segunda-feira, 10 de julho de 2017

A cultura em tempos de transição



Se há algo que caracteriza os tempos que estamos a viver é uma extraordinária diversidade de experiências, de modos de sentir o mundo e mesmo de viver que existem de forma simultânea. Isto verifica-se em todos os aspectos, desde a política, à organização social, à religião e mesmo na organização do trabalho e da economia, com as máquinas a entrar decisivamente no que dantes era apenas humano.
É hoje claro, ao contrário de teorias que foram moda há poucas décadas, que o mundo está a passar por uma fase transitória sendo que, se conhecemos o que se passou até agora, não é ainda perceptível o que virá a seguir que poderá depender não de uma evolução contínua, mas de um pequeno facto disruptivo com consequências gigantescas. O que já é certo é que o tão celebrado “Fim da História” de Fukuyama foi tudo menos uma realidade, existindo hoje um mundo multipolar com ressurgimentos de nacionalismos diversos, com novas facetas de radicalismos religiosos e mesmo um país gigantesco com prática completamente capitalista sob direcção férrea de um partido comunista, a China.
A Cultura não foge a esta situação de diversidade algo anárquica. Sente-se que hoje não aparece nada de verdadeiramente original, assistindo-se a um estagnar da evolução artística. Por outro lado, como a tecnologia e a globalização colocaram o mundo inteiro ao dispor de qualquer cidadão, a riqueza de tudo quanto foi produzido pela humanidade ao longo da sua História está de certa forma ao dispor de todos, o que se transforma numa oferta gigantesca e impossível de ser totalmente absorvida por qualquer pessoa.
Será que aquilo que os actuais meios oferecem continua a ser cultura? Há algumas décadas T.S. Elliot via a cultura como caminhando para um fim através de uma decadência contínua que acompanharia o fim das elites necessárias à existência da “alta cultura”. Já George Steiner colocou em causa a simples possibilidade da cultura, depois das mortandades das duas guerras mundiais e, em particular, do extermínio gratuito de seis milhões de judeus do Holocausto. É o próprio conceito de Cultura que parece estar igualmente em fase de transição para outra coisa que não tem muito a ver com aquilo que vem de há séculos.

Nos nossos dias, mais parece que a cultura foi substituída pelo espectáculo. A produção artística foi tomada pela publicidade e pela organização de apresentações públicas de massa. Só interessa aquilo que vende, que dá rendimento imediato, logo que responde às aspirações e aos desejos das multidões que acorrem em uníssono a aplaudir os seus ídolos fabricados pelas máquinas produtoras.
Não se pense que me refiro apenas à chamada música popular, embora essa seja a manifestação artística que hoje em dia representa melhor o fenómeno da massificação e da completa ausência da essência da arte que é a beleza, tendo nos últimos anos enveredado por um caminho autofágico de substituição permanente de obras e artistas com uma velocidade estonteante. Também na literatura se verifica o mesmo fenómeno. Nunca se publicou tanto entre nós e nunca houve autores com edições tão gigantescas mas que de obras literárias só têm a forma exterior e o facto de terem letras no interior. A pintura, a partir das estéticas inovadoras dos primeiros decénios do século XX, entrou por caminhos estranhos à definição de arte, alimentada por “especialistas” que com isso ganham muito dinheiro. Na realidade como a maioria das pessoas não são capazes de detectar o mínimo de qualidade artística nas obras de autores incensados, torna-se necessário haver elites pretensamente conhecedoras que iluminem os espíritos e garantam que aquelas obras têm valor. E, como se confunde valor com o custo pelo qual são transacionadas, vira-se a essência da arte ao contrário, através da sua mercantilização e da vitória do efémero, banal e tantas vezes até grotesco sobre o labor solitário e inspirado de tantos artistas considerados menores apenas por não entrarem no mercado absurdo do mau gosto. O cinema tornou-se hoje em grande parte uma amálgama infantilizada de efeitos visuais, violência e barulho que não tem nada a ver com aquilo a que ainda não há muitos anos se chamava a sétima arte. A música dita erudita teve igualmente uma evolução que quase a liquidou mas que, mercê talvez das suas características intrínsecas, nos permite hoje viver quase num paraíso, tal é a oferta e de tão grande qualidade. Os caminhos de composição por que enveredou no século XX até à chamada música concreta desembocaram num beco sem saída, mas a evolução tecnológica colocou à disposição de todos não só as obras maravilhosas de imensos compositores durante séculos, incluindo contemporâneos, mas também as interpretações mais diversas dessas mesmas obras.
Na sequência de T.S. Elliot há quem diga que, nos dias de hoje, a cultura já morreu, como acontece com Mario Vargas Llosa. De facto, o espectáculo tomou conta de boa parte do espaço público, relegando a cultura para o interior de salas, sejam das nossas casas, sejam de museus ou de auditórios. Mas, curiosamente, nunca como hoje houve tão grande afluência aos museus. Observar o resultado do trabalho de grandes artistas como a Pietà de Miguel Ângelo ou a Guernica de Picasso é muito diferente de olhar para a sanita provocadora de Marcel Duchamp ou as obras de Damien Hirst e finalmente, cada vez mais pessoas percebem isso mesmo, e acorrem aos museus de “arte antiga” como nunca.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

