terça-feira, 28 de maio de 2024

LEMBRAR A TRAGÉDIA DE ALFARROBEIRA

 


No dia 20 de Maio de 1449, passaram há pouco 575 anos sobre essa data fatídica, aconteceram os factos que para a História ficaram conhecidos como Batalha de Alfarrobeira. Na realidade, tratou-se mais de uma emboscada que teve como objectivo conseguido, eliminar o Infante Dom Pedro, Duque de Coimbra.

Esta crónica cumpre de novo um dever pessoal assumido de relembrar a figura histórica do primeiro Duque de Coimbra, figura ímpar na Cultura portuguesa e europeia do seu tempo.

Dom Pedro pertencia àquela que Camões chamou Ínclita Geração, os seis filhos do Rei D. João I (o de Boa Memória) e Filipa de Lencastre que chegaram à idade adulta. Era o segundo mais velho destes seis, depois de Dom Duarte que, por ser o mais velho, foi Rei de Portugal.

Dom Pedro, tal como os seus irmãos, foi privilegiado com uma educação esmerada, fruto da experiência de sua mãe, vinda da mais alta aristocracia inglesa. A escolha do matrimónio de D. João I foi, como era costume na época, fruto de uma cuidadosa análise política em função dos interesses de Portugal, numa época em que um relacionamento ibérico era ainda impossível. Mas em boa hora a escolha recaiu em D. Filipa de Lencastre que, além da aliança que ainda hoje é a mais antiga do mundo, trouxe hábitos sociais e culturais sofisticados pouco usuais na corte portuguesa, até então.

Na sequência da sua actuação na conquista de Ceuta Dom Pedro foi recompensado com o ducado de Coimbra e ainda com os senhorios de Montemor-o-Velho e Aveiro. As suas viagens pela Europa durante três anos entre 1425 e 1428 tornaram-no conhecido como “Príncipe das Sete Partidas”. Começou a sua viagem por Inglaterra onde foi agraciado com a Ordem da Jarreteira, passando depois pela Flandres de onde remeteu a seu irmão D. Duarte famosa “carta de Bruges” com conselhos para a governação do país que ainda hoje surpreendem pela acuidade, conhecimentos e superior formação política em função do que hoje chamamos interesse público. Visitou o túmulo dos Reis Magos em Colónia e ao lado do imperador Segismundo da Hungria lutou contra os Turcos e recebeu a marca de Treviso. Percorreu a Itália e as principais cidades desde Veneza a Roma, travando conhecimento com altas personalidades como o Papa Martinho V. No fim das suas viagens atravessou a Península Ibérica e exerceu diplomacia em vários reinos

Muito importante, trouxe para Portugal algo que nas décadas seguintes seria de capital importância para Portugal: o livro de Marco Polo e um mapa-múndi com as rotas comerciais entre a Europa e o Oriente. E, de facto, o Duque de Coimbra veio a ser decisivo na gesta portuguesa dos descobrimentos, em alternativa à continuação das conquistas militares no Norte de África. No seu “Tratado da Virtuosa Benfeitoria” o Infante D. Pedro desenvolveu teoricamente o que na prática havia sucedido com a eleição de seu Pai como Rei nas Cortes de Coimbra, considerando o Poder real como sendo uma emanação da vontade popular.

O Infante Dom Pedro teve oportunidade de levar à prática as suas ideias inovadoras de organização do Reino durante o período em que foi Regente entre a morte de seu irmão D. Duarte e a maioridade de D. Afonso V, o que significou retirar poder à grande nobreza, o que teve como efeito suscitar a sua violenta oposição. Essa oposição veio a traduzir-se em praticamente uma guerra civil sendo o principal inimigo do Duque de Coimbra o seu meio-irmão Afonso, filho de D. João I nascido antes do seu casamento com D. Filipa. Dom Afonso, que tinha sido feito Duque de Bragança precisamente pelo Infante Dom Pedro durante a sua Regência. Tendo o Rei D. Afonso V acedido às vontades do Duque de Bragança, Dom Pedro e os seus homens foram recebidos às portas de Lisboa por um exército, do que resultou a morte do Duque de Coimbra e dos seus principais apoiantes. O sistema feudal regressava assim com toda a força, só vindo a ser ultrapassado pelas novas ideias no reinado de Dom João II, o chamado Príncipe Perfeito, ele próprio filho de D. Afonso V e neto por via materna de Dom Pedro, Duque de Coimbra.

