundo dos russos que colectivamente têm ainda uma memória trágica do sucedido na II Grande Guerra. De facto, embora a Alemanha nazi e a URSS comunista tivessem assinado um tratado de não agressão em Agosto de 1939, imediatamente antes da invasão alemã da Polónia, a Alemanha levou a cabo a Operação Barbarrossa a partir de Junho de 1941 invadindo a União Soviética. Invasão que só terminaria em Janeiro de 1942, tendo morrido mais de 26 milhões de soviéticos. Para além disso, os alemães perpetraram todo o tipo de crimes de guerra, numa barbárie impossível de descrever. O povo russo tem assim uma memória do nazismo que não desaparecerá durante muitos anos e a simples menção de «nazi» tem uma imediata reacção de rejeição.

Putin sabe bem disso e utiliza o argumento da forma mais despudorada, torcendo a situação da Ucrânia, que ainda por cima também sofreu na carne a invasão nazi, tem um regime democrático ao contrário do que hoje acontece na Rússia e o seu presidente Zelensky é de origem judaica.

No entender de muitos, Putin percebe que já perdeu a guerra e, como todos os ditadores, só encontra o caminho do tudo ou nada que leva inevitavelmente ao desastre. Já perdeu, porque todos os seus objectivos iniciais estão perdidos: o ataque directo à capital ucraniana foi um fiasco; a Ucrânia continua a existir e, a seu tempo, vai entrar na União Europeia; a NATO está mais forte e unida, com entrada até de novos países tradicionalmente neutrais como a Finlândia e a Suécia; a União Europeia encontrou novos motivos de união, quando andava um pouco perdida pensando apenas na economia; aliás, a União Europeia percebeu mesmo a necessidade de garantir a sua própria segurança, para além do guarda-chuva americano da NATO; por fim, a chantagem energética foi furada, tendo a Europa ocidental encontrado fontes energéticas alternativas ao gás e petróleo russos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 Fevereiro 2023 

Imagens retiradas da inrenet

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

FINALMENTE, ALGUMA LUZ

 


O país acordou finalmente para um velho problema que, apesar de tão hediondo, muita gente ao longo de centenas de anos foi escondendo debaixo do tapete. Os abusos sexuais de crianças não são de hoje, nem sequer exclusivo de determinadas geografias, mas surgem hoje como crime muito pelo desenvolvimento de normativas internacionais sobre os direitos da criança, nomeadamente:

- a Declaração de Genebra de 1924 sobre os direitos da criança,

- a Declaração dos direitos da criança adoptada pelas Nações Unidas em 1954 e, finalmente,

- a Convenção sobre os direitos da criança aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Novembro de 1989 e assinada por Portugal em Janeiro de 1990.

Por aqui se vê que foi só nos últimos cem anos que os direitos específicos da criança, cruciais para a sua defesa perante os mais diversos ataques, começaram a surgir no direito internacional, para depois integrarem os direitos nacionais.

Os abusos sexuais surgem como um dos mais vis ataques aos direitos das crianças, incapazes de se defender pelos mais diversos motivos: fragilidade física, desenvolvimento mental insuficiente para perceber o que se passa e medo ou respeito pelos mais velhos, familiares ou responsáveis por instituições onde se inserem. É um facto conhecido que a esmagadora maioria dos abusos sexuais de crianças se verifica em ambiente familiar, circunstância que torna dificílima a sua detecção precoce ou mesmo posterior à sua prática, quase sempre continuada. É igualmente reconhecido que o seu silenciamento posterior relativamente aos abusos sofridos se deve normalmente a sentimentos de medo, vergonha ou mesmo culpa.


Os portugueses tomaram agora conhecimento do Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa denominado «Dar voz ao silêncio». Esta comissão presidida pelo reconhecido médico pedopsiquiatra Pedro Strecht e constituída por reputados cidadãos especialistas em diversas áreas trabalhou durante um ano, a convite da Conferência Episcopal Portuguesa. O período temporal em análise estendeu-se de 1950 aos nossos dias, tendo sido validados depoimentos de 512 vítimas de entre as pessoas que se apresentaram à Comissão, utilizando os meios por esta colocados à disposição. A Comissão pediu ainda às 21dioceses e aos 127 institutos religiosos existentes em Portugal a realização de um levantamento de casos de abuso sexual de crianças nos respetivos arquivos entre 1950 e 2022. A Comissão esclarece que as 512 vítimas directas colocam na mira pelo menos outras 4300, pelo facto de os abusadores lesarem mais que uma criança. A Comissão fez um tratamento estatístico pormenorizado das situações, mas um dado impressivo é que 77% dos abusadores eram padres.

Na realidade, o conhecimento desta situação só peca por tardio. Depois de tudo o que soube por esse mundo fora, seria uma pura ingenuidade imaginar que em Portugal fosse diferente. O que coloca a Igreja, também em Portugal, numa situação muito difícil já que a dimensão do problema não permite pensar que é uma questão de um ou outro padre. Há um problema da própria Igreja, que sai deste Relatório com a necessidade absoluta de se reformar profundamente, não adiantando argumentar que resiste há dois mil anos.

A Igreja assume-se como dogmática, constituindo-se como única e exclusiva possibilidade de intermediação entre os fiéis e o próprio Deus, não permitindo colocar em questão os dogmas que ela própria foi constituindo ao longo dos séculos. E, se o cristianismo foi e é uma fonte importantíssima de ética, a acção dos padres e bispos pode colocar isso em causa. O povo português sempre deu mostras de algum anti-clericalismo que se manifesta por vezes num anedotário referente, por exemplo, a relações sexuais de padres com mulheres com filhos e «afilhados» à mistura, denotando até alguma compreensão perante necessidades básicas desses homens. Mas os abusos sexuais de crianças não têm nada a ver com isso. Trata-se de crimes horrorosos que não podem ser aceites e muito menos escondidos por ninguém, a começar pelos responsáveis superiores da Igreja que são os bispos. E está criada a sensação geral de que, ao longo dos anos, esses responsáveis tudo fizeram para encobrir essas situações, colocando um suposto interesse corporativo da Igreja acima dos direitos das crianças vítimas. E isso é insuportável pela sociedade nos dias de hoje, não sendo uns simples pedidos de desculpa que ultrapassarão o que foi feito a milhares de crianças vítimas de padres cuja acção predatória foi encoberta pela Igreja durante demasiado tempo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  20 de Fevereiro de 2023

Imagens recolhidas na internet