segunda-feira, 1 de julho de 2024

PUTIN: DIZ-ME COM QUEM ANDAS…


 O título da crónica foi-me sugerido pela recente visita de Putin à Coreia do Norte. Na realidade, em vez de Putin podia ter escrito Kim Jong-un com o resto do título semelhante porque, com a sua acção dos últimos vinte anos, Putin já atingiu o patamar que era quase exclusivo do líder norte-coreano na cena internacional.

Kim Jong-un é o exemplo acabado da contradição em política. Lidera com pulso de ferro um dos poucos regimes comunistas do mundo, mas na realidade representa a terceira geração de uma dinastia do tipo monárquico. De facto, sucedeu na chefia do partido e do Estado a seu pai Kim Jong-il falecido em 2011 o qual, por sua vez, havia sucedido a seu pai Kim Il-sung em 1992.

O regime da Coreia da Norte existe desde a guerra da Coreia entre 1950 e 1953 que se iniciou precisamente com a invasão do Sul pela Coreia do Norte comunista liderada por Kim Il-sung. A guerra terminou sem qualquer tratado de paz através da constituição de uma zona desmilitarizada sobre o famoso Paralelo 38. Enquanto a Coreia do Sul se desenvolveu e é hoje uma economia rica e hiper-sofisticada, a Coreia do Norte continuou a ser uma economia paupérrima totalmente dependente do Estado e do Partido, onde frequentemente se morre à fome, dado que a preocupação fundamental assumida pelo Estado consiste numas Forças Armadas gigantescas dotadas, elas sim, de equipamento bastante moderno, incluindo capacidade nuclear.

Foi este país que Putin foi agora visitar, acabando por com ele estabelecer um acordo de parceria que é uma verdadeira aliança. O líder comunista norte-coreano é conhecido pelos seus gostos burgueses de que os carros topo-de-gama que é visto frequentemente a conduzir são apenas um dos muitos exemplos possíveis de apontar. É também conhecido pelas execuções de “inimigos”, inclusivamente familiares, levadas a cabo com requintes de selvajaria e extrema barbaridade. Mas Kim Jong-un tem, é claro, atitudes muito apreciadas pelo líder russo que justificam esta viagem e todo o afecto político de que se revestiu. É que Kim Jung-un é praticamente o único líder político mundial em funções que assume o apoio, a cem por cento, à guerra de agressão que Putin está a levar a cabo na Ucrânia, para a qual não se vê um fim. E Putin necessita de toda a ajuda possível, principalmente em fornecimento de armamento, o que Jong-un lhe presta de bom grado, já que material de guerra é coisa que não lhe falta e a sua troca por energia, por exemplo, é algo que lhe convém sobremaneira, sendo o seu país a miséria que é.

Tudo para que Putin continue a sua guerra ao Ocidente e ao nosso estilo de vida liberal e respeitador das regras internacionais. Na realidade, os únicos argumentos de Putin para invadir a Ucrânia que poderiam ter alguma credibilidade caso tivessem alguma adesão à realidade são ter sido provocado pela NATO e pela UE. Claro que são uma falsidade absoluta já que, antes pelo contrário, é a Federação Russa que sob a liderança de Putin tem uma atitude verdadeiramente imperialista que põe em perigo os seus países vizinhos e toda uma Europa que se desmilitarizou confiante em anos de paz e prosperidade.

Por isso mesmo faz todo o sentido relembrar o que se passou há pouco mais de oitenta anos, como se fez há pouco nas celebrações do desembarque aliado na Normandia em 6 de Junho de 1944 em que tantos homens deram a vida para que a Liberdade fosse uma realidade numa Europa fustigada pela opressão e pela tirania do nazi-fascismo.


A Europa sente de novo os ventos que trazem o cheiro da pólvora. A aliança dita “de defesa” entre dois estados com líderes agressivos não vem trazer pacificação. Com o seu velho aliado americano obrigado a escolher entre um psicopata e um velho senil e com os extremismos internos a substituir as velhas forças centristas, a Europa está num momento muito difícil que exige reformas profundas e difíceis.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Julho de 2024

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quinta-feira, 27 de junho de 2024

COIMBRA: QUESTÕES DE ACESSIBILIDADE


 Como consequência das obras de instalação da rede de Metrobus os conimbricenses estão a sentir, desde há mais de dois anos, sérios problemas na sua mobilidade dentro da Cidade. E vão continuar a sentir, já que o atraso das obras, em particular da chamada Linha do Hospital consignada em 22 de Julho de 2022 com um prazo de execução de 18 meses, é considerável não sendo pessimista esperar que não estejam terminados durante o ano de 2025. As razões serão compreensíveis, mas todos nós, cidadãos comuns, podemos constatar que o plano de trabalhos não estará a ser cumprido, detectando-se numerosas frentes de obras que ficam por terminar, enquanto outras têm início. Um aspecto ficou evidente: nos dois meses que antecederam as comemorações do 25 de Abril largas dezenas de trabalhadores afadigaram-se junto ao Estádio para completar os acessos à futura estação, para logo depois as obras confinantes entrarem num regime completamente diverso, estando ainda hoje por concluir.

