segunda-feira, 6 de maio de 2013

QUEIMA: não te queimes


Nestes dias, Coimbra não parece a mesma. Chegou a Queima das Fitas, festa maior da Cidade. Momento único de união dos conimbricenses com os estudantes da sua Universidade, mesmo ou sobretudo com aqueles que, não sendo de cá, para Coimbra vieram tirar o seu curso superior. Não partilho da opinião de quem acha que nesta altura o melhor é fugir de cá. A alegria dos estudantes e das suas famílias é contagiante. Sente-se ser talvez o último momento de entusiasmo inocente, ligado ainda a um tempo ligeiro, sem grandes preocupações, para além das notas, mesmo numa altura em que um curso superior já não é garantia de emprego, muito longe disso.
A Queima das Fitas (de Coimbra, claro, há outras?) atingiu um patamar que a coloca entre os maiores festivais da Europa. Pela sua duração, pelo nível e variedade dos espectáculos e outros acontecimentos, nomeadamente desportivos, pela enorme capacidade de atracção de visitantes à Cidade.
Desde a Serenata Monumental que enche de gente a velha Alta até ao Baile de Gala passando pelas noites do Parque, pelo Cortejo e por toda uma oferta cultural e desportiva, é um nunca acabar de actividades que deixam aos estudantes pouco tempo para descansar e recuperar forças.
A Cidade beneficia com esta grande Festa, desde o comércio à hotelaria, sem esquecer a notoriedade e a ligação a Coimbra que para sempre ficará no afecto destes jovens e que em grande parte explica a mística de Coimbra no mundo inteiro, valor imenso praticamente indestrutível.
Há certamente aspectos na Queima a pensar e a rever, essencialmente ligados ao consumo de alcool e substâncias ilícitas, não se devendo ignorar este problema, fingindo que não existe. Claro que em Portugal temos uma cultura tradicionalmente laxista relativamente ao consumo de bebidas alcoólicas, mas que a Queima seja conhecida como a festa com o maior consumo de cerveja da Europa não é propriamente uma marca muito recomendável, a não ser para os seus vendedores. Os comportamentos que o exagero desse consumo propicia têm frequentemente consequências lamentáveis e tristes para a vida dos jovens, às vezes mesmo para sempre.
A festa da Queima é bonita, principalmente para os estudantes que a vivem e que são a sua razão de ser. Que para todos fique como uma boa memória de um tempo feliz e de uma Cidade amiga.







Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Maio de 2013

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Mestre da vida: Mário Silva


Neste 25 de Abril um grupo de amigos teve a oportunidade de acompanhar Mestre Mário Silva no Pavilhão Centro de Portugal enquanto pintava um painel representativo de Coimbra. Oportunidade que é um privilégio: a possibilidade de ver Mário Silva fazer surgir do nada uma paisagem de Coimbra através de pinceladas fortes, bruscas, aparentemente desconexas, que por si só parecem não ter qualquer significado, é realmente uma experiência inesquecível.
Mário Silva afirma que nasceu artista e é isso mesmo que toda a sua vida demonstra. Artista maior da pintura, sim, representado em inúmeros museus e academias um pouco por todo o mundo. Mas Mário Silva é um Homem muito para além disso. Tomou a Liberdade como sua e nunca prescindiu dela, em todos aspectos da sua vida. Irreverente, por vezes mesmo iconoclasta derrubando tradições e convenções, o seu espírito nunca se vergou nem se deixou aprisionar, mesmo quando encerrado fisicamente entre paredes de forma arbitrária. Esse culto da Liberdade não o levou à atitude egoísta de ignorar ou menosprezar os seus semelhantes, como tantas vezes sucede com os grandes artistas. Basta ver o local que escolheu para viver, entre pescadores que o tratam como um dos seus, para perceber quão elevado é o seu sentido de Igualdade e como esse sentido orienta a sua relação com os demais. Mário Silva não enriqueceu com a pintura, o que até lhe teria sido fácil, dado o estatuto que alcançou a nível nacional e no estrangeiro. Não é pessoa que guarde para si, quando ao seu lado alguém tem necessidades. A sua generosidade releva de um espírito Fraterno em alto grau. Mário Silva não é dos que pregam uma coisa e praticam o contrário. A sua disponibilidade para participar nos mais diversos encontros e eventos é total, fazendo-o sempre de forma construtiva e trazendo sempre algo que melhora os outros em alguma coisa.
À medida que aplicava a tinta à sua maneira impetuosa e aparentemente anárquica, no grande painel ia-se formando uma paisagem urbana que todos sabemos ser Coimbra, embora não se pareça com nenhuma fotografia e saia das mãos de Mário Silva como a concretização daquilo que lhe habita o espírito. A representação geral é de Coimbra, não o sendo. Os pormenores da cidade estão lá, ainda que só as nossas próprias memórias pessoais, tal como provavelmente as dos pintor, os lá coloquem.
Um grande artista é assim mesmo. Em vez de reproduzir a realidade, mesmo que a seu modo, antes a destrói e desmonta, para a seguir a reconstruir integrando a sua própria visão. E assim nós, leigos, somos convidados pelo Artista a ver aquilo que nunca antes se nos tinha apresentado com clareza.
Obrigado, Mário Silva, não só pela Arte, mas pelo exemplo de vida e por nos dar a ver o que tantas vezes lá está e não somos capazes de ver.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 29 de Abril de 2013

segunda-feira, 22 de abril de 2013

UM PAÍS A PRETO E BRANCO



“A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de ...  abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.” – Do preâmbulo da Constituição da República Portuguesa.

As leis vêm quase sempre acompanhadas por um preâmbulo que explica o contexto do seu surgimento e objectivos a que se propõe e tem muitas vezes a função de servir de chave interpretativa do que fica escrito na Lei. O mesmo sucede com a nossa Constituição. A decisão do Tribunal Constitucional de declarar inconstitucionais quatro medidas do Orçamento Geral do Estado para este ano foi formalmente baseada na defesa do princípio da Igualdade, defendendo os direitos dos funcionários públicos perante os outros trabalhadores, mas não deixa de estar em consonância com a abertura do caminho para uma sociedade socialista, já que historicamente mais socialismo é igual a mais Estado e menos Iniciativa Privada. E parece-me que a maioria dos cidadãos se terá esquecido que a nossa Constituição, mesmo depois de todas as revisões que sofreu, ainda contém o preâmbulo que acima cito.
O processo deliberativo do Tribunal Constitucional que levou àquela decisão merece ser mais bem conhecido, até porque levou o Governo a ter que desencantar mais 1300 milhões de euros para restaurar o já por si difícil equilíbrio das contas do Estado. Ao contrário do que o seu nome poderá levar a crer, o Tribunal Constitucional é um órgão político. De facto, dez dos seus juízes são indicados pela Assembleia da República. Curiosamente, os outros três, que são cooptados, votaram todos contra a inconstitucionalidade das normas em questão, com excepção do Artº 117 referente à contribuição nos subsídios de desemprego e doença em que só um deles votou pela constitucionalidade. Dos dez juízes nomeados politicamente, os indicados pelo PS votaram em bloco pela inconstitucionalidade e os indicados pelo PSD dividiram-se. Em suma, tirando o Artº 117, o resultado foi sete contra cinco e uma “abstenção”. Tudo menos unanimidade na definição da tal inconstitucionalidade do tratamento “desigual” de funcionários públicos, havendo no entanto clareza cristalina num aspecto: todos os juízes do TC seriam prejudicados financeiramente, caso optassem pela constitucionalidade da retirada do subsídio de férias.
Se membros da maioria governamental andaram mal quando antes da decisão do Tribunal Constitucional tentaram de forma óbvia influenciar o sentido da decisão, muito mal andaram oposicionistas quando partiram logo para a consideração do Governo como ilegal exigindo o fim imediato da austeridade. Acontece que estamos a mais de metade do caminho definido no Memorando de Entendimento assinado com a Troika pelo governo anterior. É certo que a economia tarda a recuperar e o desemprego atinge níveis trágicos nunca antes vistos. Mas o aumento da produtividade nacional é um facto, bem como a descida do défice das contas públicas e, curiosamente, Portugal tem agora excedente de exportações sobre importações, o que não sucedia há décadas.
Em resultado da decisão do Tribunal Constitucional, analistas estrangeiros comentaram que Portugal tem a última constituição socialista da Europa. Mal eles sabem como têm razão, já que se conhecem as justificações da decisão, certamente não leram nunca o preâmbulo da Constituição que os esclareceria sobre o espírito que enforma a nossa lei fundamental. A tão falada reforma do Estado tem mesmo que começar por aqui, a sério, em vez de se andar a brincar às reformas de Freguesias.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de Abril de 2013

