terça-feira, 30 de julho de 2013

Mulheres e quotas




A Lei da Paridade de 2006 veio estabelecer que as listas para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu e para as Autarquias Locais são compostas de modo a assegurar a representação mínima de 33% de cada um dos sexos. Desta forma, a cada dois elementos de uma lista de um sexo, terá que se seguir sempre um elemento do outro sexo.
É óbvio que esta lei visa adequar a representação das mulheres ao seu papel na sociedade, onde até será hoje superior a 50%, mas não fugindo muito desse valor.
Quem já passou pela vida partidária sabe bem a paciência que é necessária para aguentar com as mesmas velhas discussões em que apenas variam os intervenientes, sendo a matéria sempre a mesma. É por isso que as mulheres, normalmente bem mais práticas, pragmáticas e com mais que fazer  fogem desses locais, deixando um palco maioritário aos homens na política.
Quando surgem as eleições é interessante ver a forma como se processa a aplicação da lei da paridade, tantas vezes de forma perversa para as próprias mulheres. É assim que por vezes se vai conhecendo a constituição das listas, mas com uns buracos nos lugares que serão obrigatoriamente preenchidos por mulheres; mulheres que, neste caso, sairão sempre diminuidas no seu papel, porque se cria a sensação de que só lá estarão para preencher as quotas.
Ao contrário, e felizmente, há situações em que mulheres são convidadas pelo reconhecimento do seu valor próprio, fora das quotas e mesmo sendo politicamente independentes. Honra a elas e a quem as convida!

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Diga não à discriminação

O ponto central da definição do desenvolvimento de uma sociedade, qualquer sociedade, não é a sua riqueza material, mas sim a capacidade de aceitação da diferença através da não aceitação da discriminação de pessoas ou grupos. E como estamos longe, tão longe disso, mesmo numa Europa supostamente civilizada!
Nos últimos dias a ministra da Integração de Itália Cécile Kyenge, que é primeira negra a exercer funções ministeriais naquele país, foi comparada a um orangotango por um senador e viu ser lhe atirada uma banana quando fazia um discurso público. Sendo quem é, a ministra respondeu apenas que a comida não deve ser desperdiçada. O racismo está incutido na cabeça das pessoas desde o início do colonialismo, quando as diferenças culturais eram tidas como atraso. Num destes dias ia no carro e quis o acaso que ouvisse na rádio uma excelente entrevista ao Prof. Poiares Baptista, grande dermatologista e professor jubilado da fac. de Medicina da nossa Universidade. Mais uma vez explicou, com o seu conhecimento profundo do assunto, como as diferentes cores da pele são apenas isso. Essa adaptação ao meio natural não tem nada a ver com inteligência, capacidade de trabalho, afectos, nada, absolutamente nada. Até a constituição da pele é exactamente a mesma. Mas a discriminação pela cor da pele continua a ser um facto e uma vergonha para todos nós.
Na Nova Zelândia, as autoridades de imigração decidiram expulsar um homem que reside naquele país há seis anos por ter 130 quilos e não ter parâmetros de saúde aceitáveis. Das duas, uma e são ambas inaceitáveis: ou o homem tem mau aspecto por causa do seu peso e é socialmente mal visto num país que vende o desporto e da vida ar livre e saudável como indústria, ou o Estado se recusa a fornecer serviços de saúde a pessoas por serem obesas. Mais uma vez a discriminação a vir ao de cima. A indústria da moda, nas suas diversas facetas, seja do vestuário seja dos cosméticos, é responsável por incentivar a discriminação de uma forma insidiosa, mas extremamente eficaz. Precisamente porque penetra no nosso subconsciente através da publicidade, da fotografia e do próprio cinema. Propõem, ou melhor, impõem, critérios de beleza absolutamente artificiais que criam complexos e levam as pessoas a desejarem ser iguais aos manequins.
Para além da artificialidade da criação das imagens que são manipuladas ao ponto de as pessoas apresentadas serem quase irreconhecíveis ao natural, impõem modelos estereotipados que levam à segregação de quem se afasta deles. É assim que quem não é magro (mesmo que não seja obeso), quem não é alto, quem tem rugas, quem nasceu com alguma diferença, ou apenas quem não é jovem, é levado a sentir-se feio e excluído. Quando a moda até faz sentido se nos levar a sentirmo-nos bem com nós próprios e com o nosso corpo, é transformada numa ditadura dos criadores e da publicidade e mesmo na forma mais pura de descriminação.
Assistimos diariamente a muitas outras formas de discriminação. Seja pela religião, seja pelo sexo, seja pela origem social, seja pela opção política, a nossa sociedade parece que se compraz na exploração da diferença, para tentar rebaixar quem é diferente da média. O respeito pelo semelhante, isto é, por toda e cada uma das pessoas em toda a sua personalidade é, de facto, pedra de toque de civilização. Sejamos cada dia mais civilizados do que no dia anterior. Só depende de nós.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 29 de Julho de 2013