“Doces águas e claras do Mondego, Doce repouso de minha lembrança”



“Doces águas e claras do Mondego,
Doce repouso de minha lembrança”
Foi através de referências às águas do Mondego que Camões fixou na Arte a sua passagem por Coimbra. E tal não aconteceu por acaso. A relação de Coimbra com o Mondego é tão antiga que a cidade deve a sua existência ao próprio rio. Recuando até tempos tão antigos como o dos Fenícios, o rio Mondego era navegado desde a sua foz até precisamente ao ponto onde as montanhas começavam e o limite da navegação se situava. Naquele primeiro monte se veio a situar uma pequena povoação que cresceu até os romanos lhe reconhecerem a importância estratégica e lhe chamarem Aeminium.
Passaram séculos e civilizações várias até que no início do século XII um jovem chamado Afonso Henriques fez dela a capital do seu reino em construção, que haveria de ser Portugal. Coimbra é hoje a cidade que todos conhecemos, herdeira deste passado e do muito mais que desde então se passou, incluindo a Universidade que se transformou no seu símbolo universal. E se a cidade ao rio se deve, é notória a difícil relação que com ele teve durante muitos anos, mais parecendo que lhe virava as costas, como ainda hoje é visível em boa parte das suas margens no interior da área urbana. Aquele rio a que os conimbricenses chamavam carinhosamente “basófias”, só foi domado nos anos setenta/oitenta do século XX, com as obras do “Aproveitamento Hidráulico do Mondego” que incluíram o sistema constituído pelas barragens Aguieira/Fronhas como instrumento de regulação de caudais, para além da produção eléctrica.
Apesar disso, de vez em quando ainda lá vêm cheias, o que teoricamente não deveria acontecer. A de 2001 foi tão intensa que, para além dos prejuízos nas margens da cidade, danificou ou destruiu mesmo grande parte das obras do Baixo Mondego, para além dos prejuízos que causou à produção agrícola. Mais recentemente, todos nos recordamos das cheias dos últimos anos que danificaram gravemente as obras de aproveitamento das margens, o Parque Verde tão solicitado pela população e inundaram também o Mosteiro de S.ta Clara-a-Velha. As consequências da última cheia, em Janeiro de 2016, são ainda visíveis pelos danos nas chamadas “docas” do Parque Verde que não voltaram a funcionar desde então. A situação foi tão grave que o Governo encomendou um relatório técnico à Ordem dos Engenheiros para se determinar as causas do sucedido e apontar soluções para evitar repetições no futuro. Sendo o relatório chamado “Caracterização das condições de escoamento do rio Mondego que deram origem às inundações em Coimbra em Janeiro de 2016” datado de Setembro de 2016, só foi apresentado publicamente em Janeiro de 2017, faz agora portanto, seis meses. O relatório apresenta inequivocamente as condições de exploração das infra-estruturas existentes, leia-se barragens, como condicionante principal da ocorrência de cheias no Mondego. É, aliás, muito fácil perceber porquê. Não havendo uma estrutura que, a nível superior, concilie os diversos interesses contraditórios em jogo, muito difícil será evitar que se verifiquem novas situações de cheia em Coimbra. Sendo a EDP responsável pela exploração da barragem da Aguieira e sendo o seu objectivo a maximização da produção eléctrica, muito dificilmente a APA (Agência Portuguesa do Ambiente) conseguirá que os níveis da barragem da Aguieira estejam permanentemente dentro dos parâmetros de segurança.
O empreendimento do “Aproveitamento Hidráulico do Mondego” foi uma das obras mais marcantes de toda a região Centro, nas últimas décadas. Como os excelentes técnicos que nele trabalharam durante anos sabem, após a conclusão das obras deveria ter sido constituída uma Entidade com capacidade de gestão e exploração dos Planos de aproveitamento hídricos de fins múltiplos, como sucedeu, por exemplo, no Alqueva com a EDIA, não abandonando uma estrutura tão complexa e valiosa aos diversos interesses próprios das entidades de exploração. As conclusões de um relatório tão importante não podem ser esquecidas, sendo necessário saber exactamente o que está a ser feito, seis meses depois da sua apresentação e um ano após a sua elaboração. A relação da cidade de Coimbra e da sua região com o rio Mondego é demasiado importante para que fique tudo no esquecimento de uma qualquer gaveta.
Não se trata apenas de evitar que Coimbra volte a ser inundada e que as suas margens estejam permanentemente à mercê da Natureza. É todo o território banhado pelo Mondego nos seus troços designados médio e baixo Mondego que exige um acompanhamento constante e conhecedor dos múltiplos factores em jogo: técnicos, económicos e sociais.
Para que seja, como Camões também cantou:
“Vão as serenas águas
do Mondego descendo
mansamente, que até o mar não param;”