segunda-feira, 15 de abril de 2013

COIMBRA NA SUA REGIÃO


A Orquestra Clássica do Centro voltou a Águeda no sábado passado. O público que encheu por completo o Cine Teatro daquela Cidade ficou entusiasmado com um concerto dedicado à interpretação de Aleluias de compositores como Mozart, Haydn, Mendelssohn e Vivaldi.
À OCC juntaram-se o excelente coro de S. João da Madeira e o virtuosismo das vozes de Margarida Reis, Brígida Silva e Cecília Fontes partilhando de forma intensa toda a alegria que transparece daquelas obras. Pessoalmente, sem querer ser injusto para com as outras obras, saliento a forma magistral como foi interpretado o Glória de António Vivaldi, um compositor tradicionalmente ligado apenas às suas “4estações”, mas que é cada vez mais reconhecido como uma das estrelas mais brilhantes do firmamento dos maiores compositores e que tem aqui um dos seus momentos altos.
Quer os responsáveis pela realização do Concerto promovido pela Misericórdia de Águeda, quer os espectadores que de Coimbra se deslocaram àquela Cidade foram unânimes nas considerações que fizeram à actuação da Orquestra: o nível atingido não fica nada a dever às melhores orquestras nacionais e estrangeiras. O actual maestro David Lloyd, além de um executante reconhecidamente brilhante do seu instrumento, a Viola, tem demonstrado uma competência excepcional na Direcção dos músicos da Orquestra, quer na preparação das peças, quer na interpretação durante os Concertos. O prazer dos
músicos profissionais da OCC em tocar sob a Direcção de David Lloyd é patente e transmite-se de imediato ao público, dando origem a uma intensa partilha de emoções como só a linguagem da música de qualidade consegue proporcionar.
Isto é Coimbra no seu melhor. Uma Orquestra sediada em Coimbra leva a toda a sua região Cultura ao seu nível mais alto, daquela forma simples que é sempre resultado de uma exigência permanente pela excelência, sem concessões ao facilitismo. Exactamente a atitude que Coimbra deveria adoptar em todas as áreas: colocar-se de forma natural e não arrogante à disposição de toda a Região, para com ela partilhar o que tem de melhor, assim subindo o nível médio, o que é do interesse de toda a Região
Claro que, para isso, Coimbra tem de reconhecer com clareza o que encerra de melhor em si mesma, também em termos culturais, o que exige uma ultrapassagem clara dos limites estreitos do nosso tradicionalismo que é necessário defender, mas não pode ocupar todo o espaço. Coimbra não pode ainda estar sujeita a caprichos pessoais, seja de quem for, contratando para aqui actuar orquestras de outras regiões, que não acrescentam um pingo de qualidade ao que cá existe e reduzindo o amor-próprio da Cidade, tal como sucedeu recentemente.
Caro leitor: espero que tenha ficado com pena de não ter ido a Águeda no sábado passado. Mas pode ultrapassar facilmente esse sentimento. A OCC vai interpretar este programa de Aleluias em Coimbra na próxima sexta-feira dia 19, no Mosteiro de Celas. Vá, verifique por si a verdade do que aqui escrevo e entusiasme-se com todas aquelas músicas lindíssimas e, em particular, com a espectacularidade singularmente bem moderna de Vivaldi.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Abril de 2013

segunda-feira, 8 de abril de 2013

“OS PORTUGUESES NÃO SABEM CONDUZIR”



Depois de um período pascal que este ano foi particularmente mortífero nas estradas portuguesas, o presidente do ACP fez o comentário que serve de título a esta crónica. A afirmação é uma evidência para toda a gente e não apenas pelos resultados letais dos inúmeros acidentes.
Basta circular pelas nossas estradas, ou mesmo pelas ruas das nossas cidades. É raro encontrar um automobilista que ligue o respectivo pisca quando muda de direcção, assim assinalando previamente a manobra aos outros utentes da estrada. Todos os dias nos acontece que um carro que circula à nossa frente pára de repente sem fazer qualquer sinal, por exemplo para largar um passageiro. Nas rotundas é um autêntico festival de asneiras: uns condutores fazem toda a rotunda pelo exterior; outros circulam pelo interior e quando pretendem sair atravessam as vias todas de seguida.
Na auto-estrada, muitos condutores seguem calma e placidamente pela via da esquerda. Assinalar previamente a mudança de via, para a direita ou para a esquerda, é uma atitude que se vê menos vezes do que um cometa. É frequente encontrar automobilistas que travam de repente na auto-estrada sem que se descortine qualquer razão para tal.
O estacionamento nas nossas cidades pratica-se sem quaisquer constrangimentos sobre os passeios, limitando ou mesmo impedindo a livre circulação de peões. A paragem de viaturas em segunda fila em ruas com traço contínuo, obrigando os outros condutores a passar por cima desse traço é uma situação que se vê todos os dias.
A circulação em claro excesso de velocidade no interior das cidades é igualmente uma constante. Todos os peões conhecem aquela situação de serem saudados pelos condutores que, de tão depressa que vão, não conseguem ou nem tentam parar antes da passadeira.
Encontramos faltas de segurança na circulação automóvel ditadas pelo absoluto desconhecimento das características técnicas dos veículos por parte da esmagadora maioria dos automobilistas, numa altura em que os carros dispõem de variados equipamentos que funcionam independentemente da vontade dos condutores. Equipamentos esses desenvolvidos para aumentar a segurança da circulação automóvel, mas que pressupõem um conhecimento mínimo da forma como funcionam, na falta do qual, os condutores poderão criar riscos muito maiores do que se não existissem. Só para dar um exemplo, a maioria dos automobilistas está convencida de que o ABS serve para parar em distância mais curta.
Aqui há uns anos, perguntaram a um embaixador britânico que estava de regresso ao seu país qual a maior diferença que tinha encontrado entre Portugal e o seu país; respondeu que no seu país os automobilistas travam quando o semáforo passa de verde para amarelo e aqui aceleram! Grande parte dos condutores portugueses comporta-se como tendo também comprado a estrada para si, quando compra o automóvel.
O cumprimento do Código da Estrada tornar-se-ia muito fácil com o simples cumprimento de regras de civilidade e boa educação. Pois! Mas de facto seria esperar muito que os portugueses fossem na estrada diferentes do que são no dia-a-dia.
Nota aos meus leitores que esperariam que hoje escrevesse sobre a actualidade política: este texto também é sobre política.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Abril de 2013