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Reabilitação Urbana


Renovação, recuperação, reabilitação, regeneração, são termos muitas vezes indistintamente utilizados em conjunto com a adjectivação “urbana” para designar uma acção, ou melhor dito, um conjunto de acções que visam agir sobre os centros históricos degradados das cidades. Assim sendo, para além da semântica, o que verdadeiramente interessa é o objectivo a atingir. E esse só pode ser o da regeneração urbana dos centros históricos já que, para além da reabilitação do edificado, se pretende que uma consequência dessas acções seja criar condições que permitam chamar novos moradores, revitalizar as velhas e chamar novas actividades económicas, em suma, criar atractividade que recentre uma cidade no seu velho centro histórico. Significa isso que a reabilitação não pode ser uma mera recuperação museológica do edificado degradado, mas todo um conjunto de acções que, para além da construção civil, regenere autenticamente o velho centro histórico dando-lhe nova vida.
A reabilitação urbana chama hoje a atenção de muita gente por várias razões: desde logo, porque os centros históricos degradados aparecem como uma chaga na cidade ao nível dos edifícios, mas também aos níveis social e económico; depois, porque a actividade da construção civil caiu a pique nos últimos anos, estando criada uma consciência social e política de que a expansão urbana das últimas décadas é insustentável. A tudo isto acresce o valor patrimonial tantas vezes identitário que, no caso de Coimbra, foi há pouco tempo considerado de interesse mundial pela Unesco.
A actividade da reabilitação urbana encontra-se regulada em termos legislativos pelo chamado “Regime Jurídico da Reabilitação Urbana” (RJRU). Uma das peças centrais são as Sociedades de Reabilitação Urbana existentes em várias cidades entre as quais Coimbra: a Coimbra Viva SRU. Ao contrário das outras SRU’s, a de Coimbra nunca dispôs de edifícios para reabilitar, nem de recursos financeiros para os adquirir e recuperar para colocar no mercado depois disso. Por isso a sua actuação foi sempre virada para a preparação dos documentos urbanísticos necessários, para o apoio aos proprietários e para encontrar parceiros financeiros para a reabilitação. Foi assim que foi constituído o primeiro Fundo de Investimento Imobiliário especial em reabilitação urbana do país em que os próprios proprietários participam e que foram delimitadas duas Áreas de Reabilitação Urbana para a Baixa e Rio (frente urbana da margem direita entre o Parque Manuel Braga e o Arnado) com os seus Programas Estratégicos aprovadas pela Assembleia Municipal em Maio último. As respectivas Operações de Reabilitação Urbana, do tipo Sistemático, têm um cronograma definido para os próximos quinze anos. O custo total previsto destas operações é de 193 milhões de euros, correspondendo 157 milhões a investimento privado e 36 a investimento público. Estas operações abrangem seis dezenas de acções concretas.
Em tempo de pré campanha eleitoral autárquica é de saudar toda a preocupação sobre esta matéria, embora muitos dos intervenientes só agora surjam a manifestar-se, quando nem participaram na discussão pública alargada que precedeu a aprovação das ARU’s. Mais vale tarde do que nunca e para quem de facto se preocupa sugere-se uma visita ao site da Coimbra Viva SRU (www.coimbraviva.pt) onde se poderá aceder a toda a informação e, provavelmente, verificar que as acções que tem em mente para a recuperação da Baixa já se encontram lá estudadas e previstas. Por fim, mas não menos importante, importa dizer que, finalmente, boa parte do financiamento para o início da reabilitação da Baixa se encontra negociado e prestes a ser disponibilizado.



Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de Julho de 2013

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Wagner contemporâneo

Comemoram-se este ano os duzentos anos do nascimento de Richard Wagner. Não haverá na História da Humanidade muitos expoentes culturais que tanta polémica tenham provocado pela sua própria vida e pela criação artística, em vida e durante todo o tempo até aos dias de hoje, embora Wagner tenha morrido em 1883. A sua obra, absolutamente genial, constitui, sem sombra de dúvidas, um marco na História da Música. Mas Wagner não se ficou pela composição musical. Ele próprio escrevia os libretos das suas óperas e tratava de todos os pormenores da encenação. Para obter o som que desejava, inventou mesmo alguns instrumentos musicais. Chegou ao ponto de projectar a sala de espectáculos que considerava ideal para a apresentação das suas obras em Bayreuth, onde ainda hoje se apresenta o Festival que leva o seu nome com encenações que, não raras vezes, provocam escândalo.
A música de Wagner foi utilizada em muitas situações, como por exemplo no filme “Apocalypse Now” de Francis Ford Coppola, o que levou o seu conhecimento a variados públicos. Já o aproveitamento que o regime Nazi fez das suas composições majestosas é difícil de esquecer, não sendo ainda hoje pacífico tocar Wagner em Israel, embora o compositor não tenha qualquer responsabilidade naquela utilização feita por Hitler e seus sequazes, já que morreu mais de quarenta anos antes da subida de Hitler ao poder. O simbolismo é no entanto, tão forte, que a ligação do nazismo à música de Wagner demorará muito tempo a desaparecer, principalmente junto das maiores vítimas, os judeus. Entre outros maestros o grande Daniel Baremboim tem lutado por ultrapassar esse estigma, abordando Wagner regularmente com a sua formação orquestral constituída por jovens músicos israelitas e árabes, o que tem que fazer com muito cuidado e grande tacto.
A mitologia nórdica foi utilizada por Wagner nas suas grandes peças operáticas, de que o Anel do Nibelungo é, talvez, a obra mais emblemática e complexa. O deus central é Wotan, o pai das valquírias, entre as quais Brunnhilde que amava sobre todas as outras. Era um deus também egoísta a um nível superlativo, desleal e volúvel: a sua sede de poder leva-o à total destruição à sua volta.
A simbologia nórdica não terá muito a ver com a nossa base cultural, já que os chamados bárbaros que destruíram o império romano não deixaram por cá grandes influências. Mas o que se tem passado em Portugal nas últimas semanas não deixa de fazer lembrar muito do que se passa nas obras de Wagner, sendo relativamente fácil detectar comportamentos simbolizados pelos personagens wagnerianos. O Anel termina de forma trágica com o Crepúsculo dos Deuses. Façamos votos de que, ao contrário dos deuses da mitologia germânica que agiam apenas por estados de alma, ao menos desta vez sejamos capazes de ultrapassar as dificuldades e os grandes perigos que nos espreitam com bom senso, sentido do bem comum, capacidade de entreajuda e, acima de tudo, racionalidade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Julho de 2013