O leitor não se iluda, estas obras são importantíssimas para a Cidade e abrangem uma pesada renovação de infraestruturas que necessitavam de ser substituídas, nomeadamente as redes de águas e de saneamento das vias que vão suportar o novo sistema de mobilidade. O problema aqui está nos atrasos que se verificam genericamente por toda a Cidade.

Quando o novo sistema estiver em funcionamento a mobilidade urbana ficará extraordinariamente beneficiada, em particular nas proximidades da rede do Metrobus, diminuindo ainda a procura de estacionamento em zonas hoje completamente caóticas no que respeita a esse aspecto e estou a lembrar-me da zona dos HUC, o que em muito irá melhorar a qualidade de vida urbana. Não estou tão convencido quanto ao benefício dos moradores dos concelhos de Miranda do Corvo e da Lousã, relativamente à antiga infraestrutura ferroviária, mas não vale a pena chover no molhado perante tudo o que se passou, entretanto, e que nos envergonha a todos. E perante a situação existente desde o fecho da antiga Linha da Lousã, todos acabam por ficar a ganhar.


Mas se esta intervenção viária, cuja ideia inicial data de 1991 está finalmente em curso, outras há de que Coimbra está dependente para as quais todos os conimbricenses deverão estar alertados.

Uma delas tem a ver com chamada linha de alta velocidade ferroviária. Ouvimos falar de abertura de concursos para alguns troços, mesmo na nossa região e devemos estar preocupados com a falta de informação sobre o assunto no que respeita a Coimbra. De facto, está prevista a construção de um “by-pass” que servirá Coimbra com alguns comboios de alta velocidade na chamada Estação Velha renovada. O sistema contempla quatro linhas, isto é a duplicação das existentes entre dois locais da futura linha de alta velocidade em que toca a actual Linha do Norte algures perto de Soure a Sul e da Pampilhosa a Norte. Mas o que não sabemos é algo de crucial: está garantida junto da IP a simultaneidade da construção da linha de alta velocidade e do “by-pass” de Coimbra? Quantos comboios de alta velocidade irão passar diariamente por Coimbra? Há alguma garantia concreta quanto a estes aspectos essenciais para a nossa Cidade? A transparência em grandes obras estruturantes é absolutamente essencial.

A localização central de Coimbra é uma vantagem natural garantida desde logo pela geografia. Mas a verdade é que essa vantagem não se traduz nas ligações rodoviárias com o interior beirão, ao contrário do que se passa com muitas outras cidades nacionais, o que se traduz em desvantagem competitiva. Basta lembrar como a A13 ficou “pendurada” em Ceira, não se ouvindo falar na sua conclusão até ao IP3. Por falar em IP3, é absolutamente lamentável que essa estrada perigosíssima que liga Coimbra a Viseu, toda ela um ponto negro, ainda não tenha sido substituída por uma auto-estrada segura. Tal como por terminar está o IC6 até à Covilhã, falando-se agora de elaborar o projecto da travessia do concelho de Oliveira do Hospital como se de grande coisa se tratasse. Se o ridículo matasse, muita gente já cá não estaria.

Com todos estes exemplos não pretendo senão chamar a atenção para assuntos que deveriam andar permanentemente em discussão no espaço público, para além dos gabinetes ministeriais e autárquicos, porque estrategicamente fundamentais para Coimbra e o seu futuro.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  24 de Junho de 2024

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segunda-feira, 17 de junho de 2024

COIMBRA A NÃO GOSTAR DE SI MESMA

 


Na semana passada passaram 300 anos sobre o nascimento, em Coimbra, de Carlos Seixas. É quase certo que muitos conimbricenses que não tenham um gosto ou interesse pessoal pela área de actividade em que se distinguiu Carlos Seixas não tenham dado pela efeméride. E, no entanto, Carlos Seixas é considerado um dos maiores compositores portugueses de música erudita, dentro do género Barroco, aquele que se praticava durante a época em que viveu, isto é, o sec. XVIII. Além de um compositor excepcional que criou um estilo próprio, foi também um executante virtuoso no órgão e no cravo, razão por que muito novo foi para Lisboa onde foi organista da Sé Patriarcal e da Capela Real. Mas nem por isso se deu conta na nossa Cidade de qualquer actividade cultural refente a Carlos Seixas e à sua obra. Vá lá que, por enquanto, há uma rua com alguma dimensão que leva o seu nome, mas provavelmente a maioria dos seus moradores não será capaz de dar qualquer informação sobre quem foi Carlos Seixas. E nem sequer é da sua responsabilidade que tal suceda. Se as instituições educativas e as elites e responsáveis culturais não se preocupam com a divulgação e promoção do que de excelente tem a nossa História, quem o fará?

Será uma característica da nossa Cidade: toda a gente refere genericamente gostar muito da Cidade, considerando-a mesmo superior a muitas outras que trata até com um certo desdém. Mas costuma dizer-se que o diabo está sempre nos detalhes e é aí no concreto da realidade que a coisa fica diferente. Esquecemo-nos frequentemente de cuidar de nós e do que é nosso, que tantas vezes não fica a dever nada ao que trazemos de fora, que consideramos superior só porque vem de Lisboa ou do Porto, curvando-nos muitas vezes a outros interesses que tantas vezes nos são desfavoráveis. E demasiadas vezes atacamos mesmo quem por cá tenta fazer o melhor, apenas por motivos políticos partidários ou mesmo invejas pessoais.