segunda-feira, 1 de abril de 2013

O NARRADOR PRESO NO LABIRINTO DA SUA NARRATIVA



O termo “narrativa” entrou subitamente como um furacão na linguagem comum. Dos dicionários aprendemos que uma narrativa é uma história contada por alguém, relatando um conjunto de acontecimentos, reais ou imaginários, com intervenção de uma ou mais personagens num espaço e num tempo determinados (Dic. Priberam de Língua Portuguesa). Em política, começou-se a chamar “narrativa” à interpretação da realidade feita pelos adversários, logo longe da realidade. Foi assim que, numa entrevista recente, um político que teve grande relevância até há pouco tempo, atribuiu essa designação de forma obsessiva a todas as intervenções que não lhe interessavam. Mesmo as perguntas feitas com intuito obviamente jornalístico, passaram a ser parte de determinada “narrativa” que pretenderia construir uma interpretação errada ou mesmo falsa do que tem acontecido no país nos últimos anos: a utilização da velha técnica de não responder a uma pergunta, antes interpretando o interesse do perguntador em formulá-la.
A tal narrativa dos jornalistas reflectiria apenas que os actuais detentores do poder político, teriam montado toda uma ficção sobre o que tem acontecido em Portugal primeiro, para tomarem o poder, e depois para procederem a uma sistemática e desejada destruição do país.
O autor desta tese, embora possa ter aprendido muita filosofia política em pouco tempo, no seu afã de proceder à sua vingança pessoal não se dá conta de várias coisas. Em primeiro lugar, ao classificar qualquer outra perspectiva da realidade como uma “narrativa”, está-se a colocar na posição de querer impor a todo o custo a sua própria “narrativa” que não passa disso mesmo: a sua narrativa. A introdução do relativismo exacerbado na análise política distorce a realidade, escondendo a verdade dos acontecimentos sob um monte de manipulações e misturas de mentiras com meias verdades. E a longo prazo isso não pode ser bom para ninguém, incluindo os próprios manipuladores.
Depois, todos conhecemos bem a tentação em reescrever a História. Isso tem sido feito ao longo dos tempos das mais diversas formas. Desde as crónicas antigas, até às memórias escritas pelos modernos líderes políticos no fim das suas vidas públicas, puxando pelos aspectos positivos e eliminando ou amenizando outros. Temos ainda os processos mais radicais, como fazia Estaline ao limpar das fotografias oficiais os camaradas caídos em desgraça.
Mas há algo mais perigoso para o próprio protagonista quando ele pretende ainda, e de forma evidente continuar a ser interveniente activo, cavalgando tudo e todos de forma brutal, incluindo aqueles que lhe sucederam politicamente. Vivemos numa sociedade aberta, e se alguns ainda têm medos ancestrais do poder ou de quem o possa vir a ter, a verdade tem hoje processos de vir ao de cima, sem contemplações. E quem pretende reescrever a História impondo as suas narrativas a toda a força, arrisca-se a ter um choque frontal e violento contra a realidade dos factos indesmentíveis e patentes à frente de toda a gente. A meu ver, é isso mesmo a que estamos todos a assistir neste momento. O que se vai suceder não será certamente muito bonito de se ver mas será a prova de que não é possível enganar toda a gente durante o tempo inteiro.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Abril de 2013

segunda-feira, 25 de março de 2013

É só esperar.

Eurogrupo admite que Chipre vai ser exemplo a seguir em caso de problemas na banca - Zona Euro - Jornal de Negócios

DRONE FINANCEIRO SOBRE NICOSIA


A ilha de Chipre localizada estrategicamente no Mediterrâneo, bem perto do Médio Oriente e que desde 1974 se encontra dividida entre gregos e turcos, experimentou na semana passada os efeitos uma nova arma financeira comandada a milhares de quilómetros de distância. Face aos apertos do sistema financeiro cipriota, a Alemanha resolveu inventar uma nova solução e levar o Eurogrupo a impô-la aos cipriotas: um imposto directo sobre todos os depósitos bancários.
Mais uma vez um país está refém dos desmandos do seu sistema financeiro, isto é, dos seus bancos. Ao longo dos anos, este pequeno país com cerca de 800.000 habitantes viu os seus bancos crescer de uma forma perfeitamente desmesurada. Num país com um produto a rondar os 18 mil milhões de euros, o que representa apenas 0,2% da economia da zona euro, o sistema bancário chegou a deter 128 mil milhões de activos. Claro que isso foi resultado de uma política agressiva de atracção de capitais através de baixa taxação e de altos juros, que se aproximou muito de fábrica internacional de lavagem de dinheiro, intensamente aproveitada por russos e árabes. Os bancos cipriotas investiram muito desse dinheiro em dívida pública grega, pelo que a famosa renegociação dessa dívida com os credores privados levou inexoravelmente à sua pré-falência obrigando-os, por sua vez, a renegociar as dívidas aos seus depositantes. Contas feitas, a necessidade de fundos para equilibrar o barco será de 15,8 mil milhões de euros, coisa até pequena face aos valores dos resgates da Grécia, de Espanha e até de Portugal.
Sucede, no entanto, que desta vez a Troika, seguindo a “sugestão” alemã, resolveu inovar no “desenho” da solução. Se aprovava um empréstimo de 10 mil milhões, para o valor restante resolveu não ficar à espera dos resultados de reformas e encontrou uma maneira de obrigar Chipre a obter de imediato os restantes 5,8 mil milhões, através de um imposto sobre todos os depósitos bancários. Deixando em paz os accionistas dos bancos e os responsáveis pela regulação que, mais uma vez, ficaram a descansar na forma, a troika enviou um drone comandado pelos eurocratas que tudo definem a partir dos seus gabinetes em Bruxelas.
O parlamento cipriota rejeitou liminarmente esta solução, o que levou a que o governo tentasse negociações com a Rússia que se revelaram igualmente infrutíferas. Um plano alternativo apresentado a Bruxelas foi igualmente recusado. Entretanto, foi possível ouvir ameaças claras absolutamente insuportáveis para um país soberano, ainda que necessitando de apoio financeiro, ao proibir-se Chipre de encontrar solução fora da troika e ameaçando com a paciência da mesma (melhor dizendo, da falta dela). Suspeita-se que pelo meio estarão os interesses russos sobre o gás natural cipriota cobiçados igualmente pela Alemanha, hoje em completa dependência da Rússia nesse aspecto.
Toda esta história, que ainda não terminou, põe em cima da mesa pelo menos três aspectos que nos interessam directamente: o sistema bancário europeu continua a ser fonte de problemas gigantescos para todos, excepto os donos dos bancos; os burocratas de Bruxelas perderam todos os pruridos para obter os seus fins, inclusivé enterrando a Democracia; por fim, e com pena o digo, não estamos livres de que num dia destes Bruxelas não envie um drone para Lisboa e outras capitais com os mesmos comandos do que foi até Nicosia confiscar os depósitos particulares. Isto porque no Eurogrupo todos aprovaram essa medida, incluindo Portugal, pelo que depois não se poderão queixar, quando o drone os visitar.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 de Março de 2013

segunda-feira, 18 de março de 2013

Dame Kiri Te Kanawa sings "Ah! je ris de me voir si belle"