segunda-feira, 26 de junho de 2017

A Beira Interior ainda é Portugal?



Esta é a crónica que eu desejaria nunca ter de escrever. Como quem costuma ler estas linhas sabe, considero-me um Beirão, antes de qualquer outra coisa. As minhas raízes estão na Sertã e na Aldeia de S. Francisco de Assis, bem perto da Pampilhosa da Serra. O que significa algum conhecimento daquela zona e sobretudo, uma grande proximidade afectiva. Costumo dizer que quando ando por lá e sinto o cheiro a carqueja e esteva é que me considero verdadeiramente em casa.
Por essa razão fiquei e continuo chocado com os acontecimentos destes dias em que uma tragédia sem nome se abateu sobre aqueles beirões que vivem onde querem, muitas vezes com sacrifícios que os citadinos não compreendem e que pagam os seus impostos ao Estado como toda a gente de bem, tendo direito a serem considerados como cidadãos por inteiro, começando pela sua segurança. E não foi isso que aconteceu, tendo morrido de forma incompreensível sessenta e quatro pessoas e ficado feridas mais de duzentas, assim por extenso, porque as pessoas não são números.
De tudo o que se viu, ouviu e leu, há uma evidência que não é possível esconder nem podemos ignorar, por mais areia que nos atirem para os olhos, com as eternas discussões sobre a origem do incêndio, seja um raio de trovoada, seja mão criminosa, o que não altera em nada o que se seguiu. E o que é indiscutível é que aconteceu a mais completa desorganização que imaginar se possa numa situação de calamidade. E essa desorganização tem, evidentemente, causas que não têm a ver com política florestal e questões de ordenamento do território. Isso é outro assunto.
A descoordenação, que mais se pareceu com um caos em que tudo o que podia correr mal correu mal, para além da notória incapacidade organizacional da própria Protecção Civil, teve a ver primariamente com a falta de comunicações entre os Bombeiros, GNR e Protecção Civil. Quando não existem comunicações entre comando central, comandos locais e forças distribuídas no terreno não há qualquer possibilidade de coordenação.
É por isso que perguntar porque é que se fechou o IC8 e se mantiveram abertas estradas como a 236-1 é uma pergunta descabida, face à situação de completa falta de informação por parte dos agentes no terreno. Essa informação está a cargo de um sistema de comunicações chamado SIRESP (sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal) que, a exemplo do sucedido em várias outras situações de emergência anteriores, voltou a falhar. E não funcionou durante uma catorze horas, deixando comando e operacionais sem contacto uns com os outros. Quando se repuseram as comunicações na EN 236-1 já jaziam queimadas 47 pessoas. Falta dizer que o SIRESP custou ao Estado português quase 500 milhões de euros.