No passado dia 10 de Junho comemorou-se, como é habitual, o chamado “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”.

Como este ano passam 500 anos sobre o nascimento de Luís de Camões e temos comemorações da efeméride durante dois anos, que não podemos fazer a coisa por menos, pelos vistos temos mesmo necessidade de prolongar comemorações. E ainda bem já que, enquanto celebramos datas do passado, nos esquecemos do resto o mesmo é dizer da realidade presente.


E as comemorações dos 500 anos de Camões tiveram início em Coimbra com cerimónias na Universidade, incluindo sessão solene com presença do Presidente da República e concerto musical nos Gerais, com direito a transmissões televisivas em directo. Só que, mais uma vez, o espectáculo musical, programado e realizado em Coimbra, não contemplou a Orquestra Clássica do Centro, que é da nossa Cidade e da qual tem todas as razões para se orgulhar, pela sua excelência. Por isso mesmo a devia apresentar sempre que possível, mas, antes pelo contrário, de novo se contrataram outros músicos para a performance. Temos mesmo complexos estranhos que nos impedem de ver o melhor que temos.

De novo, e lamentavelmente, Coimbra a não gostar de si própria. Quando é que mudaremos de destino?

Publicado no Diário de Coimbra em 17 de Junho de 2024

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terça-feira, 11 de junho de 2024

ANTES VERMELHOS QUE MORTOS

 


Esta era a frase gritada por estudantes universitários em Berlim ocidental no início dos anos oitenta do século passado quando, perante a ameaça dos mísseis SS20 apontados ao ocidente colocados por Moscovo na Europa de Leste, os americanos responderam com a colocação de mísseis Pershing na Europa ocidental virados a leste. O contexto já pertence à História, dado que poucos anos depois a URSS implodiria e com ela o mundo comunista com o seu modelo social e político. Era um grito de certo modo pacifista que contemporizava com quem desde sempre tentava forçar a sua vontade, no caso o império russo, na altura dito soviético. Por cá também havia quem defendesse o mesmo, com um Conselho para a Paz e Cooperação sempre na vanguarda, na realidade mais um organismo teleguiado a partir de Moscovo.

Há pouco menos de cem anos Hitler atirou as condições do Tratado de Versalhes para o caixote do lixo e rearmou a Alemanha iniciando uma série de invasões de países vizinhos perante a complacência dos líderes dos restantes países. Mesmo depois dessas ditas anexações os líderes dos países democráticos de tudo tentaram para acalmar os ímpetos agressivos do regime nazi desde tentativas de pedir a intermediação de Mussolini até à conferência de Munique de Setembro de1938 visando o “apaziguamento” de Hitler. Em Agosto de 1939 até mesmo Estaline estabeleceu um pacto de não agressão entre a Alemanha Nazi e a URSS o conhecido Pacto Molotov-Ribbentrop. A invasão da Polónia aconteceu logo em 1 de Setembro de 1939, iniciando-se aí a hecatombe trágica da Segunda Guerra Mundial, com a declaração de guerra à Alemanha pela Grã Bretanha e pela França a ter lugar dois dias depois. Acabava aí a discussão sobre as intenções de Hitler e sobre se seria mais vantajoso para o mundo ceder às suas pretensões evitando uma guerra generalizada.

Em 22 de Fevereiro de 2022 a Rússia invadiu a Ucrânia numa guerra que continua mais de dois anos depois. Esta acção militar seguiu-se à conquista militar de duas províncias ucranianas e da península da Crimeia que ocorreram em Março de 2014. Nessa altura o Ocidente balbuciou uns protestos, mas Putin levou a sua avante sem problemas de maior, utilizando pretextos em tudo semelhantes aos de Hitler nas suas acções imediatamente anteriores à invasão da Polónia. Nesta nova “operação militar” como Putin começou por lhe chamar, o exército russo dirigiu-se directamente à capital ucraniana mas, de alguma forma, o exército ucraniano conseguiu travar essa gigantesca coluna russa obrigando-a a dar meia volta e regressar ao exterior das fronteiras ucranianas. Desde então Putin iniciou uma guerra generalizada de conquista de território ucraniano, estilhaçando todas as regras internacionais relativas à guerra e nomeadamente de protecção de populações civis. Um exemplo: a táctica mais recente consiste em bombardear instalações civis, provocando a deslocação para o local de bombeiros, médicos e enfermeiros, para meia-hora depois bombardear o mesmo local atingindo directamente as forças de socorro.