CAVALO DE TRÓIA



Ao longo dos séculos, a Humanidade foi desenvolvendo simbolismos que, só por si, dizem mais de muitas situações do que grandes e elaborados discursos.
Durante a Guerra de Tróia, os gregos verificaram a sua incapacidade para tomar Tróia pela força, após longo cerco sem consequências de maior para a cidade sitiada. Os sitiantes decidiram então montar uma grande operação de retirada logo festejada pelos troianos que, pela manhã, tiveram oportunidade de verificar que os gregos tinham deixado para trás um grande cavalo de madeira. Tomando a estátua como símbolo da sua vitória, transportaram-na para o interior das muralhas e deram largas à sua alegria com festas prolongadas bem regadas com vinho.
O resto da história também é bem conhecido. Quando os troianos descansavam exaustos pelos seus festejos, do interior do cavalo saíram soldados gregos que abriram os portões ao regressado exército grego, possibilitando assim a conquista e destruição da cidade até então inexpugnável, causando a desgraça e morte dos seus habitantes. Se o “Cavalo de Tróia” é símbolo de esperteza e foi motivo de júbilo para que o utilizou, pelo outro lado o seu simbolismo ficou ligado à arrogância, cegueira e desgraça de quem o meteu dentro das muralhas da Cidade que devia defender.
Os troianos morerram e a morte é também motivo de simbolismos, muitos deles de ordem religiosa, tendo dado origem a imensas manifestações artísticas, também musicais, como atestam as numerosas composições de “Requiem”. A Primavera que chega dentro de três dias é igualmente um símbolo poderoso: o da vitória da vida sobre a morte, da cor sobre o cinzento, da alegria sobre a tristeza. O ponto vernal que marca a passagem da eclíptica para norte do equador celeste assinala o início do período do ano em que os dias vão ser maiores que as noites, em que há mais luz que escuridão. Certamente não por acaso, é também nesta altura do ano que a cristandade celebra igualmente a sua Páscoa, a sua festa maior, a única que verdadeiramente dá razão de ser ao cristianismo. Por todos estes motivos, numerosas composições musicais celebram esta alegria, motivo por que se chamam “Aleluia”.
Caro leitor, pode pensar que os símbolos não são hoje em dia mais do que um arcaísmo destinado apenas aos livros e a quem se dedica ao estudo da História. Nada de mais errado, já que a Humanidade evoluiu muito na sua organização e na satisfação das necessidades essenciais e mesmo das inventadas, mas os homens e mulheres continuam a ser o mesmo: pessoas que sonham, amam e desejam construir um futuro melhor para si e para os outros. Claro que a inveja e a destruição não desapareceram da face da Terra. Mas a História deixou-nos ainda um aviso que devemos ter presente: Roma não paga a traidores e, quem se convence de que pode suceder o contrário, tem normalmente dissabores desagradáveis.
E é mesmo verdade: depois do Inverno vem sempre a Primavera.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Março de 2013


http://youtu.be/cQgd0vx3nYM



segunda-feira, 11 de março de 2013

11 DE MARÇO

Há poucos dias tive a oportunidade de assistir a uma entrevista televisiva de uma senhora que se apresentava como historiadora e que foi amplamente distribuída pela internet. Durante algum tempo foi debitando os comentários habituais sobre a austeridade, sobre o neo-liberalismo, sobre a venda ao desbarato das grandes empresas públicas aos estrangeiros, sobre a indignação, etc. O habitual. Questionada sobre quais as saídas alternativas à troika, já que só por nós não nos conseguimos financiar para o país viver o simples dia-a-dia, saiu-se com a recordação das nacionalizações de 1975 que, segundo a historiadora, até deram bom resultado.
Como se dá a circunstância de hoje ser o dia 11 de Março, aproveito a oportunidade para recordar essa data. Na sequência do 25 de Abril e do 28 de Setembro, vivia-se então o PREC, sendo presidente da República o General Costa Gomes e primeiro-ministro o Coronel Vasco Gonçalves. Entre manifestações permanentes e lutas mais ou menos escondidas entre PCP e extrema-esquerda pelo controlo do MFA, o país vivia num sobressalto permanente, sem se perceber para que tipo de “socialismo” se iria virar, já que fora disso parecia não haver nenhum caminho possível. A certa altura começou a circular um boato sobre uma suposta “matança da Páscoa” que estaria a ser preparada pelas forças extremistas de esquerda. Tal bastou para que os spinolistas, afastados da decisão política a partir da demissão de Spínola na sequência do 28 de Setembro, tentassem um golpe militar, precisamente em 11 de Março de 1975. A derrota foi completa, tendo parte das conversações entre os militares no terreno sido feitas em directo, diante das câmaras de televisão e do microfone de Adelino Gomes, uma originalidade bem portuguesa.
Poucos dias depois, surgiam as nacionalizações em força, tendo o recém-formado Conselho da Revolução tomado a decisão de nacionalizar a banca e os seguros em 14 de Março, a que se seguiu boa parte da economia. Em pouco tempo o estado era proprietário de mais de 1.300 empresas, incluindo hotéis, fábricas de transformação de tomate, de cerveja e mesmo barbearias. No fim desse Verão, o Estado detinha o controlo de 20% do PIB e as nacionalizações eram consideradas fundamentais para a transição para uma sociedade socialista na Assembleia do MFA de 19 de Abril.
O que se seguiu é bem conhecido. Pouco tempo depois, logo em 1978, estávamos a chamar o FMI pela primeira vez, para nos ajudar perante o descalabro das contas públicas e da economia. Esquecido o “caminho para o socialismo”, com todas as garantias sociais na “Constituição mais avançada do mundo”, mas sem dinheiro para as pagar, viemos lentamente a descambar até à actual situação em que temos a taxa mais elevada de auto estradas por habitante da Europa, sem dinheiro para as pagar e sem carros a passarem por lá. Sem produção, endividadíssimos, com contas públicas deficitárias, com desemprego galopante, vemo-nos obrigados a vender os anéis, isto é, os resquícios empresariais das nacionalizações de 75. E ainda temos que ouvir os disparates de “historiadoras” que não conseguem outras saídas senão voltar aos erros crassos das nacionalizações! Haja paciência.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 11 de Março de 2013