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Mário Nunes: um Homem da Cultura

A gadanha do quarto cavaleiro, que este ano anda muito atarefado, levou-nos de surpresa o Senhor Dr. Mário Nunes. Homem de trato amabilíssimo, deixa uma enorme saudade em todos os que com ele privaram. E deixa Coimbra e a sua cultura mais pobre.
Antes de ser Dr. era já um verdadeiro Senhor, não precisando do título académico para se impor fosse onde fosse. Mas a sua vontade de saber mais levou-o a licenciar-se em História, área em que o seu conhecimento pessoal, fruto de pesquisa aturada e permanente, era de grande dimensão e valia.
Apesar da sua origem humilde, o seu valor pessoal não o deixou ir pelos caminhos tão frequentemente trilhados por quem se faz por si próprio: nem ganhou soberba, nem falsa humildade. Continuou sempre fiel à sua maneira de ser, simpática, colaborante e construtiva.
Foi Vereador da Cultura na Autarquia de Coimbra, onde foi frequentemente objecto de críticas mesquinhas sem conteúdo. A sua preocupação de sempre com a genuína cultura do nosso povo levava muitos profissionais da cultura a menosprezarem a sua actividade autárquica, designando o seu pelouro como sendo da cultura…popular. Nada de mais injusto. Enquanto Vereador, Mário Nunes apoiou as associações culturais e a sua actividade, desde o rancho e a filarmónica ao teatro e à música clássica com o mesmo entusiasmo e dinamismo. E nunca ninguém lhe ouviu dizer que se o povo prefere cultura simples, então que se lhe dê música pimba em vez da clássica.
Amou Coimbra como poucos e provou-o na sua intensa actividade. Desde os numerosos livros dedicados a aspectos específicos da Cidade e do seu património, ao elevadíssimo nº de artigos que deixou publicados por diversos títulos de jornais.
Mas não se ficou pela escrita, embora a ela se tenha dedicado com um entusiasmo absolutamente surpreendente.
Logo na década de oitenta dinamizou a criação do GAAC (Grupo de Arqueologia e Arte do Centro), vindo dessa altura o nosso conhecimento pessoal. Se hoje o conhecimento e a defesa do património nas suas mais diversas formas, se tornou em pedra de toque da atitude cultural, nesses tempos não tão longínquos como isso, era uma posição em que Mário Nunes não tinha assim tantos acompanhantes de jornada. Vêm daí as primeiras ideias de levar o mundo a reconhecer a importância do património da Cidade, designadamente da Alta e Universidade.
A Casa dos Pobres foi outra instituição da Cidade a que Mário Nunes entregou o seu dinamismo, tempo e esforços, sendo secretário da sua Direcção. Mário Nunes tinha também responsabilidades no Clube de Comunicação Social de Coimbra e, nos últimos anos, dedicou-se com afinco à Previdência Portuguesa. Era meu colega nos órgãos sociais da Casa de Infância Elísio de Moura.
Acima de tudo era um amigo com quem dava gosto conversar e partilhar ideias para Coimbra. Faz-nos muita falta e, infelizmente, só nos resta dizer: bem-haja Senhor Dr. Mário Nunes por tudo o que fez e nos deu.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Julho de 2013

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Anarquia financeira





Dominique Strauss Khan emergiu momentaneamente do seu desaparecimento da vida pública para anunciar solenemente, em pleno Senado francês, que “o sistema financeiro internacional não está na origem da crise económico-financeira”. Palavras a ter em conta, porque vindas de alguém que foi ministro das Finanças no seu país e foi, acima de tudo, Director Geral do FMI até há dois anos, altura em que submergiu num mar de escândalos pessoais de vária ordem. DSK, como é conhecido em França, defende que não é o sistema financeiro que está errado, sendo “o comportamento dos que o utilizam o verdadeiro problema”.
Na realidade, todos nos lembramos bem onde começou esta crise em 2008 e foi exactamente no sistema financeiro americano, tendo alastrado rapidamente a todo o mundo, com repercussões muito graves na nossa União Europeia, onde continua a não querer terminar e a causar danos que demorarão décadas a superar.