Entretanto, aparecem aqui e ali, propostas de negociação de termos de paz imediata. Claro que, enquanto decorre uma guerra de invasão a um país soberano, estas propostas equivalem a um reconhecimento de derrota por parte da Ucrânia. Como acontecia com Hitler, tentar apaziguar Putin desta maneira não teria outro efeito senão dar-lhe força para continuar sua estratégia imperial de conquista de países que ele considera que nunca deveriam ter saído da esfera russa. Putin tem de ser parado na Ucrânia e, ao contrário do que proclamam de novo os falsos “pacifistas”, só a derrota russa na Ucrânia poderá impedir uma nova guerra europeia generalizada com todas as consequências que traria.


 Putin assume que rejeita a ordem internacional baseada em princípios liberais e acordos internacionais essencialmente saída da II Guerra Mundial por outra que todos percebemos ser exactamente o contrário, orientada por ditaduras. Os próximos tempos vão ser perigosos porque, para se defender, a Ucrânia tem absoluta necessidade de responder aos ataques russos de onde eles são lançados, isto é, de território russo. O Ocidente tem de se manter firme no apoio à Ucrânia incluindo desmascarar os falsos “pacifistas” que por aí andam, mesmo entre nós. Porque todos estamos em perigo, na mira das armas de Putin, não duvidemos disso.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Junho de 2024

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segunda-feira, 3 de junho de 2024

POPULISMOS

 


Há poucos dias a campanha eleitoral em curso para o Parlamento Europeu produziu mais uma das muitas afirmações populistas em que tem sido pródiga. Alguns dos partidos concorrentes, já nem sei quais, mas da esquerda e da direita, propuseram um ordenado mínimo igual para todos os países da União. Não sei mesmo se os proponentes se apercebem do que estão a propor, acredito que não, estão apenas a competir para conquistar o primeiro lugar num patético campeonato de populismo. Na realidade, atingir um tal desiderato só seria possível com um extremo aprofundamento da integração económica e financeira na direção do federalismo europeu, algo que estará certamente nos antípodas da vontade dos seus proponentes. Acresce que, se em Portugal o ordenado mínimo anda por pouco mais de 800 euros, países europeus há em que o seu valor é superior a 2.400 euros. Como nenhum país iria aceitar diminuir o valor do seu ordenado mínimo, para ser comum em toda a União esse seria também o valor em Portugal, país em que o ordenado médio anda pelos 1.310 euros. Fácil se torna verificar a tontice da proposta, mas a verdade é que foi feita.

O populismo não é um fenómeno dos dias de hoje, mas parece ter ganhado asas, talvez com a actual facilidade de comunicação proporcionada pelos novos meios cibernéticos.

O populismo é partilhado pela esquerda e pela direita, havendo sinais da sua prática por todos os partidos, mas constitui a própria base do discurso em partidos localizados nos extremos do leque político. As consequências da governação populista são bem conhecidas. Desde meados do sec. XX que as américas central e do sul se tornaram em exemplos dos resultados do populismo levado à governação, alternando mesmo entre líderes populistas de esquerda e direita. Os resultados são facilmente visíveis, sendo paradigmático o exemplo da Argentina, um dos cinco países mais ricos do mundo há cem anos, mas que vegeta hoje numa penúria triste e desconsolada como resultado de políticas populistas, no caso chamadas justicialistas.


Há cem anos, os outros partidos dos extremos eram os partidos “revolucionários” que adoptavam uma filosofia abrangente que tudo explicava e que proporcionaria uma solução global e “justa” para os problemas da sociedade, hoje praticamente desaparecidos. Os de direita incluindo nazi e fascistas, foram derrotados numa trágica guerra mundial. Os de esquerda subsistiram à sombra do império russo/soviético e os que resistiram ao desaparecimento da URSS tiveram que se “democratizar” integrando-se naquilo a que chamavam “democracia burguesa” e sujeitando-se às suas regras. É o caso do “nosso” partido Comunista que se viu obrigado a abandonar a conquista do poder pela via revolucionária, sendo hoje um partido perfeitamente integrado no sistema democrático.

Mas o populismo continua bem vivo, como vemos nesta campanha eleitoral. Como o termo “fascista” ficou desgastado ao longo dos anos pela sua utilização abusiva pela esquerda sobre tudo o que fosse de direita, o partido actualmente mais à direita, o Chega, é normalmente classificado como sendo da “direita populista”. E o facto é que este partido, que conquistou 50 lugares na Assembleia da República, é inteiramente populista, não se lhe conhecendo qualquer ideologia política nem respostas concretas para os problemas nacionais. Embora não devamos esquecer que, para pagar o acréscimo de despesa pública que propõe, não se tenha lembrado de outra solução senão que taxar as grandes empresas, incluindo a banca, pelos seus “lucros excessivos”. Curiosamente, ou talvez não, exactamente a solução preferida pelo Bloco de Esquerda para os mesmos problemas. Como se costuma dizer, os extremos tocam-se e não é raro que o façam! Até no uso mais descarado de um populismo sem limites. O que me parece deveria ser um critério básico de rejeição de qualquer partido, pela falta de respeito que mostra pelos eleitores.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Junho de 2024

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terça-feira, 28 de maio de 2024

LEMBRAR A TRAGÉDIA DE ALFARROBEIRA

 


No dia 20 de Maio de 1449, passaram há pouco 575 anos sobre essa data fatídica, aconteceram os factos que para a História ficaram conhecidos como Batalha de Alfarrobeira. Na realidade, tratou-se mais de uma emboscada que teve como objectivo conseguido, eliminar o Infante Dom Pedro, Duque de Coimbra.