segunda-feira, 4 de março de 2013

…MAS COIMBRA TEM MAIS ENCANTO



Assim termina um artigo recentemente publicado por um deputado socialista que, a propósito de uma recente reunião do seu partido em Coimbra, resolveu envolver a sua opinião sobre o significado político daquele encontro supostamente unificador do partido Socialista em considerações sobre a cidade. Coimbra é talvez, entre as cidades portuguesas, aquela que mais referenciais históricos oferece para utilizar como fundo para a passagem de mensagens dos mais diversos tipos e pelos mais variados autores.
O articulista informa melancolicamente que, não tendo estudado em Coimbra, admira contudo as amizades profundas que ligam para a vida os que por cá passaram. Faz ainda alguns comentários certeiros e outros menos justos para a Cidade, mas que devemos olhar com atenção, porque quem observa de fora tem normalmente uma visão mais abrangente, já que livre das pequenas coisas que o dia-a-dia produz; tal como quem está entre as árvores não consegue abarcar a visão da floresta como um todo.
O deputado lembra que Coimbra marca de facto pelo mistério, encanto e sedução, evocando a magia das serenatas e a excelência na saúde, pelo elevado nº e qualidade dos médicos; aponta com razão a aposta da Universidade em alguns nichos de excelência. Mostra como é mau para a Cidade que a Académica seja assumida como segundo clube de muita gente. Aponta a existência de algumas empresas que são ponta de lança em áreas de extrema sofisticação.
Mas quem está de fora também é muito sujeito a preconceitos e ideias formadas sem sentido, o que é o caso. É assim que não foge ao lugar-comum da crítica ao “Portugal dos Pequenitos”, como se hoje o parque temático infantil tivesse mais importância do que como local de diversão para os mais pequenos. Tal como faz a ligação da Universidade a Salazar, o que já vai longe e não tem no presente qualquer significado, para além do histórico que se refere, aliás, a poucas dezenas de anos numa Universidade com mais de sete séculos de existência. Que a Universidade de Coimbra tivesse sido a única em Portugal durante séculos é uma questão nacional e não de Coimbra, além de que esse facto teve certamente consequências positivas como a existência da língua nacional e de um grande país uno como o Brasil. Apontar uma suposta decadência de Coimbra ligada à marca da portugalidade faz hoje tanto sentido como esperar pelo Desejado.
Claro que quem chega observa ainda aspectos que vêm do passado e dos quais Coimbra tem que se livrar completamente, se quer ser cada vez mais progressiva e aberta ao mundo. A chamada doutorice, doença que derrama da universidade para a cidade, é uma pecha grave que tem consequências sociais e políticas importantes. Hoje em dia nem tem muito a ver com a Universidade em si, bastando para tal concluir, ver a forma como os últimos Reitores têm feito esforços para estabelecer ligações de colaboração íntima com o governo da Cidade. Mas ainda é possível ver com alguma frequência utilizar o título académico como forma de afirmação pessoal em vez da capacidade de realização.
Outra observação certeira do deputado foi aquilo que chamou “revolução alcoólica”. Na realidade, se há algo que Coimbra deveria alterar completamente é a ligação das festas académicas ao consumo excessivo de álcool. E isso tem que ser objecto da atenção de todas as entidades responsáveis da Cidade, e não apenas das forças policiais da estrada, já que Coimbra não deseja certamente passar a ser internacionalmente conhecida como a capital europeia da bebedeira!

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 Março 2013

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

EUROPA, a ponte

A opinião dos portugueses sobre a Europa já terá conhecido melhores dias. De facto, o mito da Europa, isto é, de que a adesão à União Europeia constituiria só por si garantia de que os portugueses passariam a pertencer para sempre ao clube dos mais ricos com a respectiva qualidade de vida, esfumou-se com uma crise que, de aguda, se transformou em crónica, para mal dos nossos pecados.
Foi certamente com essa visão mítica, algo ingénua e mesmo um pouco deslumbrada sobre a Europa que, nos anos 90, Coimbra avançou com o nome “Europa” para uma necessária ponte a construir na zona da Boavista. Aquela ponte encontrava-se prevista no Plano Rodoviário Nacional e o PDM de Coimbra classificava-a como de “importância regional”. Os estudos então feitos apontavam para aquele local como o mais adequado para a nova ponte, tendo em atenção a necessidade ligar a EN 17 (a chamada estrada da Beira) à EN1 (IC2) e a falta de uma nova ligação rodoviária urbana entre as margens do Mondego a montante da Ponte de Sta. Clara.
Se até aí correu tudo bem, a partir da escolha do local correu tudo mal. Uma empreitada que foi adjudicada por cerca de 29 milhões de euros veio a custar, na realidade, mais de 65 milhões de euros. A abertura da ponte ao tráfego, inicialmente prevista para Dezembro de 2001 só se veio a verificar em Junho de 2004, depois de um atraso de dois anos e meio. Tudo isto numa obra que o então ministro do Equipamento Social afirmou alto e bom som que seria exemplar: “nem mais um dia, nem mais um centavo!”
Os problemas resultaram de uma questão crucial: a adjudicação foi feita, não com base num projecto de execução como deveria ser, mas sim apenas com um anteprojecto; o projecto de execução veio a ser entregue ao empreiteiro 3 meses depois da consignação da obra. Para quem queria que esta fosse uma obra pública exemplar, está tudo dito. Ou quase. Porque mesmo esse projecto não foi devidamente revisto por uma entidade competente para o fazer e veio a verificar-se ser impraticável, causando os adiamentos e aumentos de custos referidos.
A ponte veio a mudar de nome para Ponte Rainha Santa Isabel. Homenagem da Cidade à sua padroeira, abandonando uma designação que remetia para uma atitude reverencial a algo a que pertencemos de direito e de facto, não necessitando de homenagens serôdias. É uma ponte bonita, que resulta particularmente expressiva quando iluminada à noite, pelo efeito de vela dos cabos de sustentação.
No entanto, é incompreensível que uma ponte urbana não possa ser atravessada a pé, nem sequer de bicicleta. Não tem passeios, mais parecendo uma ligação de uma auto-estrada que não existe. O projecto inicial previa uma passagem pedonal sob o tabuleiro da ponte, que nunca veio a funcionar como tal, supostamente porque a alteração do projecto reduziu a altura útil da passagem, impedindo a circulação normal de peões e bicicletas.
A ironia do destino veio a ditar que a designação “Europa” para a ponte estivesse associada a incompetência técnica, incapacidade de decisão e decisões políticas erradas. Como se vê, em completa consonância com a Europa de hoje. Valha a verdade, antes o simbolismo da Santa Padroeira que transformou pão em rosas, com quem a Cidade tem uma relação de confiança há centenas de anos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 de Fevereiro de 2013

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

ESCREVER E REESCREVER A HISTORIA

Ai dos vencidos, terá exclamado Breno quando fez aumentar o resgate a pagar pela libertação de Roma atirando a sua pesada espada para cima da balança. A História é de facto muitas vezes favorável aos vencedores, já que escrita por eles próprios, pelos seus apoiantes ou apenas por aqueles a quem dá jeito estar com quem ganha o poder. Terá sido o caso do próprio Shakespeare quando estabeleceu a “verdade” para a História acerca de Ricardo III, último Rei inglês da família dos Plantagenetas, morto a lutar em plena batalha de Bosworth no longínquo dia 22 de Agosto 1485. Era do interesse dos Tudor, nova família reinante, que Ricardo III fosse recordado como um monstro, ideia que ainda hoje prevalece.
 A recente descoberta do esqueleto de Ricardo III não trará novidades à História. Confirma que não era corcunda e que padecia, isso sim, de escoliose acentuada surgida teria uns dez anos de idade, e elimina a sugestão de Shakespeare de que seria incapaz de mexer um dos seus braços. Acima de tudo, a análise dos ossos traz à luz do dia a forma como morreu: o seu corpo sofreu inúmeros golpes, tendo provavelmente falecido de um grande golpe na cabeça. Mesmo depois de morto foi trespassado por diversas vezes, o que demonstra, não só a violência dos combates pessoais de então, mas também a raiva que lhe tinham os vencedores e, em particular, os que o atraiçoaram em plena batalha. As crónicas tentaram pintar as cores desse Rei apenas com tons escuros, eliminando as facetas favoráveis que as teve, e não terão sido poucas. Foi leal a seu irmão o Rei Eduardo IV enquanto este viveu e era um homem culto, respeitador dos direitos dos mais pobres e grande defensor da liberdade de imprensa, então no seu início. Ele próprio era um leitor interessado, escrevendo apontamentos pessoais nos livros que lia.
A ciência de hoje permitiu afirmar que aqueles são efectivamente os ossos de Ricardo III, o que ainda há poucos anos seria impossível. Mas a identificação positiva foi também um acaso da História. De facto, foi feita através da análise do DNA mitocôndrico que só é transmitido por via feminina. Os investigadores encontraram duas pessoas descendentes de uma irmã do velho rei que confirmaram ambas o DNA, mas nenhuma delas é mulher com filhas, pelo que eram as últimas hipóteses de confirmar a identificação.
Ricardo III foi certamente um homem capaz das maiores barbaridades e violências, como era aliás habitual no seu tempo. Mas sabe-se hoje que a imagem física que Shakespeare deu dele, tendo escrito mais de cem anos após a morte do Rei, não correspondia à realidade. O grande dramaturgo escreveu que a fealdade do seu aspecto reflectia a maldade da sua alma, isto é, a aparência seria reflexo da personalidade.
A descoberta agora feita vem pelo menos destruir este mito, já que se o aspecto exterior não era de facto como Shakespeare o descreveu, a conclusão sobre a personalidade poderia estar também errada. Mas mostra ainda outra coisa: mostra de facto como muitas vezes os intelectuais, ao mais alto nível, são capazes de utilizar as suas capacidades criativas para os motivos menos nobres. E ensina-nos ainda outra coisa: nunca se pense que a História está escrita em definitivo.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Fevereiro de 3013