O primeiro-ministro fez saber, depois do desastre, que tinha feito várias perguntas aos serviços oficiais, para saber das razões do sucedido. Lamento dizê-lo, mas como alguém já disse, o papel de um primeiro-ministro não é fazer perguntas publicamente. O primeiro-ministro deve dar respostas aos portugueses. Pode e deve perguntar aos seus ministros que tutelam os diversos serviços oficiais envolvidos sobre as razões do sucedido, mas não pode colocar-se de fora como se não tivesse nada a ver com o caso e não fosse o primeiro responsável por tudo. Ao contrário do que tenho lido por aí, exigir responsabilidades a quem governa, principalmente perante uma tragédia que, pelo menos em grande parte podia e devia ter sido evitada, não é desrespeitar os mortos. É precisamente o contrário. E é por ser um português beirão, tal como muitos dos mortos neste incêndio, que não posso calar a imensa tristeza com o sucedido, mas também a revolta que advém de perceber que as nossas Beiras são tratadas como se fossem um país de segunda categoria sendo, essa sim, a razão longínqua do sucedido.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Levar Coimbra a Capital Europeia da Cultura

A escolha de uma cidade para “Capital Europeia da Cultura” é daquelas decisões que contêm em si a possibilidade de mudar o futuro dessa cidade, para além das enormes vantagens culturais e turísticas trazidas durante o ano de referência. É por isso que essa escolha está definida em regras próprias da União Europeia, através de uma decisão específica tomada em conjunto pelo Parlamento Europeu e pela Comissão Europeia.
Assim, encontram-se já pré-indicados os países que terão cidades capitais europeias da cultura até 2033. Portugal tem direito a ter uma cidade “capital europeia da cultura” em 2027, em simultâneo com uma cidade da Letónia. Perante esta definição, poderíamos ser levados a pensar que ainda vem longe e que mais próximo dessa data se discutirá o assunto. Ou que basta exercer alguma pressão política sobre um governo politicamente “amigo” para garantir a escolha. Nada de mais errado. Em primeiro lugar, os países membros em causa deverão publicar uma chamada para submissão de candidaturas, pelo menos seis anos antes do ano em causa, além de que terá de entregar o conjunto de pré-selecção das cidades candidatas até cinco anos antes do mesmo ano. Por outro lado, é a Comissão Europeia que tem a responsabilidade da organização da competição entre as cidades candidatas em cada país pelo que, se a intervenção dos governos é naturalmente importante, o júri de especialistas da Comissão está lá para verificar se não há entorses na análise das candidaturas das cidades.