Que muitos responsáveis pelas instituições financeiras não são de confiar, já se tinha percebido pelos comportamentos demasiado evidentes de banqueiros sem escrúpulos com vencimentos e prémios indecorosos ligados precisamente a objectivos de prazo imediato contrários à saúde do sistema financeiro. A revelação do teor de conversas telefónicas durante o auge da crise em 2008 entre responsáveis de topo de um dos maiores bancos irlandeses, o AIB (Anglo Irish Bank) veio mostrar ao mundo como funciona o sistema financeiro e a forma chocante como trabalham os seus maiores “responsáveis”. O CEO do AIB fugiu da Irlanda para os Estados Unidos onde abriu falência, para não pagar as suas dívidas pessoais ao banco, no montante de 8,5 milhões de euros.
Mas isto não é nada. No processo de resgate do banco que começou por um valor estimado de 7,5 mil milhões de euros, o Estado assegurou garantias de 30 mil milhões de euros que saem obviamente dos bolsos dos contribuintes irlandeses. Como entre cá o Estado deu a mão ao BPN para “evitar um risco sistémico” que na realidade não existia, passando rapidamente de um valor de 400 milhões de euros para quase 8 mil milhões de euros. Para não falar no caso estranho do investidor que conseguiu um empréstimo da CGD de quase mil milhões de euros para comprar acções do BCP que hoje não valem nem cem milhões, tendo a CGD aceite as próprias acções como garantia. O leitor já está mesmo a ver quem assegura o pagamento desta “imparidade”: claro que nós todos, mais cedo ou mais tarde, andando os responsáveis para aí a rir-se.

Poderia encher as páginas deste jornal inteiro com casos semelhantes, só desde 2008, mas penso não valer a pena. Se os banqueiros têm comportamentos generalizados destes é certamente porque o sistema, não só o permite, como ainda acaba por não punir a maior parte dos prevaricadores. DSK terá alguma razão, mas por algum motivo tenta distrair os ouvintes do essencial: o sistema financeiro, particularmente o europeu tal como está não serve, os responsáveis políticos não são capazes de o consertar e são os contribuintes de todos os países que pagam tudo isto, à custa do seu modo de vida.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Julho de 2013

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Um futuro possível

A inscrição da “Universidade de Coimbra-Alta e Sofia” na lista do Património Mundial da Humanidade concretizada pela Unesco há dois dias não vem acrescentar nada ao passado da Universidade de Coimbra. Mas vem sublinhar e reconhecer, a nível mundial, algo que por cá já todos nós sabíamos: o valor e importância que a Universidade de Coimbra tem, não só a nível de património construído, mas também pelo papel notável que desempenhou na História de Portugal e da Humanidade. E sabe certamente bem a todos os que tornaram esta classificação uma realidade e muitos foram, a nível técnico, a nível político e a nível universitário: estão todos de parabéns e a Cidade deve-lhes o reconhecimento.
Mas esta classificação deve ser um ponto de partida. É certo que a Unesco não vai trazer directamente dinheiro para Coimbra. Mas o reconhecimento da Universidade como património mundial vai potenciar de forma decisiva o movimento de turistas que irão querer conhecer pessoalmente este “Bem”. E esta circunstância coloca-nos perante o início de novo período para a Cidade, sendo necessário definir uma estratégia para o seu desenvolvimento futuro, que tenha esta nova situação em devida conta.
Vários elementos programáticos sectoriais estão já estudados e aprovados ou em vias de aprovação, tornando-se agora necessária uma visão e uma estratégia global. As Áreas de Reabilitação Urbana já aprovadas e em início de implementação, o Plano Estratégico da Cidade e o Plano Director Municipal revisto juntam-se a regulamentos específicos para a realização de obras em edifícios situados na zona de protecção do “Bem” agora classificado. Numa cidade que tem um património com esta importância não mais se pode permitir que a “cultura”, o “turismo” e mesmo a “reabilitação” do centro histórico tenham caminhos separados vagamente ligados num tronco comum. Estas áreas envolvem saberes próprios e específicos existentes a nível autárquico que devem ser aproveitados, mas que politicamente devem ser unidos para que daqui a vinte anos os cidadãos possam dizer que a classificação da Unesco não só reconheceu algo que já existia, mas que potenciou toda uma recuperação do Centro Histórico, trazendo nova vida a nível de moradores, de comércio e de actividades económicas ligadas ao turismo e à cultura que criaram emprego gerando enorme riqueza para Coimbra.
Uma estreita ligação entre a Autarquia e a Universidade qu