Esta crónica cumpre de novo um dever pessoal assumido de relembrar a figura histórica do primeiro Duque de Coimbra, figura ímpar na Cultura portuguesa e europeia do seu tempo.

Dom Pedro pertencia àquela que Camões chamou Ínclita Geração, os seis filhos do Rei D. João I (o de Boa Memória) e Filipa de Lencastre que chegaram à idade adulta. Era o segundo mais velho destes seis, depois de Dom Duarte que, por ser o mais velho, foi Rei de Portugal.

Dom Pedro, tal como os seus irmãos, foi privilegiado com uma educação esmerada, fruto da experiência de sua mãe, vinda da mais alta aristocracia inglesa. A escolha do matrimónio de D. João I foi, como era costume na época, fruto de uma cuidadosa análise política em função dos interesses de Portugal, numa época em que um relacionamento ibérico era ainda impossível. Mas em boa hora a escolha recaiu em D. Filipa de Lencastre que, além da aliança que ainda hoje é a mais antiga do mundo, trouxe hábitos sociais e culturais sofisticados pouco usuais na corte portuguesa, até então.

Na sequência da sua actuação na conquista de Ceuta Dom Pedro foi recompensado com o ducado de Coimbra e ainda com os senhorios de Montemor-o-Velho e Aveiro. As suas viagens pela Europa durante três anos entre 1425 e 1428 tornaram-no conhecido como “Príncipe das Sete Partidas”. Começou a sua viagem por Inglaterra onde foi agraciado com a Ordem da Jarreteira, passando depois pela Flandres de onde remeteu a seu irmão D. Duarte famosa “carta de Bruges” com conselhos para a governação do país que ainda hoje surpreendem pela acuidade, conhecimentos e superior formação política em função do que hoje chamamos interesse público. Visitou o túmulo dos Reis Magos em Colónia e ao lado do imperador Segismundo da Hungria lutou contra os Turcos e recebeu a marca de Treviso. Percorreu a Itália e as principais cidades desde Veneza a Roma, travando conhecimento com altas personalidades como o Papa Martinho V. No fim das suas viagens atravessou a Península Ibérica e exerceu diplomacia em vários reinos

Muito importante, trouxe para Portugal algo que nas décadas seguintes seria de capital importância para Portugal: o livro de Marco Polo e um mapa-múndi com as rotas comerciais entre a Europa e o Oriente. E, de facto, o Duque de Coimbra veio a ser decisivo na gesta portuguesa dos descobrimentos, em alternativa à continuação das conquistas militares no Norte de África. No seu “Tratado da Virtuosa Benfeitoria” o Infante D. Pedro desenvolveu teoricamente o que na prática havia sucedido com a eleição de seu Pai como Rei nas Cortes de Coimbra, considerando o Poder real como sendo uma emanação da vontade popular.

O Infante Dom Pedro teve oportunidade de levar à prática as suas ideias inovadoras de organização do Reino durante o período em que foi Regente entre a morte de seu irmão D. Duarte e a maioridade de D. Afonso V, o que significou retirar poder à grande nobreza, o que teve como efeito suscitar a sua violenta oposição. Essa oposição veio a traduzir-se em praticamente uma guerra civil sendo o principal inimigo do Duque de Coimbra o seu meio-irmão Afonso, filho de D. João I nascido antes do seu casamento com D. Filipa. Dom Afonso, que tinha sido feito Duque de Bragança precisamente pelo Infante Dom Pedro durante a sua Regência. Tendo o Rei D. Afonso V acedido às vontades do Duque de Bragança, Dom Pedro e os seus homens foram recebidos às portas de Lisboa por um exército, do que resultou a morte do Duque de Coimbra e dos seus principais apoiantes. O sistema feudal regressava assim com toda a força, só vindo a ser ultrapassado pelas novas ideias no reinado de Dom João II, o chamado Príncipe Perfeito, ele próprio filho de D. Afonso V e neto por via materna de Dom Pedro, Duque de Coimbra.

A nossa Cidade continua a esquecer deliberadamente os maiores da sua História, com o Duque de Coimbra Dom Pedro à cabeça. É difícil entender esta situação quando Dom Pedro é uma figura ímpar na nossa História, que ultrapassou largamente a sua condição de nascimento dos pontos de vista cultural e político. Foi um homem largamente à frente do seu tempo, tendo por isso mesmo sido vítima da habitual inveja e atraso nacionais. A sua vida constitui um exemplo, a louvar e relembrar principalmente num tempo com tanta falta de símbolos verdadeiros de honradez, justiça e verdade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Maio de 2024

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terça-feira, 21 de maio de 2024

FESTIVAL DA EUROGRITARIA

 


Acredito que não será certamente por causa da politização do evento que o chamado Festival da Eurovisão 2024 ficará na memória dos telespectadores. Na realidade, há muitos anos que é visível a penetração da política na organização ou nas candidaturas dos países, de que até Portugal já foi disso exemplo no passado, por mais de uma vez. O activismo político utiliza todos os meios que pode e, quando a organização de um evento de grande escala não tem capacidade de se opor, aproveita a oportunidade. Claro que correu mal porque um dos intérpretes abusou e foi o seu país que acabou por se ver excluído da competição. A mistura da defesa dos palestinianos com o racismo anti-semita acabou por se virar contra os próprios, porque as votações directas permitiram perceber que o extremismo vanguardista que ocupa as televisões anda muito longe do sentir das populações anónimas.