A nossa Cidade continua a esquecer deliberadamente os maiores da sua História, com o Duque de Coimbra Dom Pedro à cabeça. É difícil entender esta situação quando Dom Pedro é uma figura ímpar na nossa História, que ultrapassou largamente a sua condição de nascimento dos pontos de vista cultural e político. Foi um homem largamente à frente do seu tempo, tendo por isso mesmo sido vítima da habitual inveja e atraso nacionais. A sua vida constitui um exemplo, a louvar e relembrar principalmente num tempo com tanta falta de símbolos verdadeiros de honradez, justiça e verdade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Maio de 2024

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terça-feira, 21 de maio de 2024

FESTIVAL DA EUROGRITARIA

 


Acredito que não será certamente por causa da politização do evento que o chamado Festival da Eurovisão 2024 ficará na memória dos telespectadores. Na realidade, há muitos anos que é visível a penetração da política na organização ou nas candidaturas dos países, de que até Portugal já foi disso exemplo no passado, por mais de uma vez. O activismo político utiliza todos os meios que pode e, quando a organização de um evento de grande escala não tem capacidade de se opor, aproveita a oportunidade. Claro que correu mal porque um dos intérpretes abusou e foi o seu país que acabou por se ver excluído da competição. A mistura da defesa dos palestinianos com o racismo anti-semita acabou por se virar contra os próprios, porque as votações directas permitiram perceber que o extremismo vanguardista que ocupa as televisões anda muito longe do sentir das populações anónimas.

Também não será por causa da afirmação pessoal de intérpretes que aproveitam para assumir a sua diferença no que diz respeito à sexualidade que este festival ficará na memória. De facto, já não podemos classificar como grande novidade o surgimento de intérpretes que se apresentam, mais do que cantores, como pessoas não binárias. O aceitamento pacífico da diferença generalizou-se nas nossas sociedades e os exageros de afirmação apenas atraem a atenção e atitudes opostas de minorias extremistas do lado contrário, no fundo bastante parecidas nos métodos.

Também não será a extravagância das indumentárias apresentadas pelos intérpretes (homens, mulheres, etc.) que este certame ficará na memória. A utilização de vestuários diferentes tem sido uma característica dos Festivais da Eurovisão desde há muito. A maioritária apresentação de intérpretes femininas em minúsculos trajes do tipo fato de banho é apenas mais uma demonstração da hipocrisia reinante em determinados círculos. Não foi há muito tempo que as feministas se insurgiram contra os concursos de misses em fato de banho e conseguiram que no início das corridas de automóveis e motas não houvesse jovens assim vestidas. E muito bem, digo eu, só se torna difícil de entender o actual silêncio perante idênticas utilizações do corpo feminino.

Este festival também não passará para a História pelos cenários de luz cor e movimento com utilização intensa de efeitos digitais que, apesar da sua espectacularidade, é já habitual em muitos eventos musicais que se realizam por esse mundo fora.


Mas a verdade é que este Festival da Eurovisão deverá mesmo ficará na nossa memória, embora por outras razões, que nos levam a perceber um pouco melhor as circunstâncias que acima refiro. É que, sendo suposto ser um festival de música, a musicalidade não poderia andar mais longe daquele palco europeu. Conta-se que Louis Armstrong costumava dizer que só há dois tipos de música: a boa e a má. Claro que a classificação depende de critérios pessoais, mas há níveis de qualidade tão baixos, tão baixos, que se torna possível uma concordância generalizada. Será, para muitos em que me incluo, o caso deste dito festival de música que não foi mais do que um festival de gritaria. E os cenários espectaculares, as indumentárias ridículas e as afirmações pessoais laterais não servem para mais do que isto: esconder que em vez de um Festival de Música, a Eurovisão nos presenteou apenas com um Festival de Gritaria. Ainda que de carácter popular, houve tempo em que o Festival da Eurovisão era Cultura. Hoje está transformado em mero entretenimento grosseiro, acompanhando a luta comum que interesses comerciais e vanguardas políticas e sociais de braços dados têm promovido contra o Belo e Sensível.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Maio de 2024

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terça-feira, 14 de maio de 2024

EUROPEUS VÃO A VOTOS

 


No próximo dia 9 de Junho os europeus vão a votos para escolher os deputados do Parlamento Europeu. Em Portugal a taxa de abstenção nestas eleições evoluiu de 27,8% em 1987 para 69,3% nas últimas eleições realizadas em 2019. Isto é, nestas últimas, em cada dez eleitores apenas votaram três.