e já existe actualmente, é necessária e crucial, não só para a gestão do “Bem” classificado, mas para a construção comum do futuro de toda a Cidade, em volta da sua velha escola, nunca esquecendo que uma urbe não pode ser um museu, mas que existiu, existe e deverá existir em função das suas gentes. O estado de degradação absolutamente lamentável a que se deixou chegar o património edificado de uma parte constituinte do bem classificado, a Rua da Sofia, vai exigir esforços comuns não só a nível de estudos mas também, e sobretudo, no encontrar de soluções financeiras para a recuperação sustentável dos seus Colégios.
 A inclusão da Rua da Sofia na candidatura faz todo o sentido. A sua construção teve precisamente como justificação a instalação dos Colégios da Universidade, por volta de 1535, aquando da vinda definitiva da Universidade para Coimbra decidida por D. João III. O êxito desta classificação passará muito pelo que acontecer na Rua da Sofia daqui para a frente e da forma como potenciará, ou não, a regeneração urbana de toda a Baixa.


Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Junho de 2013

segunda-feira, 17 de junho de 2013

1984 em 2013

A queda do muro de Berlim em Novembro de 1989 sinalizou o fim dos regimes comunistas e da Guerra Fria que, desde o fim da II Grande Guerra em 1945, manteve a sorte do mundo num fio da navalha.
Acabava também um mundo bi-polar em que duas grandes potências disputavam a supremacia militar, mas também económica e política. Foi aliás a evolução económica do bloco ocidental que não parou de crescer desde os anos cinquenta de forma exponencial a ditar aquele resultado, por exaustão do bloco de Leste que orientava todas as suas energias para a manutenção do equilíbrio militar, o que a certa altura se tornou manifestamente impossível.
O mundo acordou subitamente diferente, sem a ameaça permanente de um conflito militar global, mas com uma única superpotência. Não passaram muitos anos sem que novas ameaças surgissem.
Em Setembro de 2001 os Estados Unidos foram feridos no seu orgulho de líderes quando o seu território foi pela primeira vez na História palco de um autêntico acto de guerra. A reacção brutal e violenta que se seguiu e que se assemelhou à resposta de um grande animal mordido no pé não causou surpresa, a não ser pela falta de objectividade e até de eficácia, estando ainda hoje o Afeganistão e o Iraque em situação de guerra latente na sequência das intervenções americanas.
Em 2008 surgiu finalmente uma crise económica e financeira a nível global diferente de todas as anteriores, quer pela sua intensidade, quer pela duração. É hoje reconhecido que a finança mundial se aventurou por caminhos antes impensáveis, com consequências desastrosas no mundo económico através da formação de bolhas especulativas que rebentaram nas mãos de quem menos supunha que existissem sequer.
Muitos países se deixaram ir igualmente no canto da sereia e endividaram-se de tal forma que entregaram a própria soberania para tentarem segurar-se num mundo cujas regras são hoje ditadas pelos mercados globais.
Mas outra consequência do fim da Guerra Fria se foi desenvolvendo de forma larvar, tendo surgido há poucos dias à luz do dia de forma impressionante, embora se pense que é apenas a ponta do iceberg. Se até 1989 os diversos Serviços Secretos desenvolviam a sua actividade de uma forma controlada, pelo equilíbrio de forças e a existência de “regras” assumidas, como aliás John Le Carré bem descreveu nos seus livros, o desaparecimento de um dos lados deixou à solta o que ficou sozinho. O seu adversário passou a ser o mundo inteiro, como se sabe agora com a divulgação na imprensa da acção da NSA, agência de segurança nacional americana.
Basicamente, os cidadãos de todo o mundo passaram a ser objecto de espionagem sistemática por parte dos americanos. Eu, o leitor e toda a gente que o leitor conhece e não conhece temos actualmente as chamadas telefónicas por telemóvel, por skype, VOIP, etc., as mensagens electrónicas (mail), as conversas e mensagens nas redes sociais, fotografias e tudo o mais que possa imaginar vasculhadas sistematicamente pelos serviço secretos americanos. Para cúmulo, a NSA nem faz todo o trabalho sozinha, por manifesta dificuldade tecnológica, contratando para esse serviço diversas empresas privadas, como as de telecomunicações.
Estamos em 2013 e não em 1984 e temos que reconhecer com tristeza que o único erro de George Orwell foi de data e não de substância.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Junho de 2013