Também não será por causa da afirmação pessoal de intérpretes que aproveitam para assumir a sua diferença no que diz respeito à sexualidade que este festival ficará na memória. De facto, já não podemos classificar como grande novidade o surgimento de intérpretes que se apresentam, mais do que cantores, como pessoas não binárias. O aceitamento pacífico da diferença generalizou-se nas nossas sociedades e os exageros de afirmação apenas atraem a atenção e atitudes opostas de minorias extremistas do lado contrário, no fundo bastante parecidas nos métodos.

Também não será a extravagância das indumentárias apresentadas pelos intérpretes (homens, mulheres, etc.) que este certame ficará na memória. A utilização de vestuários diferentes tem sido uma característica dos Festivais da Eurovisão desde há muito. A maioritária apresentação de intérpretes femininas em minúsculos trajes do tipo fato de banho é apenas mais uma demonstração da hipocrisia reinante em determinados círculos. Não foi há muito tempo que as feministas se insurgiram contra os concursos de misses em fato de banho e conseguiram que no início das corridas de automóveis e motas não houvesse jovens assim vestidas. E muito bem, digo eu, só se torna difícil de entender o actual silêncio perante idênticas utilizações do corpo feminino.

Este festival também não passará para a História pelos cenários de luz cor e movimento com utilização intensa de efeitos digitais que, apesar da sua espectacularidade, é já habitual em muitos eventos musicais que se realizam por esse mundo fora.


Mas a verdade é que este Festival da Eurovisão deverá mesmo ficará na nossa memória, embora por outras razões, que nos levam a perceber um pouco melhor as circunstâncias que acima refiro. É que, sendo suposto ser um festival de música, a musicalidade não poderia andar mais longe daquele palco europeu. Conta-se que Louis Armstrong costumava dizer que só há dois tipos de música: a boa e a má. Claro que a classificação depende de critérios pessoais, mas há níveis de qualidade tão baixos, tão baixos, que se torna possível uma concordância generalizada. Será, para muitos em que me incluo, o caso deste dito festival de música que não foi mais do que um festival de gritaria. E os cenários espectaculares, as indumentárias ridículas e as afirmações pessoais laterais não servem para mais do que isto: esconder que em vez de um Festival de Música, a Eurovisão nos presenteou apenas com um Festival de Gritaria. Ainda que de carácter popular, houve tempo em que o Festival da Eurovisão era Cultura. Hoje está transformado em mero entretenimento grosseiro, acompanhando a luta comum que interesses comerciais e vanguardas políticas e sociais de braços dados têm promovido contra o Belo e Sensível.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Maio de 2024

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terça-feira, 14 de maio de 2024

EUROPEUS VÃO A VOTOS

 


No próximo dia 9 de Junho os europeus vão a votos para escolher os deputados do Parlamento Europeu. Em Portugal a taxa de abstenção nestas eleições evoluiu de 27,8% em 1987 para 69,3% nas últimas eleições realizadas em 2019. Isto é, nestas últimas, em cada dez eleitores apenas votaram três.

Dir-se-ia que os portugueses, ou não se sentem europeus, ou não querem saber da União Europeia para nada. Contudo, em simultâneo, os portugueses contam-se entre os europeus que mais aprovam a participação na União. Um paradoxo dificilmente explicável, a não ser pelo volume de fundos europeus recebidos por Portugal desde a entrada na CEE que ocorreu em 12 de Junho de 1985. Na realidade, entre 1986 e 2022, o nosso país recebeu mais de 157 mil milhões de euros da União Europeia que são facilmente verificáveis em obras públicas e inúmeros melhoramentos assinalados pelas placas obrigatórias por todo o país. E isso os portugueses sabem-no bem! Isto é, olhamos para a União Europeia, não como um projecto político comum, mas sim com um banco onde vamos buscar dinheiro fácil, como aconteceu com o ouro do Brasil há três séculos.

Mas esse dinheiro recebido tem consequências, nem sempre as melhores. Todos sentimos que uma percentagem não negligenciável tem sido gasta em obras de fachada que não introduzem qualquer melhoria concreta na vida colectiva nem, e isso é o essencial, se traduz verdadeiramente num crescimento sustentável da economia e do bem-estar generalizado dos portugueses. Dado que nas obras comparticipadas pela União Europeia uma parte tem de ser assegurada pelos orçamentos nacionais, fácil é concluir pelo desvio de verbas essenciais ao bem-estar colectivo para obras e iniciativas várias que não são reprodutíveis.