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

BANCOS E BANQUEIROS, ÀS VEZES.



 O banco mais antigo do mundo chama-se “Monte dei Paschi di Siena” (MPS) e foi presidido por Gioseppe Mussari que se demitiu há poucos dias da liderança da associação italiana de bancos. Em 2007, quando era presidente do MPS, comprou um banco ao Santander por mais 36% do que este tinha pago por ele, apenas um mês antes. Desconfia-se que a maior parte dessa diferença terá sido usada para fins menos próprios o que, por mais espantoso que pareça, coloca Mario Monti em maus lençois perante Silvio Berlusconi nas eleições italianas deste mês, dado que Monti pertence precisamente à elite dos banqueiros.
Há menos de um ano o presidente do banco central da Finlândia propôs a separação da banca de investimentos da banca comercial, para que esta não cubra as falhas daquela. Na semana passada, a Alemanha seguiu os passos que a França já deu nesse sentido e aprovou essa separação para os grandes bancos, esperando-se que o Reino Unido venha a fazer o mesmo em breve. No entanto, o governo alemão foi mais longe. De facto, a nova lei prevê ainda que os dirigentes dos bancos ou seguradoras que tenham provocado perdas em consequência da assunção de riscos não considerados poderão sofrer penas de prisão. Os países europeus, começam finalmente a reagir aos problemas resultantes de alguma actividade da banca. Mercê dos desenvolvimentos tecnológicos, da globalização e de uma regulação desadequada a estes novos tempos, a banca tem mostrado grandes debilidades perante a actuação de responsáveis que se aproveitam de facilidades que não deveriam existir. Relembra-se o sucedido, só desde 2008, com o Credit Suisse Group, com o Lehman Brothers, a UBS, e mais recentemente, o JPMorgan Chase e o Barclays Bank e as acusações de manipulação da LIBOR, para só referir os casos mais conspícuos.
Entre nós, os banqueiros também teimam em não sair das primeiras páginas dos jornais e, é preciso dizê-lo, nunca pelas melhores razões. Os comentários de banqueiros e outros milionários sobre a pobreza ou austeridade, com a maior das sinceridades, não são coisa que deva fazer perder um minuto das nossas vidas. Já as fugas aos impostos e negociatas mais ou menos escondidas para fugir ao fisco interessam directamente a todos os que cumprem as suas obrigações fiscais, que são a grande maioria dos portugueses. Como dizem respeito a todos os portugueses as situações que se passaram na banca, casos do BCP e do BPN. Se no BCP foram usados dinheiros públicos da CGD para comprar capital e meter uma administração “amiga” com os prejuízos no banco que estão à vista de todos, no BPN a nacionalização feita há mais de quatro anos serviu para que todos nós estejamos a pagar aquilo que os gestores do banco por lá fizeram. Continua tudo sem ser devidamente esclarecido, sabendo-se no entanto que, dos setecentos milhões referidos pelo antigo ministro das Finanças quando decretou a nacionalização, o prejuízo vai hoje em mais de 4 mil milhões de euros, havendo quem diga que possa vir a subir aos 7 mil milhões. Como a solução para o BPN foi a nacionalização do banco, são todos os contribuintes que estão a pagar o desastre, chamemos-lhe assim, já que o prejuízo de muitos foi certamente o benefício de alguns, que mais cedo ou mais tarde terão que responder publicamente pelos seus actos e pelas suas omissões. O que aliás já deveria estar a suceder, para a saúde do próprio regime. Às vezes é mesmo obrigatório não vacilar perante o poder do dinheiro.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 11 de Fevereiro de 2013

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

TURISMO EM COIMBRA


O tema do turismo em Coimbra tem sido abordado com alguma frequência nestas crónicas. A linha principal dessas intervenções tem-se relacionado com o chamado turismo cultural e surge na sequência da verificação empírica de várias características do turismo que nos visita. Essas ideias resultantes da observação directa e de alguma curiosidade pessoal, viram-se agora confirmadas no livro “A CIDADE E O TURISMO”, da autoria de Carlos Fortuna e mais quatro colegas que, de uma forma sistematizada, aborda os segmentos do turismo patrimonial e cultural.
Por esta obra ficamos agora a saber de ciência certa, e cito, que todos os anos mais de 200 mil turistas visitam a Universidade. Mas também que “o sector do turismo não tem um impacto económico muito forte na cidade”, que “o concelho de Coimbra revela francas dificuldades na fixação dos seus hóspedes e que a nossa cidade está mesmo em desvantagem no que respeita à fixação mais longa dos visitantes”, relativamente a outras cidades médias portuguesas. Verificou-se que quase metade dos turistas não passa qualquer noite na cidade, sendo de apenas 1,66 noites a estadia média dos que cá pernoitam e ainda que quase metade dos turistas gastam menos de 50 euros e apenas 28% entre 51 e 100 euros. Os autores salientam que “Coimbra… dotada de um património histórico, simbólico e monumental muito relevante, debate-se com uma série de problemas e constrangimentos de natureza estratégica e organizacional que têm condicionado o pleno aproveitamento do potencial existente.”
Isto é, a questão coloca-se no aproveitamento rentável do património existente legado pela História: temos “hardware” e falta-nos “software” como hoje se diz.
A Universidade é o principal pólo de atracção turística, o que se irá potenciar, caso tenha sucesso a candidatura a Património Mundial da Unesco, como se espera venha a suceder. Se o desfasamento de atractabilidade turística entre a Universidade e o resto da Cidade já é grande, será ainda maior se não houver engenho e arte para, rapidamente, se fazer frente a esse perigo real.
Uma das respostas está na passagem do turismo meramente patrimonial, essencialmente contemplativo, para o turismo cultural, que adiciona actividades artísticas à pedra dos monumentos. Espectáculos realizados nos monumentos, seja por grupos de teatro, seja por agrupamentos musicais nas suas diversas formas, criam ambientes novos, diferentes, muitas vezes de grande beleza, que têm obviamente um potencial económico muito relevante, se integrados numa política de turismo eficiente.
Isto mesmo tem sido provado pela Orquestra Clássica do Centro que, arrostando com algumas incompreensões, tem levado diversos tipos de música erudita aos mais variados monumentos da Cidade, sempre com agrado e mesmo por vezes espanto do público pela qualidade da prestação, como sucedeu ainda no passado dia 31 de Janeiro na Igreja do Mosteiro de Santa Clara-a.Nova, num concerto de excepcional brilho num ambiente de enorme valor simbólico para Coimbra.
Coimbra tem o património e tem produção cultural própria de altíssimo nível. Tem obviamente faltado a capacidade organizativa para juntar tudo numa oferta cultural que tem potencialidades para brilhar no cenário nacional.
Estamos num momento histórico de charneira, definido por várias circunstâncias, desde a candidatura à Unesco, à redefinição da organização administrativa do país, às mudanças económicas e sociais ligadas à política de habitação e regeneração urbana, às novas circunstâncias económicas europeias e à cada vez maior importância da política de cidades. Por aqui passa muito do nosso futuro colectivo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Fevereiro de 2013

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Mercados, para que vos queremos?