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Cidade virada ao futuro



A afirmação de que a competição internacional se faz hoje em dia pelas cidades tornou-se um lugar-comum, pela sua evidência. Muito mais num espaço económico aberto como é a Europa. Se tal é evidente, já não o é tanto o caminho para que uma cidade média localizada num país periférico, como é o caso de Coimbra, consiga ser competitiva a nível internacional.
Mas há caminhos para lá chegar. Um deles passa pela utilização da sua identidade que, no caso da nossa Cidade, é fortíssima e deve ser assumida sem complexos e com a maior confiança e intensidade. Essa identidade advém de uma História antiquíssima, que vem de antes da própria Nacionalidade e que é suficientemente conhecida até aos tempos da cultura moçárabe e do célebre D. Sesnando. A História de Coimbra é um património imaterial que pode e deve enformar toda a acção para a afirmação da nossa Cidade.
O Turismo é a atividade económica mais óbvia que decorre da utilização da História como vantagem comparativa. Mas não se pode ficar por uma recepção simpática dos estrangeiros que nos visitam. Aliar a Cultura ao Turismo é essencial e tal ainda não foi feito entre nós, não se percebendo como uma Autarquia moderna não coloca essas duas preocupações no mesmo pelouro. O turismo cultural é hoje uma actividade económica em expansão em toda a Europa, onde as férias prolongadas praticamente estão em extinção substituídas por viagens de curta/média duração muito mais abertas a um conhecimento aprofundado dos locais que se visitam.
A recuperação dos Centros Históricos é outra pedra de toque na afirmação da identidade das Cidades competitivas. Coimbra está finalmente no bom caminho, através da aprovação dos programas estratégicos das suas áreas de reabilitação urbana e da mais que provável aprovação da candidatura a património mundial reconhecido pela Unesco. Assim os responsáveis autárquicos e universitários o assumam por completo, o que inclui a assunção das verbas previstas para os próximos quinze anos e uma colaboração eficaz sem complexos nem guerrinhas de protagonismos balofos.
A “venda” internacional de Coimbra deve abranger ainda o recente e muito significativo surto de aparecimento e desenvolvimento de empresas de base tecnológica com grande sucesso, saídas da Universidade. Portugal dispõe hoje em dia de um instrumento poderoso e muito competente de atracção de investimentos estrangeiros e de apoio da nossa economia lá fora, que é o AICEP. Uma Cidade como Coimbra não pode deixar de usar e abusar dessa ferramenta, tal como o fazem as empresas para se internacionalizarem.
Coimbra está à porta de um futuro brilhante. Assim os responsáveis dos partidos políticos o percebam e sejam capazes de entrar por essa porta porque, para o bem e para o mal, é por eles que em democracia passam essas opções.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Junho de 2013

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Coimbra no seu melhor (de novo)


Se mais uma vez utilizo este título nesta minha crónica: “Coimbra no seu melhor”, é por ter boas razões para o fazer. Na realidade, a nossa Cidade tem uma característica bem portuguesa, que por razões históricas é mais pronunciada entre nós e que se revela numa intensa capacidade de dizer mal de tudo e de todos. Concedo até que essa atitude se deva a uma vontade subliminar de ouvir em resposta que não, que em Coimbra até há isto ou aquilo de bom. Mas, aqui entre nós, essa é uma atitude bem “coimbrinha” que deve ser combatida, porque desvirtua a realidade actual da nossa Cidade. E, para dificuldades, já nos chegam as provocadas pelo bicefalismo territorial do país, que esmaga a zona Centro em que nos integramos e de que Coimbra é claramente a cidade principal.
Por estas razões, o exercício activo da cidadania obriga-me a mostrar e divulgar aquilo que sinto ser o que Coimbra tem de melhor para oferecer. E não haverá textos que me dêem mais prazer escrever do que estes.
Venho hoje referir, de novo, a excelente Orquestra Clássica do Centro. Vou repetir-me em parte, porque já aqui elogiei o trabalho de todos os que dão corpo àquele projecto que deve ser acarinhado por todos.
A existência continuada em Coimbra de uma formação orquestral de música clássica de qualidade indiscutível foi um sonho de muitos ao longo de muitos anos. É hoje uma realidade incontestável, afirmando-se com uma qualidade reconhecida, apesar das dificuldades financeiras de sempre.
Tendo a honra de pertencer ao seu Conselho Cultural, partilho aquilo que o Eng. Gonçalo Quadros que preside a este Conselho escreveu: “A Cultura é alimento essencial para uma sociedade que se quer assente em conhecimento (…) a nossa região terá dificuldade em construir conhecimento, em desenvolver uma sociedade e uma economia nele baseada sem uma aposta continuada que permita desenvolver um contexto cultural rico e estimulante-que é também cultura.”
O protocolo recentemente assinado pela OCC com a EFAPEL é uma prova de também as empresas vêem na Orquestra Clássica do Centro um meio de se prestigiarem por se associarem a actividades culturais de qualidade.
Estes protocolos celebrados pela OCC com diversas entidades não são letra morta, pelo contrário têm dado origem às mais diversas iniciativas como, por exemplo a iniciativa que na próxima quarta feira, dia 5 de Junho, terá lugar no Café Santa Cruz, resultado da parceria da OCC com aquele Café emblemático da nossa Cidade que este celebra os noventa anos da sua existência. Aí teremos a oportunidade de poder falar sobe a “(Re)Construção da Cidade com Manuel Castelo Branco, Cândida Almeida, José Mário Martins e Marcelo Nuno Pereira e ouvir uma interpretação do Bolero de Ravel pelo Quarteto de cordas da OCC.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Junho de 2013