Os partidos concorrentes às eleições também não têm ajudado muito. De facto, nos extremos do leque partidário encontramos discursos que, na prática, desligam os eleitores do verdadeiro interesse da União para todos os países membros, incluindo Portugal. À esquerda, os discursos populistas apontam a União Europeia como sendo responsável pelos nossos problemas económicos e financeiros. Na realidade, evoluíram um pouco, já que deixaram de exigir a saída de Portugal da União. Mas continuam a manipular o povo defendendo a saída da moeda única. A entrega ao Banco Central Europeu das competências relativas a políticas monetárias e de juros que são agora comuns aos países do Euro, é apresentada como perda de soberania e origem das nossas dificuldades periódicas, quando se verifica exactamente o contrário. O que seria da nossa economia se não pertencêssemos à moeda única? Em vez de crescimento, que apesar de fraco existe, teríamos pobreza e isolamento: mais orgulhosamente sós! À direita igual populismo tenta ressuscitar um nacionalismo serôdio que explora sentimentos retrógrados. Como se a moeda única e a livre circulação de pessoas e bens fossem algo prejudicial a um país que há séculos estava separado da Europa e que após a perda do Império reencontrou o espaço e os povos que estiveram na sua origem. Basta ler a entrevista ao Observador do cabeça de lista do Chega para se perceber como devemos evitar o populismo da extrema-direita e as suas mais desvairadas teorias da conspiração que fazem lembrar os “protocolos dos sábios de Sião”. Quer à esquerda, quer à direita, os sonhos dos extremos passam por destruir ou enfraquecer por dentro a União Europeia.


Já os partidos situados ao Centro, à esquerda e direita aparecem nestas eleições europeias com propostas muito semelhantes, aceitando e promovendo a participação numa União Europeia cada vez mais aprofundada. O que os separa tem mais a ver com a situação nacional e os seus objectivos a esse nível, não pretendendo enviar para Estrasburgo lutadores contra a União. Mais importante do que transportar para Bruxelas e Estrasburgo os problemas próprios nacionais, o que interessa é perceber que resposta se pretende dar às questões verdadeiramente decisivas para o futuro da União: a agressão russa, o isolacionismo americano e as mudanças climáticas.

A entrada na CEE, agora União Europeia, foi um momento de grande importância para Portugal que assim pertence de pleno direito a um dos blocos políticos e económicos mais avançados do mundo, que permanece firme na defesa da Liberdade, da paz e dos direitos humanos. Isso é bem mais importante do que ser considerada como mero financiador dos nossos investimentos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 Maio 2024

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segunda-feira, 6 de maio de 2024

GOVERNO E OPOSIÇÃO TÊM RESPONSABILIDADES


 Passadas que estão as comemorações dos 50 anos sobre o 25 de Abril, regressou a vida habitual e o que os portugueses veem não é bonito de se ver e traz-nos a todos algo perplexos e muito preocupados com o futuro. As eleições de 10 de Março passado traduziram-se numa nova estrutura partidária em que os dois maiores partidos, o PSD e o PS ficaram praticamente empatados, aparecendo um terceiro partido, o Chega, bastante próximo. O estabelecimento de uma maioria obrigaria a que um dos dois maiores se associasse de alguma maneira ao CHEGA, ou que algum tipo de acordo se fizesse entre o PS e o PSD/CDS.

Pelo contrário, o PSD e o CDS formaram Governo minoritário, solução aceite pelo Presidente da República que, ao que se sabe, nem tentou que houvesse pelo menos um acordo parlamentar que assegurasse um mínimo de estabilidade política em matérias essenciais. É possível que tal atitude se deva a um mau momento do Presidente da República cuja autoridade se encontra claramente diminuída, mas a realidade é que estão criadas as condições para que o actual Governo vá encontrar condições muito difíceis para governar normalmente. Tal só será possível caso esteja disponível para negociar todas as decisões que tenham de passar pela Assembleia da República. Será ainda necessário que um dos dois partidos maiores da oposição, ou ambos, se abstenham de criar um permanente obstáculo à governação e ainda de tomar a iniciativa de propor e aprovar decisões contrárias à política governativa. Isto é, será necessário que o Governo possa governar e que o faça e, por outro lado, que os partidos da oposição não cedam à tentação de transformar o Parlamento em entidade governativa em vez de fiscalizar a actividade do Governo, como estipula a Constituição.

Durante o período comemorativo do 25 de Abril, pudemos ouvir, e bem, que se deve defender a Liberdade e a Democracia todos os dias, que nunca se devem ter como garantidas. Para tal, o primeiro dever dos líderes políticos deve ser evitar a irresponsabilidade e o populismo. No entanto, o que todos vemos é o contrário, numa demonstração evidente do “faz o que eu digo e não o que eu faço”. A aprovação do fim das portagens nas ex-SCUTS na Assembleia da República pelo Chega e pelo PS é disso prova evidente. Um partido diz que essa medida constava do seu programa eleitoral o que não faz sentido, porque não é governo. O outro segue a sua política populista e irresponsável de terra queimada ao prometer tudo a todos em simultâneo, sem cuidar minimamente das condições financeiras do país.

