Atrás da Serra do Açor, bem perto da Serra da
Estrela, fica uma aldeia que, de entre todas as aldeias perdidas por aquelas
serranias é aquela que, embora o seu nome seja Aldeia de S. Francisco de Assis,
é conhecida apenas como “a Aldeia”. Também por lá nesta altura do ano em que o
ameno Outono está a acabar para dar lugar aos frios que se aproximam trazidos
pelo solstício de Inverno, as folhas das árvores características como os
carvalhos e os castanheiros foram caindo, restando apenas algumas que os ventos
facilmente arrancarão e levarão para longe.
Terras que foram de vida difícil, aquelas. Longe de
tudo, ainda hoje as estradas que lá chegam, embora com bons pavimentos em vez
da terra de há não muitos anos, têm tantas curvas que desencorajam as viagens
de passeio por lá, ainda que as paisagens valham bem o sacrifício.
Duas circunstâncias moldaram a Aldeia de hoje: o
volfrâmio e a emigração.
Durante a primeira parte do século XX, a descoberta
de que o solo daquelas serras escondia quantidades imensas de um mineral
precioso para a metalurgia daqueles tempos, particularmente a ligada ao fabrico
de armamento pesado, atraiu a indústria da mineração e o interesse de muitos
comerciantes clandestinos que ali vinham comprar o precioso minério. Vários
escritores deixaram para a posteridade as histórias ligadas ao volfrâmio nas
décadas de trinta e quarenta do século passado, lembrando-me de dois livros em
particular, “Volfrâmio” de Aquilino Ribeiro e “Minas de S. Francisco” de Fernando
Namora.
Ao volfrâmio se deveu a capacidade financeira para mandar os filhos
estudar para Coimbra ou Lisboa, devendo a Aldeia ser, de todas as da região,
aquela que mais gente tem com cursos superiores, nascida nas décadas de
quarenta e cinquenta, quando anteriormente era praticamente analfabeta. A
partir dos anos quarenta, primeiro para as américas e depois principalmente para
França, a emigração marcou toda a região. Hoje, consequência daqueles dois
factores, a Aldeia está quase deserta. Quem foi para fora estudar, não voltou,
ficando a trabalhar onde se formou. Os que emigraram, ainda fizeram casas na
Aldeia mas na sua maioria não regressou definitivamente, porque os filhos e netos
já não são portugueses e a Aldeia não lhes diz nada, a não ser como curiosidade
familiar histórica.
A Aldeia também é minha, já que lá nasceu minha
Mãe, numa família de sete irmãos, sendo a mais nova das quatro raparigas. Tenho
assim conhecimento de muito do que se passou naquelas terras, já que nasci nos
anos cinquenta, sendo a minha geração aquela que ouviu directamente dos
próprios intervenientes as histórias hoje estranhas e mesmo mirabolantes
ligadas ao volfrâmio, mas também à pobreza e extrema dificuldade da vida por
aquelas serras ainda há menos de cem anos.
Conheço também muito bem as características
próprias dos beirões. Tendo nascido naquelas terras longe de tudo, todos os elementos
da Família de minha Mãe eram pessoas com uma educação e uma finura de trato que
hoje causariam inveja a muitas pessoas urbanas e com mais instrução. Mas que
não haja enganos. Por baixo daquela educação e até alguma humildade no trato,
todos os elementos da Família, homens e mulheres, escondiam uma personalidade fortíssima
aliada a uma percepção arguta das situações. Sei que estas características não
eram só dos meus Avós e seus filhos, mas que eram partilhadas por grande parte
das famílias da Aldeia, definindo portanto o carácter dos habitantes antigos
daquelas serras.
O fim do Outono leva as últimas folhas das árvores,
as mais resistentes.
E, há poucos dias, levou também a última filha dos meus
Avós da Aldeia, a minha Tia Teresa Escolástica, com 96 anos. Como os outros
irmãos e irmãs, possuía, talvez ainda de forma mais marcada e que recordo com
ternura, uma extrema gentileza, sensibilidade e permanente vontade de ajudar os
outros.
Nunca, ou muito raramente, abordei questões
pessoais nestas páginas. Confio que os leitores me perdoarão este desvio e
certamente perceberão o significado pessoal do desaparecimento de toda uma
geração para mim notável, mais ainda do que o apagar sereno de uma velhinha de
quase cem anos de idade.
Nota: Fotos retiradas de https://www.facebook.com/saofrancisco.assis.9?fref=ts, agradecendo ao Marco Gil a publicação das fotos da Aldeia