Dir-se-ia que os portugueses, ou não se sentem europeus, ou não querem saber da União Europeia para nada. Contudo, em simultâneo, os portugueses contam-se entre os europeus que mais aprovam a participação na União. Um paradoxo dificilmente explicável, a não ser pelo volume de fundos europeus recebidos por Portugal desde a entrada na CEE que ocorreu em 12 de Junho de 1985. Na realidade, entre 1986 e 2022, o nosso país recebeu mais de 157 mil milhões de euros da União Europeia que são facilmente verificáveis em obras públicas e inúmeros melhoramentos assinalados pelas placas obrigatórias por todo o país. E isso os portugueses sabem-no bem! Isto é, olhamos para a União Europeia, não como um projecto político comum, mas sim com um banco onde vamos buscar dinheiro fácil, como aconteceu com o ouro do Brasil há três séculos.

Mas esse dinheiro recebido tem consequências, nem sempre as melhores. Todos sentimos que uma percentagem não negligenciável tem sido gasta em obras de fachada que não introduzem qualquer melhoria concreta na vida colectiva nem, e isso é o essencial, se traduz verdadeiramente num crescimento sustentável da economia e do bem-estar generalizado dos portugueses. Dado que nas obras comparticipadas pela União Europeia uma parte tem de ser assegurada pelos orçamentos nacionais, fácil é concluir pelo desvio de verbas essenciais ao bem-estar colectivo para obras e iniciativas várias que não são reprodutíveis.

Os partidos concorrentes às eleições também não têm ajudado muito. De facto, nos extremos do leque partidário encontramos discursos que, na prática, desligam os eleitores do verdadeiro interesse da União para todos os países membros, incluindo Portugal. À esquerda, os discursos populistas apontam a União Europeia como sendo responsável pelos nossos problemas económicos e financeiros. Na realidade, evoluíram um pouco, já que deixaram de exigir a saída de Portugal da União. Mas continuam a manipular o povo defendendo a saída da moeda única. A entrega ao Banco Central Europeu das competências relativas a políticas monetárias e de juros que são agora comuns aos países do Euro, é apresentada como perda de soberania e origem das nossas dificuldades periódicas, quando se verifica exactamente o contrário. O que seria da nossa economia se não pertencêssemos à moeda única? Em vez de crescimento, que apesar de fraco existe, teríamos pobreza e isolamento: mais orgulhosamente sós! À direita igual populismo tenta ressuscitar um nacionalismo serôdio que explora sentimentos retrógrados. Como se a moeda única e a livre circulação de pessoas e bens fossem algo prejudicial a um país que há séculos estava separado da Europa e que após a perda do Império reencontrou o espaço e os povos que estiveram na sua origem. Basta ler a entrevista ao Observador do cabeça de lista do Chega para se perceber como devemos evitar o populismo da extrema-direita e as suas mais desvairadas teorias da conspiração que fazem lembrar os “protocolos dos sábios de Sião”. Quer à esquerda, quer à direita, os sonhos dos extremos passam por destruir ou enfraquecer por dentro a União Europeia.


Já os partidos situados ao Centro, à esquerda e direita aparecem nestas eleições europeias com propostas muito semelhantes, aceitando e promovendo a participação numa União Europeia cada vez mais aprofundada. O que os separa tem mais a ver com a situação nacional e os seus objectivos a esse nível, não pretendendo enviar para Estrasburgo lutadores contra a União. Mais importante do que transportar para Bruxelas e Estrasburgo os problemas próprios nacionais, o que interessa é perceber que resposta se pretende dar às questões verdadeiramente decisivas para o futuro da União: a agressão russa, o isolacionismo americano e as mudanças climáticas.