Daqui se infere que até ao ano de 2020, as cidades que se pretendem candidatar têm que ter o seu “trabalho de casa” completamente feito, ou ficarão excluídas de qualquer hipótese de serem escolhidas. Como estamos em meados de 2017, tal significa que essa preparação terá poucos anos para ser realizada.
Há ainda outros aspectos a ter seriamente em conta, nas candidaturas. Em primeiro lugar, cada candidatura deverá basear-se num programa cultural com uma “forte dimensão Europeia”. Por outro lado, uma simples leitura dos critérios mostra a exigência do trabalho de montagem das candidaturas, que deverão ser elaboradas por equipas pluridisciplinares, coordenadas por personalidades de grande competência em várias áreas, mas essencialmente na organização e cultura. Esses critérios estão agrupados em grandes capítulos como sejam a “contribuição para a estratégia a longo prazo”, o “conteúdo cultural e artístico”, a “capacidade para distribuir”, a “divulgação” e ainda a “gestão”.
A novidade é que, desde 2014, as candidaturas têm que cumprir os critérios e o processo de escolha é ainda completamente definido, sendo atribuídas competências à União Europeia e não apenas ao país das cidades candidatas.
As cidades portuguesas que já foram “Capital Europeia da Cultura” não tiveram que cumprir este rigoroso procedimento de escolha, já que foram Lisboa em 1994, o Porto em 2001 e Guimarães em 2012, pelo que a actual situação é muito diferente. Significa que qualquer cidade que pretenda candidatar-se a ser “Capital Europeia da Cultura” em 2027 já deveria neste momento estar a trabalhar muito seriamente nesse sentido.
O que nos traz a Coimbra, dado constar que algumas cidades portuguesas já estarão a preparar as suas candidaturas.
São várias as razões para defender Coimbra como próxima cidade portuguesa “Capital Europeia da Cultura”, em 2027. Desde logo, as duas principais cidades, uma a Norte e outra a Sul, já o foram. Por outro lado, o Norte já viu duas cidades geograficamente bem próximas sê-lo. Por razões de coesão nacional, faz todo o sentido que a próxima se localize na região Centro. A classificação de boa parte da Cidade como “Património Mundial” pela UNESCO veio dar uma notoriedade cultural acrescida a Coimbra, dado que o bem protegido é precisamente a Universidade (Alta e Rua da Sofia), ligada intimamente à Cultura Europeia por ser uma das universidades mais antigas da Europa e pelo seu papel importantíssimo na definição da língua portuguesa. Dentro da região Centro, não parece ser bairrismo defender que Coimbra é, neste momento, a única cidade que pode aspirar a ser a próxima cidade portuguesa “Capital Europeia da Cultura”, desde logo pela dimensão relativa e ainda pelo histórico da Cidade, a nível cultural. A título de exemplo, recorda-se que em Guimarães foi constituída uma orquestra de música erudita que funcionou apenas no ano da Capital Europeia, no que foram gastos mais de seis milhões de euros. Como se sabe, Coimbra tem uma orquestra residente, como aliás dispõe de vários grupos profissionais de teatro, tal como importantes equipamentos pelo que dispõe, também aqui, de vantagens comparativas óbvias.
Falta a razão principal, que é Coimbra querer ser Capital Europeia da Cultura em 2027. Este assunto foi introduzido no debate público por uma candidatura autárquica, no caso a de Jaime Ramos. Penso que foi da melhor maneira que o fez, não partidarizando a questão, mas chamando a atenção para ela e propondo que todas as restantes candidaturas se unam neste caso e estabeleçam uma plataforma de entendimento, evitando querelas estéreis.

Na realidade trata-se de um assunto da maior relevância para a Cidade pelo que, para além de organizar uma equipa credível responsável elaboração da candidatura, se tornará necessário concitar o apoio e colaboração das mais diversas entidades públicas e privadas, forças políticas e representantes da sociedade civil. E isto com a maior urgência, porque amanhã já será tarde.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