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Modernidade centenária

Faz esta semana cem anos que a Sagração da Primavera foi apresentada ao público pela primeira vez. Na noite de 29 de Maio de 1913, o Teatro dos Campos Elísios em Paris foi palco de um acontecimento que ficaria nos anais da música. A obra de Stravinsky, dirigida por Pierre Monteux, com os Ballets Russos de Diaghilev e a coreografia de Nijinski fez a sua entrada estrondosa na História da Música, provocando um autêntico tumulto entre a assistência que, da forma mais ruidosa possível, manifestou o seu espanto e desagrado perante o que ouvia e observava.
Neste nosso tempo em que podemos visitar todo o passado cultural, em que toda a informação está ao nosso dispor através de uma tecla do computador, é difícil imaginar uma sala a reagir daquela forma à apresentação de uma nova obra musical que dura cerca de meia hora, não mais. Mas estamos também a viver uma época em que o simples facto de uma estreia juntar três vultos da Cultura da dimensão de Stravinsky, Nijinski e Diaghilev é algo de verdadeiramente extraordinário, já que hoje a novidade se cinge cada vez mais ao que sucede na economia e nas finanças e o reconhecimento das próprias obras de arte dificilmente se eleva do seu valor monetário.
Stravinsky foi buscar inspiração às velhas histórias russas pagãs e criou uma obra que não é apenas um ballet, nem um concerto, mas algo que é isso tudo em simultâneo e que, acima de tudo constitui uma experiência inesquecível para todos os que com ela contactam pela primeira vez.
Apesar do escândalo inicial, a Sagração da Primavera entrou no rol das músicas mais ouvidas e as suas apresentações têm-se sucedido por todo o mundo ao longo deste século, embora muitas das coreografias continuem a chocar espíritos menos preparados. Na sua Rússia natal, no entanto, Stravinsky só em 1965 viu o famoso Bolchoï integrar a Sagração da Primavera no seu repertório; o poder soviético só cinquenta anos depois da sua estreia permitiu ao povo russo conhecer a obra prima do seu conterrâneo.
Curiosamente, a obra foi divulgada pelo mundo inteiro por um meio imprevisível, o cinema animado para crianças. De facto, Walt Disney integrou a Sagração no fantástico filme Fantasia que desde 1939 inicia na música gerações e gerações de crianças, tornando-a assim familiar a milhões de pessoas.
Durante boa parte do século vinte discutiu-se o carácter intrinsecamente revolucionário da Sagração da Primavera. Composta num tempo em que os caminhos inovadores da música pareciam passar obrigatoriamente pela novidade da atonalidade, à composição de Stravinsky era negado esse carácter, por seguir a tonalidade, atribuindo-se a sua capacidade de chocar aos seus ritmos avassaladores que deixam os ouvintes sem respiração. Entretanto o tempo passou e, seja porque a formação musical não evoluiu o necessário, seja porque as manifestações artísticas necessitam de adesão afectiva das audiências, para além da pura contemplação racional, a música atonal praticamente saiu de cena e a Sagração da Primavera cá continua a impressionar pela sua modernidade, cem anos depois.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Maio de 2013

segunda-feira, 20 de maio de 2013

De Coimbra para o mundo



Em Julho de 1969 realizou-se em Coimbra, nos velhos HUC, o primeiro transplante de rim, com dador vivo. Em 1980 foi feito o primeiro transplante com rim de cadáver em Coimbra.
A partir de 1992 iniciou-se em Coimbra um programa continuado de transplantes de fígado, tendo o primeiro transplante de fígado pediátrico sido feito em 1994, o que aconteceu em Portugal pela primeira vez. Em 1995 fez –se em Coimbra, pela primeira vez em todo o mundo, um transplante sequencial com fígado de doente com paramiloidose. Em 1996 iniciaram-se os transplantes de fígado com recurso a bipartições e em 1997 realizou-se nos HUC de Coimbra outra operação inédita em todo o mundo: triplo transplante hepático a partir de um único enxerto de cadáver. Outros exemplos de sucessos em operações de transplantes de fígado originais se fizeram em Coimbra depois disso, como transplante de um lobo de fígado de mãe para filho.
Um amigo meu, professor da Fac. de Medicina de Coimbra costuma dizer que, hoje em dia, todas as cirurgias estão mais ou menos conhecidas e são possíveis para bons cirurgiões. Mas há uma que sobreleva de todas as outras pela sua complexidade e dificuldade técnica, que é a do fígado. E que só um verdadeiro génio da cirurgia pode dominar completamente as técnicas de operações nesse órgão.
Pois bem. Há algo que liga todas aquelas cirurgias a que me referi acima. Todas foram feitas em Coimbra, nos HUC mas, essencialmente, devem-se ao mesmo Homem: Alexandre Linhares Furtado que faz agora dez anos se reformou dos HUC. Não há rigorosamente mais ninguém em Coimbra que tenha atingido o estatuto de um dos melhores do mundo na sua área, para além do Prof. Linhares Furtado.
Ao contrário do que se poderia pensar, o Prof. Furtado não nasceu num meio ligado à Medicina ou à Ciência, nem teve a sua vida académica facilitada pelo nascimento, pelo que a ascensão ao cume da medicina mundial se deveu única e exclusivamente à sua inteligência, capacidade de trabalho e vontade indómita de atingir a excelência.
Desde a Fajã de Baixo no concelho de Ponta Delgada em S. Miguel, Açores, o Prof. Furtado ultrapassou todas as dificuldades, invejas, conservadorismos estéreis mas poderosos e conseguiu colocar a medicina portuguesa num patamar de qualidade nunca antes visto e reconhecido no mundo inteiro. Ao contrário do que infelizmente por vezes se observa por cá, quando o Prof. Furtado se desloca a um fórum de medicina em qualquer parte do mundo, é referenciado como um dos melhores médicos e assim tratado.
Não se pense que os êxitos profissionais e científicos lhe alteraram a maneira simples de ser. E também não lhe diminuíram o espírito curioso e o tempo para ser um Homem culto e mesmo artista de relevo, como o provam os quadros da sua autoria, actividade que o ajudará a manter o equilíbrio interior, mesmo ou principalmente quando a cirurgia lhe exige uma utilização extrema e esgotante de todas as capacidades intelectuais e físicas.
Linhares Furtado é ainda um melómano atento e conhecedor. Não só conhece a música dita clássica a fundo, como não lhe escapam os pormenores das diferentes interpretações e as ligações das diferentes composições com a vida de quem as compôs e respectivas circunstâncias sociais, políticas e económicas.
Costuma classificar-se Coimbra com capital da saúde e tal não andará longe da verdade em vários aspectos. Mas como em todas actividades humanas, o importante são as pessoas. E são as pessoas de excepção como o Prof. Linhares Furtado que, pela sua diferença, marcam definitivamente uma actividade e mesmo a cidade em que trabalham, colocando-lhes o selo da excelência reconhecida não só em Portugal, mas em todo o mundo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Maio de 2013