A entrada na CEE, agora União Europeia, foi um momento de grande importância para Portugal que assim pertence de pleno direito a um dos blocos políticos e económicos mais avançados do mundo, que permanece firme na defesa da Liberdade, da paz e dos direitos humanos. Isso é bem mais importante do que ser considerada como mero financiador dos nossos investimentos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 Maio 2024

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segunda-feira, 6 de maio de 2024

GOVERNO E OPOSIÇÃO TÊM RESPONSABILIDADES


 Passadas que estão as comemorações dos 50 anos sobre o 25 de Abril, regressou a vida habitual e o que os portugueses veem não é bonito de se ver e traz-nos a todos algo perplexos e muito preocupados com o futuro. As eleições de 10 de Março passado traduziram-se numa nova estrutura partidária em que os dois maiores partidos, o PSD e o PS ficaram praticamente empatados, aparecendo um terceiro partido, o Chega, bastante próximo. O estabelecimento de uma maioria obrigaria a que um dos dois maiores se associasse de alguma maneira ao CHEGA, ou que algum tipo de acordo se fizesse entre o PS e o PSD/CDS.

Pelo contrário, o PSD e o CDS formaram Governo minoritário, solução aceite pelo Presidente da República que, ao que se sabe, nem tentou que houvesse pelo menos um acordo parlamentar que assegurasse um mínimo de estabilidade política em matérias essenciais. É possível que tal atitude se deva a um mau momento do Presidente da República cuja autoridade se encontra claramente diminuída, mas a realidade é que estão criadas as condições para que o actual Governo vá encontrar condições muito difíceis para governar normalmente. Tal só será possível caso esteja disponível para negociar todas as decisões que tenham de passar pela Assembleia da República. Será ainda necessário que um dos dois partidos maiores da oposição, ou ambos, se abstenham de criar um permanente obstáculo à governação e ainda de tomar a iniciativa de propor e aprovar decisões contrárias à política governativa. Isto é, será necessário que o Governo possa governar e que o faça e, por outro lado, que os partidos da oposição não cedam à tentação de transformar o Parlamento em entidade governativa em vez de fiscalizar a actividade do Governo, como estipula a Constituição.

Durante o período comemorativo do 25 de Abril, pudemos ouvir, e bem, que se deve defender a Liberdade e a Democracia todos os dias, que nunca se devem ter como garantidas. Para tal, o primeiro dever dos líderes políticos deve ser evitar a irresponsabilidade e o populismo. No entanto, o que todos vemos é o contrário, numa demonstração evidente do “faz o que eu digo e não o que eu faço”. A aprovação do fim das portagens nas ex-SCUTS na Assembleia da República pelo Chega e pelo PS é disso prova evidente. Um partido diz que essa medida constava do seu programa eleitoral o que não faz sentido, porque não é governo. O outro segue a sua política populista e irresponsável de terra queimada ao prometer tudo a todos em simultâneo, sem cuidar minimamente das condições financeiras do país.

Tudo indica que, 50 anos depois da instauração da Democracia, nos voltamos a aproximar perigosamente do que se passou na primeira República. O interesse nacional é esquecido em função dos interesses eleitorais imediatos dos partidos. Os fundamentos da Democracia poderão ser minados através de uma utilização egoísta dos meios proporcionados por essa mesma democracia, como infelizmente a História nos ensina com demasiados exemplos.


Perante este cenário o Senhor Presidente da República pode vir a ter de tomar decisões difíceis e importantes a curto prazo. No jantar com os correspondentes estrangeiros as referências que fez ao actual e ao ex-Primeiro Ministro bem como à Procuradora-Geral da República e às reparações históricas foram no mínimo infelizes, mas situam-se na área da política. Já a referência às suas relações familiares revestiu-se de um carácter completamente diferente. E o carácter dessa referência poderá ter minado a confiança de grande parte dos portugueses no Presidente da República de uma forma possivelmente irreversível. O que não deixará de ter consequências na relação dos portugueses com a instituição da Presidência da República criando um ambiente político degradado.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Maio de 2024

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segunda-feira, 29 de abril de 2024

HAVIA UM PAÍS

 