Portugal procedeu à primeira colocação de dívida pública nos mercados internacionais após o Memorando de Entendimento.
Relembremos o essencial: em Maio de 2011, Portugal teve que pedir o apoio do FMI e da União Europeia, por já não conseguir financiamento nos mercados internacionais; tal devia-se a um défice das contas públicas superior a dez por cento e uma dívida pública gigantesca. Os juros de dívida pública ultrapassaram a famosa barreira dos 7%, rondando os 10%. Portugal viu-se na obrigação de se entregar à Troika para conseguir financiamento desta em vez dos mercados, comprometendo-se em troca a aplicar as medidas impostas no Memorando de Entendimento. Logo a seguir as eleições ditaram a mudança de Governo e teve que ser a coligação do PSD/CDS a aplicar as difíceis medidas que todos estamos a ver e sentir.
Desde então, o défice das contas públicas tem vindo a descer, sendo neste momento de 5%. Após a sexta avaliação favorável da troika ao programa de ajustamento português, o Governo decidiu antecipar a ida aos mercados fora da protecção do FMI e do BCE e colocou 2,5 mil milhões de dívida pública a longo prazo com uma taxa ligeiramente inferior a 5%, ficando com as necessidades de financiamento para o corrente ano garantidas logo em Janeiro. Em paralelo, negociou com a troika um prolongamento dos prazos de pagamento dos seus empréstimos, baixando assim os riscos de tesouraria dos anos mais críticos para os reembolsos.
Entretanto soube-se também que, excluindo os juros da dívida pública, Portugal terminou o ano passado com saldo positivo nas suas contas públicas: em vez do défice previsto de 89,2 milhões de euros, obteve-se um valor positivo de 517,4 milhões de euros. Acresce que, pela primeira vez desde 1943, Portugal teve balança comercial positiva.
A verificação do que está a suceder teve reacções. Alguns vieram dizer que tinham razão em exigir um alargamento dos prazos desde o princípio, “esquecendo” que esse alargamento só seria possível e vantajoso para Portugal, como consequência do sucesso da aplicação das medidas e não ao contrário.
Outros salientam que a ida aos mercados significa mais dívida pública e têm alguma razão nesse ponto. No entanto, essa dívida gigantesca só poderá começar a ser “comida” quando a nossa economia virar o ciclo descendente e atingir um crescimento mínimo de 2%. Até lá, há que reformar profundamente, diminuir custos do Estado, criar condições objectivas e subjectivas para o crescimento económico sustentado, atrair investimento externo e ir pagando o serviço da dívida existente através de novos empréstimos com as melhores condições possíveis, até que as taxas de financiamento externo a longo prazo desçam ao valor sustentável dos 2%.
Que tudo isto está a ser conseguido com os enormes sacrifícios dos portugueses que todos conhecemos, é hoje evidente. Portugueses aliás, que dão sinais crescentes de não esquecerem quem nos trouxe aqui, de não admitirem que alguém desconsidere esses mesmos sacrifícios, e ainda de não quererem um regresso ao desregramento da despesa pública. Isto mesmo virá ao de cima nas eleições deste ano, ao contrário do que muitos pensam ou sonham.
O regresso aos mercados não é um fim em si, nem sequer um ponto de chegada. É apenas o fundamental início de uma longa caminhada para a necessária recuperação económica do país.



Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 de Janeiro 2013

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A importância do acessório



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 O País geme com a aplicação das medidas trazidas pela “troika” que há quase dois anos chamámos para nos salvar da bancarrota. Como todos sabemos, a enorme, gigantesca dívida pública que acumulámos durante anos, associada a um défice excessivo das contas do Estado, levaram a que os nossos credores perdessem a confiança na nossa capacidade de pagar a dívida. Por isso, as taxas a que nos emprestavam dinheiro subiram a níveis insustentáveis, causando uma impossibilidade prática de financiamento externo de Portugal.
As medidas do chamado “memorando” assinado pelo governo anterior são duras e isso faz-se sentir na vida de todos. Essas medidas visam essencialmente colocar os índices de referência dentro dos parâmetros exigidos pela presença no Euro. Os resultados desse esforço e sacrifício de todos começa a ver-se. Na semana passada, Portugal colocou dívida pública a curto prazo a uma taxa inferior a 2% e com uma procura largamente excedentária sobre a oferta. O presidente socialista francês veio logo depois “considerar que os difíceis esforços que Portugal está a fazer estão a dar frutos”, embora os que ainda por cá defendem os responsáveis pela situação a que chegámos tenham logo tentado tirar importância a essas declarações chutando para o lado com a PAC.
Mas há algo que falta de facto fazer e isso é mesmo o mais importante. Não chegámos a este ponto de um momento para o outro, nem a crise caiu do céu aos trambolhões. Fomos nós que construímos o caminho que aqui nos trouxe. Torna-se absolutamente necessário proceder a reformas profundas em toda a organização do país para sairmos do atoleiro em que nos encontramos.
Tudo, desde as funções do Estado até ao necessário “estado social” capturado pelas mais diversas corporações, tem que ser revisto, avaliado e reformado. São as gerações dos nossos filhos e netos que o exigem. É mesmo necessário e urgente um pacto inter-geracional que proteja as futuras gerações do egoísmo e falta de solidariedade da actual geração que sistematicamente tem colocado o seu bem-estar à frente de tudo e de todos de uma forma social e economicamente insustentável.
Tendo consciência disto mesmo, o Governo está a organizar conferências com diversas personalidades de diferentes quadrantes profissionais e ideológicos para encontrar caminhos para as reformas. A primeira decorreu há poucos dias. Porque o objectivo é que aí se diga o que se tem a dizer com inteira liberdade, essa conferência foi aberta à comunicação social, mas com regras estritas na divulgação do que lá foi dito: para reproduzir as intervenções dos diversos intervenientes, os jornalistas deveriam assegurar autorização dos próprios para tal, com excepção dos membros do Governo, que poderiam ser citados com toda a liberdade. O leitor teve certamente ecos desta conferência. E o que lhe chegou não foram as participações dos intervenientes, porque a comunicação social resolveu substituir-se à conferência como notícia. Rebelando-se de uma forma infantil e patética contra um prática seguida em muitos países e instituições quando o que está em causa é uma sessão discussão livre e franca de apresentação de sugestões e propostas para a qual são definidas regras que visam precisamente garantir essa liberdade, muitos dos jornalistas presentes substituíram o seu trabalho por intervenção política directa. Desta forma abandonaram e desrespeitaram os seus leitores para quem deveriam trabalhar informando com liberdade, mas também com seriedade e respeito pela verdade.
Quando não há pão, todos ralham e ninguém tem razão, diz o povo na sua sabedoria. Cabe a quem tem responsabilidades acrescidas pelas suas funções sociais e políticas, contribuir para a solução dos problemas e não ser mais um problema. A História não perdoará a quem se colocar de fora no esforço de encontrar soluções consensuais para construir um futuro mais digno para as gerações vindouras. 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 Janeiro 2013 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Profissão: político