Tudo indica que, 50 anos depois da instauração da Democracia, nos voltamos a aproximar perigosamente do que se passou na primeira República. O interesse nacional é esquecido em função dos interesses eleitorais imediatos dos partidos. Os fundamentos da Democracia poderão ser minados através de uma utilização egoísta dos meios proporcionados por essa mesma democracia, como infelizmente a História nos ensina com demasiados exemplos.


Perante este cenário o Senhor Presidente da República pode vir a ter de tomar decisões difíceis e importantes a curto prazo. No jantar com os correspondentes estrangeiros as referências que fez ao actual e ao ex-Primeiro Ministro bem como à Procuradora-Geral da República e às reparações históricas foram no mínimo infelizes, mas situam-se na área da política. Já a referência às suas relações familiares revestiu-se de um carácter completamente diferente. E o carácter dessa referência poderá ter minado a confiança de grande parte dos portugueses no Presidente da República de uma forma possivelmente irreversível. O que não deixará de ter consequências na relação dos portugueses com a instituição da Presidência da República criando um ambiente político degradado.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Maio de 2024

Imagens retiradas da internet

segunda-feira, 29 de abril de 2024

HAVIA UM PAÍS

 


Havia um país que nunca tinha conhecido verdadeiramente a Liberdade que acompanha um regime verdadeiramente democrático. Há quase cinco décadas que vivia num regime ditatorial saído de um golpe de estado militar que rapidamente havia devorado os militares que a tinham feito. Em vez de partidos havia um movimento afecto ao regime, do qual saiam deputados, governadores civis, presidentes da câmara e de freguesia. Havia uma assembleia, mas a escolha de deputados do tal partido único era feita em arremedo de eleições. O próprio presidente da República tinha passado a ser escolhido no interior do regime, depois de uma eleição em que um candidato oposicionista quase era eleito, para poucos anos depois ser assassinado. Quem praticou esse crime foi a polícia política que protegia o regime apoiada em legislação específica, quando não mesmo frequentemente fora dela. Muita gente era presa por essa polícia que praticava também tortura e muitas vezes mantinha pessoas presas mesmo sem decisão judicial ou até depois dela, por simples decisão policial. Esse país estava em guerra em territórios que sobravam de um antigo império colonial que queriam ser independentes, mesmo quando todos os países europeus já tinham procedido à descolonização dos seus territórios ultramarinos. Os soldados mortos ou estropiados contavam-se por milhares, espalhando-se ainda uma autêntica pandemia escondida: a do transtorno pós-traumático dos soldados regressados da guerra. Nesse país não havia liberdade de imprensa e os jornais eram sujeitos a uma censura prévia. Havia muitos livros proibidos pelos mais diversos motivos e mesmo a leitura de livros comprados nas livrarias era, por vezes, objeto de acção repressiva por decisão pessoal de polícias invadindo a vida particular das pessoas. Sob a capa de uma intenção de protecção da família, às mulheres desse país eram negados os mais elementares direitos, desde proibição de algumas profissões, à negação do divórcio ou até de saída ao estrangeiro sem autorização do marido. Claro que não podiam votar e o flagelo do aborto era praticado às escondidas sem cuidados médicos com possibilidade de ir parar à cadeia.

Antes, tinha havido uma República breve de pouco mais de quinze anos que não deixara muitas saudades, antes um país dividido mergulhado em confusão e violência que nunca conseguiu instaurar uma verdadeira democracia. Nos cem anos anteriores esse país foi invadido por exércitos estrangeiros que destruíram grande parte do território, quer nas cidades quer no mundo rural, tendo as elites fugido e abandonado os povos à sua sorte. Após o que se lhe seguiram anos sucessivos de pilhagens, revoluções e mesmo guerras civis. Todo um século de desgraças em que o país regrediu imenso face aos seus congéneres europeus em todos os aspectos.

Mas antes disso, esse país havia ainda vivido 285 anos, praticamente três séculos, sob o terror permanente de uma Inquisição que fiscalizava a vida de toda a gente de uma forma absoluta, sem que houvesse hipótese de defesa depois de se ser acusado.


É impossível que estes séculos de submissão e mesmo humilhação colectiva, não tenham tido consequências no sentimento profundo das populações desse país. Assim se compreende melhor que, num momento em que de repente a Liberdade aparece como uma verdade possível para toda a gente, tenha surgido uma sensação generalizada de alívio e de genuína satisfação que surpreendeu tudo e todos pela sua intensidade. E é impressionante e mesmo comovente que, apesar de todo o passado dos últimos trezentos e tal anos, os últimos cinquenta sejam de vida em democracia e Liberdade. Da primeira vez que o pôde fazer o Povo desse país agarrou a oportunidade com as duas mãos e, com inteligência e maturidade, nas urnas de voto que é a sua arma verdadeira, sucessivamente defendeu o seu futuro em Liberdade. Claro que nesse país com mais de oitocentos anos há muito por fazer e para melhorar, mas que que o possa fazer em democracia e Liberdade é algo que se deve saudar, acarinhar e, sobretudo, defender.

Portugal é esse país. Ao povo português, a que pertenço, obrigado por tudo.

Publicado originalmente em 29 Abril 2024

Imagens retiradas da internet