Havia um país que nunca tinha conhecido verdadeiramente a Liberdade que acompanha um regime verdadeiramente democrático. Há quase cinco décadas que vivia num regime ditatorial saído de um golpe de estado militar que rapidamente havia devorado os militares que a tinham feito. Em vez de partidos havia um movimento afecto ao regime, do qual saiam deputados, governadores civis, presidentes da câmara e de freguesia. Havia uma assembleia, mas a escolha de deputados do tal partido único era feita em arremedo de eleições. O próprio presidente da República tinha passado a ser escolhido no interior do regime, depois de uma eleição em que um candidato oposicionista quase era eleito, para poucos anos depois ser assassinado. Quem praticou esse crime foi a polícia política que protegia o regime apoiada em legislação específica, quando não mesmo frequentemente fora dela. Muita gente era presa por essa polícia que praticava também tortura e muitas vezes mantinha pessoas presas mesmo sem decisão judicial ou até depois dela, por simples decisão policial. Esse país estava em guerra em territórios que sobravam de um antigo império colonial que queriam ser independentes, mesmo quando todos os países europeus já tinham procedido à descolonização dos seus territórios ultramarinos. Os soldados mortos ou estropiados contavam-se por milhares, espalhando-se ainda uma autêntica pandemia escondida: a do transtorno pós-traumático dos soldados regressados da guerra. Nesse país não havia liberdade de imprensa e os jornais eram sujeitos a uma censura prévia. Havia muitos livros proibidos pelos mais diversos motivos e mesmo a leitura de livros comprados nas livrarias era, por vezes, objeto de acção repressiva por decisão pessoal de polícias invadindo a vida particular das pessoas. Sob a capa de uma intenção de protecção da família, às mulheres desse país eram negados os mais elementares direitos, desde proibição de algumas profissões, à negação do divórcio ou até de saída ao estrangeiro sem autorização do marido. Claro que não podiam votar e o flagelo do aborto era praticado às escondidas sem cuidados médicos com possibilidade de ir parar à cadeia.

Antes, tinha havido uma República breve de pouco mais de quinze anos que não deixara muitas saudades, antes um país dividido mergulhado em confusão e violência que nunca conseguiu instaurar uma verdadeira democracia. Nos cem anos anteriores esse país foi invadido por exércitos estrangeiros que destruíram grande parte do território, quer nas cidades quer no mundo rural, tendo as elites fugido e abandonado os povos à sua sorte. Após o que se lhe seguiram anos sucessivos de pilhagens, revoluções e mesmo guerras civis. Todo um século de desgraças em que o país regrediu imenso face aos seus congéneres europeus em todos os aspectos.

Mas antes disso, esse país havia ainda vivido 285 anos, praticamente três séculos, sob o terror permanente de uma Inquisição que fiscalizava a vida de toda a gente de uma forma absoluta, sem que houvesse hipótese de defesa depois de se ser acusado.


É impossível que estes séculos de submissão e mesmo humilhação colectiva, não tenham tido consequências no sentimento profundo das populações desse país. Assim se compreende melhor que, num momento em que de repente a Liberdade aparece como uma verdade possível para toda a gente, tenha surgido uma sensação generalizada de alívio e de genuína satisfação que surpreendeu tudo e todos pela sua intensidade. E é impressionante e mesmo comovente que, apesar de todo o passado dos últimos trezentos e tal anos, os últimos cinquenta sejam de vida em democracia e Liberdade. Da primeira vez que o pôde fazer o Povo desse país agarrou a oportunidade com as duas mãos e, com inteligência e maturidade, nas urnas de voto que é a sua arma verdadeira, sucessivamente defendeu o seu futuro em Liberdade. Claro que nesse país com mais de oitocentos anos há muito por fazer e para melhorar, mas que que o possa fazer em democracia e Liberdade é algo que se deve saudar, acarinhar e, sobretudo, defender.

Portugal é esse país. Ao povo português, a que pertenço, obrigado por tudo.

Publicado originalmente em 29 Abril 2024

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segunda-feira, 22 de abril de 2024

COM A VERDADE ME ENGANAS


A “verdade” é algo que, nos tempos que correm, anda muito arredado do nosso espaço público. Todos sabem ao que me refiro e penso nem ser necessário grandes explicações. Desde os processos judiciais em que uma investigação deita uma maioria absoluta e um governo para o lixo para depois vir um tribunal superior afirmar que não há qualquer suspeita de crime até uma verdade sobre descidas importantes de impostos não passar de uma simples árvore escondida dentro de uma floresta, vemos de tudo.