 O nosso actual regime foi fundado em Abril de 1974 e vai fazer, portanto, 39 anos daqui a pouco tempo. Um regime político, qualquer regime político, precisa de pessoas que ocupem os lugares de exercício de funções de Estado, nos seus mais diversos níveis e sectores, com a maior competência possível.
Na nossa democracia, há um órgão de soberania cujas funções são exercidas por uma pessoa escolhida directa e pessoalmente pelo povo, que é o presidente da República. Todos os outros são escolhidos através dos partidos políticos ou, em alguns casos, poucos, por listas independentes.
Para o regular funcionamento de um regime democrático, é necessário que o povo possa escolher em liberdade. Mas não é menos importante que os partidos reflictam internamente essa liberdade e que os processos de escolha dos seus representantes sejam transparentes.
Depois do 25 de Abril houve uma substituição das pessoas que ocupavam os lugares de representação política do Estado. Mas as responsabilidades inerentes às mais diversas funções, muitas delas de elevada complexidade, obrigaram a que a classe política do novo regime tivesse sido formada durante o antigo regime, tendo todos eles uma experiência profissional sólida. Foi assim que, só após cerca de 25 anos, o actual regime começou a ter o poder exercido por personalidades que se formaram após o seu início, havendo hoje já muitos políticos em actividade que nasceram mesmo depois do 25 de Abril.
Esta situação traz novidades, desde logo pelos referenciais sociais e políticos destas novas gerações de políticos que não têm qualquer memória pessoal quer do regime anterior, quer do chamado PREC e primeiros anos fundacionais do regime democrático.
Por outro lado, a formação de muitos destes novos políticos é muito diferente da anterior. Iniciaram as suas carreiras políticas muito cedo, boa parte deles dentro das juventudes partidárias. Muitos nunca exerceram mesmo qualquer actividade profissional digna desse nome fora da política: são políticos profissionais.
Há quem defenda que os políticos profissionais colocam a Democracia em perigo. Pessoalmente, não irei tão longe. Mas que a profissionalização da política tem riscos, isso parece evidente. Desde logo, porque tende a criar um mundo artificial no qual se movem os políticos, com um afastamento da realidade que leva a promover uma desadequação das políticas aos interesses e necessidades efectivas das populações; nesse mundo próprio surge até uma linguagem que só os “iniciados” conhecem em profundidade e cujo significado é muito diferente daquele que o cidadão comum lhe atribui. Depois, porque esse é um mundo artificial que se auto-defende de quem efectivamente conhece a realidade e quais as melhores soluções para os problemas concretos.
O perigo está, portanto, no mundo fechado e artificial que os políticos profissionais tendem a criar. Esse perigo é real e cabe-nos a todos conhecê-lo e fazer o necessário para o prevenir. A limitação de mandatos vai nesse sentido, mas deverá ser estendida aos Deputados da Assembleia da República. Outra reforma importante será a alteração profunda da lei eleitoral, de forma a que qualquer eleitor possa cortar nomes das listas propostas pelos partidos. Só assim as máquinas partidárias deixarão de trabalhar em circuito fechado, o que permite aos políticos profissionais continuarem a sua actividade sem nunca se confrontarem directamente com aqueles que supostamente representam.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

PRIMAVERA/S



A Primavera é certamente a estação do ano mais celebrada pelos artistas. Significa o equilíbrio da Natureza com a igualdade dos dias e das noites que traz as temperaturas amenas, depois dos frios do Inverno. Condições que fazem a vida brotar de novo com exuberância com as novas plantas e as flores primaveris e fazendo realçar a sensibilidade dos que a têm mais desenvolvida, os artistas.
O célebre quadro de Botticelli que representa a Primavera representa tudo isto de forma exuberante. Encontra-se exposto na Galeria Uffizi em Florença, fazendo parte do valioso património cultural daquela cidade italiana.
Também a música tem celebrado a Primavera ao longo dos séculos, através de obras compostas por autores dos mais diversos estilos, alguns deles certamente bem conhecidos de todos nós.
Coimbra é uma cidade privilegiada, do ponto de vista patrimonial. O seu património construído é mais ou menos conhecido dos conimbricenses e mesmo de todo o mundo, através dos milhares de turistas que todos os anos nos visitam. Mas a importância da música nesse património é também crucial para compreender e amar a nossa cidade. A guitarra portuguesa, na sua versão de Coimbra, tem uma enorme importância na nossa cultura e, portanto, na definição da nossa identidade.
Certamente não por acaso, Francisco Martins deu o nome de PRIMAVERA a duas das suas composições mais marcantes para Guitarra de Coimbra. São raros os músicos que, além de instrumentistas exímios, são igualmente compositores de gabarito. Francisco Martins é um desses exemplos. As suas composições atingem uma beleza marcada por uma perfeição melódica rara que provoca nos ouvintes uma vontade de as ouvir mais e mais vezes, deixando-nos sempre com sabor a pouco quando terminam.
Francisco Martins foi sempre uma pessoa reservada, nunca tendo pertencido a grupos musicais formais, reservando as suas actuações para momentos por si escolhidos. Aluno de guitarra de Coimbra de António Portugal desde muito novo, as fotos mais antigas das suas actuações são do casamento de Luis Góis em 1959, então com apenas 13 anos. A sua discografia inclui, não apenas as PRIMAVERAS I e II, mas dezenas de outras composições suas, para além de interpretações de outras peças musicais. O seu primeiro álbum data de 1969 e intitula-se “Flores para Coimbra”, fazendo apelo a outra das referências primordiais da Cidade: as rosas da Rainha Santa.
Os Homens passam, mas as Músicas ficam. As composições de Francisco Martins são hoje tocadas por muitos dos instrumentistas da Guitarra de Coimbra, que as ouviram tocar a ele mesmo ou através da audição dos discos publicados. No entanto, para que essas músicas possam ultrapassar as fronteiras da distância e do tempo, é crucial preservá-las em papel que qualquer músico, em qualquer parte do mundo, possa ler e interpretar no seu instrumento. Só assim esse verdadeiro património cultural será preservado e legado de forma perene.
Foi isso mesmo que a Orquestra Clássica do Centro fez. Emília Martins juntou vontades e esforços que tornaram possível publicar em livro as partituras de 13 das mais conhecidas composições de Francisco Martins, sendo desejável que venha a acontecer a publicação das restantes obras. Sem qualquer apoio oficial, o património cultural de Coimbra surge assim, não só protegido, mas divulgado de forma perene para todo o mundo, porque a escrita musical é universal. Esta publicação das Edições Almedina contém, para além das partituras, os depoimentos de Rui Pato, extraordinário executante de guitarra clássica que acompanhou Francisco Martins em boa parte da sua obra musical, gravada e ao vivo, praticamente desde a infância e ainda de Armando Carvalho Homem que testemunha de forma tocante a impressão que a música de Francisco Martins provoca em ouvidos e intelectos sensíveis.
“AS PRIMAVERAS” é hoje um livro fundamental na biblioteca de todos os que se preocupam com o património artístico de Coimbra, mas também de todos os que admiram Francisco Martins, seja pela sua obra musical verdadeiramente excepcional, seja como médico, ou simplesmente como Homem.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 7 de Janeiro de 2013