A Europa e as suas fronteiras



O fim da União Soviética em 1991 levou à destruição de todos os equilíbrios que, embora instáveis, conseguiram que a chamada “guerra fria” nunca tivesse aquecido ao ponto de provocar a catástrofe nuclear com consequências que nem se imaginam. Durante alguns anos a nova ordem internacional mais pareceu uma desordem, onde o terrorismo encontrou um terreno fértil com atentados pavorosos a fazer lembrar os filmes que se dedicam ao tema do pós-apocalipse nuclear.
Lentamente a Rússia, conduzida a uma expressão mais reduzida denominada Federação Russa, foi-se reorganizando internamente e recuperando algum do seu poderio militar anterior, enquanto a economia demasiado dependente da produção de petróleo e gás natural tarda a impor-se num tempo de desregulação internacional. Putin encontra agora um mundo que não é favorável ao crescimento da influência russa por que ele tão notoriamente se bate, utilizando para isso todos os meios de que dispõe, mesmo alguns que se suspeita serem menos lícitos.
Um dos maiores obstáculos que encontra reside na nova configuração política na Europa de Leste, particularmente nos países que, até à queda do Muro de Berlim, pertenciam ao Pacto de Varsóvia na sequência da sua ocupação militar pelas forças comunistas no fim da Segunda Guerra Mundial. Em boa parte das populações desses países, os exércitos do Pacto de Varsóvia eram vistos como força de ocupação, bastando relembrar o sucedido nas revoltas na Hungria e na Polónia em 1956 e na Checoslováquia em 1968. 

Esses países, na sua quase totalidade, aproveitaram estes anos de fraqueza russa para restabelecerem democracias parlamentares e se aproximarem da União Europeia e nela entrarem. Mas, mais importante e muito mais perturbador para Moscovo, todos esses países ex-comunistas entraram na NATO antes de aderirem à União Europeia. Este facto significa claramente que, antes das decisões políticas e económicas, trataram de assegurar a segurança militar que a NATO lhes proporciona face ao gigantesco país a Leste que os dominou nos mais diversos aspectos desde 1945.
Foi assim que, logo em 1999, a NATO passou a contar com a República Checa, a Hungria e a Polónia como novos membros. Em 2004 aderiram a Bulgária, a Roménia e ainda os países bálticos que tinham sido ocupados militarmente pela ex-URSS e recuperado a independência após 1991: a Estónia, a Letónia e a Lituânia. Em 2009 foi a vez de a Croácia e a Albânia aderirem à NATO.
No passado dia 5 de Junho, coube ao Montenegro passar a fazer parte da NATO. Trata-se de uma participação simbólica dada a reduzida capacidade militar deste pequeno país, mas com um significado enorme para a Rússia. Com a entrada do Montenegro, toda a costa Norte do Mediterrânio passou a estar controlada pela NATO, desde o Sul de Espanha até à fronteira Síria, tendo agora perdido o porto da Baía de Kotor, últimas instalações em toda esta costa que a sua Armada ainda utilizava livremente até há pouco tempo.
Mas a entrada do Montenegro na NATO teve ainda outro simbolismo, se bem que circunstancial. Foi o primeiro ministro do Montenegro Dusko Markovic que o presidente americano Donald Trump “atropelou” na cimeira da NATO em 25 de Maio, para se colocar na linha da frente da fotografia oficial.
Foi nessa cimeira que Trump resolveu publicamente criticar os parceiros de aliança pelos seus baixos gastos militares, criando um clima de menor confiança entre os dois lados do Atlântico. Música celestial para os ouvidos de Putin, nada satisfeito com o passo dado pelo Montenegro: Markovic foi publicamente humilhado por Trump na cimeira numa atitude que se tornou viral por todo o mundo, e o principal membro da NATO tornou pública a sua desconsideração pelos países europeus.A Europa e as suas fronteiras

O palco do xadrez mundial político e militar está a mudar drasticamente. Do outro lado do Atlântico, está o presidente Trump para quem a estratégia política se parece reduzir aos negócios. Do lado oriental da Europa está o presidente Putin que sabe muito bem o que quer e que está disposto a tudo para o conseguir. Nesta altura, convinha que a União Europeia tivesse alguma capacidade de visão estratégica e se unisse perante o essencial, em que se inclui a segurança.