Ao longo da História a “verdade” tem sido objecto das maiores entorses, mas nada se compara ao que se passa na actualidade em que domina a chamada pós-modernidade. Nos tempos de Aristóteles, a coisa era muito simples e quase evidente, quando dizia que “verdadeiro é dizer que o ser é e que o não-ser, não é”. Isto é, havia uma correlação imediata entre o que se percepcionava e a realidade que nos é exterior, de forma objectiva. A realidade não dependia na forma como se olhava para ela, não dependia das nossas crenças religiosas, políticas ou mesmo da nossa consciência. A realidade era o que era e só nos restava aceitar tal facto, ponto final. O realismo imperava e era a chave para compreender a “verdade” de todas as coisas. Era fácil vivermos em comunidade porque a percepção da realidade era comum a grande parte de nós e não valia a pena discutir muitas das coisas e situações que nos rodeavam.

Contudo, a certa altura, os homens começaram a verificar que nem todos percebemos a realidade da mesma maneira, pelo menos no que se refere não propriamente à matéria que respeita às ciências exactas, mas a tudo o resto que tem a ver com a acção humana. Daí até se achar que nada existe na realidade e que tudo depende da nossa percepção, foi um passo. Passo que, em termos filosóficos, foi dado em finais do séc. XIX por Nietzsche para quem a nossa percepção do que nos rodeia seria apenas fruto dos estímulos que recebemos. O “realismo” tinha dado lugar ao “perspectivismo”. Não demorou muito até surgirem as teorias políticas extremistas em que a perspectiva dos respectivos líderes se sobrepunha à realidade, já que esta pura e simplesmente não existia. Desta visão se apoderaram fascismos, nazismos e comunismos que pretendiam construir uma realidade paralela de acordo com as “percepções” dos respectivos líderes. Em consequência das tentativas de levar à prática aquelas teorias filosóficas, quem sofreu as maiores agruras foi a própria Humanidade com centenas de milhões de mortos, sofrimentos e perseguições indizíveis ainda hoje difíceis de compreender.


A partir daí, a distanciação relativamente à realidade só podia piorar. Assistimos hoje a uma absoluta negação da “Verdade” que se torna culpada de restringir a nossa própria liberdade. O individualismo absoluto campeia e todos passámos a ser detentores da nossa própria verdade, nem que isso vá contra as próprias leis da natureza. A ciência é negada todos os dias e a sua defesa como sendo a realidade é tida como uma atitude desrespeitosa contra a liberdade de quem diz o contrário. As redes sociais dão uma impressão ilusória de liberdade por anularem a mediação, mas por isso mesmo servem muitas vezes de veículo de mentira e de manipulação.

Claro que o individualismo absoluto que rejeita verdade comuns, ainda que absolutamente provadas pela ciência, abre o caminho aos maiores disparates e perigos sociais, constituindo um campo aberto aos extremismos que, como há cem anos, poderão destruir a Liberdade. Cabe-nos tentar perceber o que se passa e não permitirmos, cada um de nós, que em nome de supostas construções humanas se destrua a Humanidade.

E cabe-nos ainda ser exigentes com os nossos responsáveis políticos, sejam eles de que partido forem não aceitando mentiras nem distorções da realidade. Perante o que se tem visto, ouvido e lido, muito mais do que falar sobre corrupção é sobre reforma da Justiça que os partidos principais deviam falar verdade entre eles e com o Povo. Para que inocentes não penem anos a fio à espera de justiça e criminosos não andem anos a fio a atrasar processos até se livrarem por prescrições.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de Abril de 2024

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segunda-feira, 15 de abril de 2024

D. ISABEL, DUQUESA DA BORGONHA

 

"Mas, pera defensão dos Lusitanos,
Deixou, quem o levou, quem governasse
E aumentasse a terra mais que dantes:
Ínclita geração, altos Infantes."

Assim se referiu Camões à descendência de D. João I e D. Filipa de Lencastre e não há razões para crer que a Infanta D. Isabel não estivesse incluída na mente do autor na estância 50 do Canto IV dos Lusíadas.