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Realidades e esperanças



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Estamos todos recordados das razões que levaram o governo anterior a pedir a intervenção exterior, assinando o famoso “Memorando de Entendimento” com a Troika. A situação das contas públicas em 2011 era de tal ordem que não nos conseguíamos já financiar nos mercados normais: ultrapassando a famosa barreira dos 7%, os juros a que os mercados nos emprestavam dinheiro subiam pavorosamente acima dos dez, onze por cento, o que praticamente inviabilizava o financiamento do país. Foi assim que tivemos que prescindir da nossa soberania e nos obrigámos a cumprir as regras impostas pelo exterior para obtermos o financiamento necessário. O último leilão de maturidade ligeiramente acima dos dez anos, antes da vinda da Troika, foi em Setembro de 2010 com uma taxa de 5,97%. Recorda-se que os leilões realizados de dívida a longo prazo em Novembro de 2010 e em Janeiro de 2011 implicaram taxas de juro superiores a 6,7%.
Pela primeira vez desde então, na semana passada Portugal regressou aos mercados para emitir dívida a longo prazo. Colocou três mil milhões de euros a dez anos e meio, a uma taxa de 5,6%, tendo-se registado uma procura superior a 3 vezes o valor colocado. Isto é, pela primeira vez desde o memorando de entendimento, Portugal financiou-se por si próprio, o que revela uma nova confiança dos investidores no nosso país. Claro que a taxa é muito superior aos 3,2 da troika, o que significa que ainda há um longo e árduo caminho a percorrer, mas este valor veio junto com a perda da nossa soberania, estando condicionado às avaliações da troika. Neste momento aguardamos pela aprovação da sétima avaliação que está difícil de surgir, enquanto se discute se as medidas exigidas pela troika ultrapassam mesmo as fronteiras da legitimidade constitucional.
Apesar de tudo, as notícias da colocação da dívida pública são boas porque mostram que os pesados sacrifícios dos portugueses para recuperarem a sua soberania como povo de uma nação independente e poderem livremente escolher o seu caminho, estão a caminho de terem um fim.
Os comentários a esta colocação foram os mais diversos e surpreendentes. Desde aquela velha direita muito inteligente que temos vir acusar o Governo de continuar a endividar o país até à esquerda do quanto pior melhor a garantir que mesmo assim seremos obrigados a segundo resgate, ouvimos de tudo. Nem uns nem outros percebem (ou não querem que se perceba) que são como os corredores de maratona que desistem ao quilómetro 41. Até mesmo um deputado do PSD, por puro oportunismo político, veio garantir que terminou o tempo político do ministro das Finanças, o que aliás diz muito dos critérios de escolha dos deputados.
Após esta ida aos mercados e se a sétima avaliação da Troika for favorável, cumpriremos as condições para aplicação do programa OMT "Outright Monetary Transactions" anunciado em Setembro passado pelo BCE, como já sucede hoje com a Irlanda. Tal possibilitaria uma descida das taxas, dando oportunidade a uma melhoria das condições da dívida pública sem a tão falada renegociação e consequente transformação de Portugal em pária da comunidade internacional. Assim a UE cumpra o seu papel tal como os portugueses estão penosamente a cumprir o seu com os sacrifícios que lhes foram e estão a ser impostos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 de Maio de 2013