Contudo, é altamente provável que, mesmo que o leitor faça um esforço de memória não se recorde de qualquer menção à Infanta D. Isabel, quer na História que aprendeu nos bancos da Escola, quer na literatura comum. Tal obliteração histórica será devida essencialmente aos cronistas da época, mas também a uma ideia muito generalizada de pouca importância da Mulher na sociedade da Idade Média. Esse esquecimento só há pouco tempo começou a ser ultrapassado com estudos dirigidos ao estudo da vida da Mulher superior e importantíssima no seu tempo que foi a Infanta D. Isabel, posteriormente Duquesa da Borgonha que no seu tempo era mesmo conhecida nas cortes europeias como “A Grande Dama”.

Muito por influência de sua Mãe, a Rainha D. Filipa de Lencastre que, de Inglaterra trouxe costumes, mas também cultura e exigência no comportamento dos membros da Realeza, todos os Infantes de D. João I receberam uma educação esmerada, invulgar para o seu tempo, não tendo D. Isabel sido excepção. Até aos trinta e dois anos, Isabel foi Infanta, dado que só nessa altura ficou livre para casar, depois de o irmão e futuro Rei D. Duarte ter casado pelo seu lado. Com a morte de sua Mãe D. Filipa, Isabel herdou a “Casa da Rainha” por inteiro, algo que por si só constituiu uma novidade, por vontade de sua Mãe ao morrer, mas também por influência de seu irmão Pedro, que seria Duque de Coimbra após a conquista de Ceuta. E a educação que teve, bem como a experiência do governo dos domínios e do pessoal dessa importante Casa haveriam de a habilitar para a sua acção na fase seguinte da sua vida.

Com o seu casamento, em 1430, com Filipe III (o Bom), Duque da Borgonha, teve início a segunda fase da sua vida, que iria durar quarenta e dois anos. Durante a negociação do casamento o Duque enviou uma embaixada a Portugal, incluindo o pintor Jan van Eyck encarregado de pintar o retrato mais fiel possível de D. Isabel. As informações sobre a Infanta de Portugal e o retrato deixaram o Duque completamente satisfeito, pelo que se tratou logo do enlace. Era o terceiro casamento do Duque e deste casamento nasceram três filhos de que apenas o terceiro, Carlos o Temerário, chegou à fase adulta. Data dessa altura a criação da célebre ordem de cavalaria “Tosão de Ouro” criada por Filipe III em homenagem a Isabel.

A corte do Duque da Borgonha não ficava atrás das cortes régias do seu tempo, quer em poderio, quer em riqueza. De facto, o Duque da Borgonha era também conde da Flandres (que o transformava no homem provavelmente mais rico do seu tempo), Artois, paladino de Namur, senhor de Salines e de Malines.

Com a sua educação refinada, Isabel integrou-se perfeitamente na Corte, sendo uma mecenas das artes e rodeando-se de artistas. Mas Isabel não se ficou por aí, muito antes pelo contrário. As suas capacidades de governante foram reconhecidas em pleno pelo seu marido, que tomou mesmo, nalgumas alturas, a decisão inédita de lhe entregar por completo a governação do ducado, na sua ausência em campanhas militares. Foram as célebres “delegações de poder” outorgadas por Filipe a Isabel que lhe colocaram nas mãos responsabilidades de governar o ducado nos aspectos financeiros, judiciais e sociais, mas também de organização militar e respectivo financiamento. O papel de Isabel foi ainda importantíssimo em diversas Conferências de Paz em que cumpriu brilhantemente o papel de Embaixadora do Ducado.

Após a guerra civil verificada em Portugal da qual resultou a morte do seu irmão D. Pedro duque de Coimbra em Alfarrobeira, Isabel interveio com o envio de uma delegação a fim de conseguir um túmulo digno para D. Pedro, para além de acolher os três filhos deste na sua corte e de lhes proporcionar carreiras condicentes com o seu nascimento.


D. Isabel, quer no papel de Infanta de Portugal, quer no de Duquesa da Borgonha não deixou certamente de ser uma mulher do seu tempo, mas provou que mesmo nessa altura às mulheres não estava destinado apenas um papel secundário na sociedade medieval. Claro que o ambiente em que nasceu, a educação recebida e a personalidade própria ditaram aquilo que veio a ser na vida. E D. Isabel conseguiu ser não apenas uma das mulheres mais importantes do seu tempo, mas uma das personalidades mais notórias e fascinantes do seu tempo, independentemente do seu sexo. Fez parte da Ínclita Geração e bem merece ser assim conhecida por todos nós.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Abril de 2024

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